por F. Morais Gomes

18
Set 11

Naquela manhã o sol raiou glorioso nos céus de Washington D.C. Na West Wing da Casa Branca, o presidente dos Estados Unidos após reunir com o chief of staff, terminava uns flocos de aveia, lançando um frango de borracha a estimular os reflexos de Bo, o presidencial cão de água português. Teria um dia agitado, reuniões sobre o novo projecto de criação de empregos, a visita de líderes do Congresso e a recepção ao recente primeiro-ministro português preenchiam a manhã. As coisas andavam complicadas para a Administração Obama, com o desemprego a não ceder e os bastards da Moody’s a desafiar o sacrossanto triplo AAA do rating. Ao primeiro-ministro português, um político em apuros no seu país, reservara vinte minutos, a sublinhar a condição de “amigo” e “aliado” na “NATO alliance”, o adido de imprensa lembrava-o para elogiar os “delicious” pastéis de Belém que o presidente Silva lhe oferecera durante a visita a Lisboa, no ano passado.

Com olheiras, atormentado pelos problemas do défice, agora agravado pelas diabruras da Madeira, Passos Coelho após as fotos e aperto de mão da praxe, uma vez no sofá da Sala Oval, onde entrava pela primeira vez, foi direito ao assunto, num inglês límpido, recortado pela sua voz de barítono, melhor fora ter feito carreira por aí, lamentava às vezes com Laura, no aconchego do T3 de Massamá:

-Senhor Presidente, é importante o empurrão que o seu governo possa dar junto da chanceler Angela Merkel. Ela não ouve ninguém, ainda a tentei convencer cantando-lhe “Una Furtiva Lacrima” ao ouvido, mas aquilo é um Panzer sem coração. O Berlusconi é que tem razão, se estivesse sexualmente mais, digamos… amparada… talvez amolecesse o coração e ajudasse com eurobonds para o peru do Natal…

Obama sorriu, pondo a mão por cima do desafortunado chefe do governo. Oferecendo um Toblerone, que Passos aceitou, guloso, aventou uma sugestão:

-Pedro, tem de ter paciência. Aqui nos States também tenho problemas com algumas mulheres: a Palin, por exemplo, e a Michelle, em casa, anda sequiosa, não posso sair da Sala Oval que me agarra pelos cantos, é confrangedor, com os serviços secretos sempre a ver tudo. Olhe, cada vez que me lança um olhar lânguido, dou-lhe um Toblerone destes, e mando-a com as miúdas visitar o Mandela ou a comer um Big Mac.Ainda para mais, deu-lhe para achar que tenho uma Levinsky, uma moça do Harlém que anda aí a tirar fotocopias.

Um secretário, pedindo licença para interromper, avisava que tinha Papandreou, o chefe do governo grego do outro lado. Após minutos, durante os quais Passos Coelho aproveitou para fotografar a Casa Branca com o telemóvel, Obama voltou, confidenciando ao português:

-Era o George. Vinha propor-nos a venda de sete ilhas no mar Egeu, no Dodecaneso, 40% de desconto na compra imediata, e a ilha de Patmos de oferta, para mim e Michelle. Fiquei de pensar. Malyia precisa de praia, e as águas são terrific.

Passos aproveitou a deixa e lançou a escada para uma proposta ousada:

-Barack, lá por isso, também temos ilhas fantásticas, e bem mais perto. A Madeira, por exemplo, clima tropical e vegetação luxuriante…

-Madeira? Isso não fica no norte de África?

-Sim, mas é tudo nosso, europeu. A troco da nossa dívida à troika, poderíamos vender-vos a Madeira. E dávamos Porto Santo de bónus, para levar amigos de férias a jogar golfe!.

Obama coçou o queixo e chamou Timothy Geitner, o secretário do Tesouro, que, feitas as contas, achou o negócio interessante, acordando-se logo um contrato promessa de compra e venda. Para evitar chatices com o Eurogrupo, seria tudo em dinheiro vivo, ao país, amargurado e desde Washington, o primeiro-ministro falava em “construir o futuro” e num “novo paradigma de Nação” bem como num prazo de 50 anos em que o português vigoraria como língua de trabalho, assim como se fizera com Macau. Jardim, na Quinta da Vigia, bufava, praguejando e esmurrando uma foto de Passos, só uma injecção com concentrado de poncha o acalmou, deixando a dormir por dois dias.

Dois meses depois, Passos Coelho, com fato novo e trauteando o La Donna e mobile, comparecia em mais um Conselho Europeu. Rigoroso, desaconselhava apoios aos despesistas gregos, sugerindo a sua saída do euro, ao lado dos da linha dura. Merkel, derrotada em todas as eleições via-se perdida em relatórios do hiperbólico Barroso, que falava sem parar e sem dizer nada. Magnânimo, Passos ofereceu-lhe um Toblerone, piscando o olho a Berlusconi, depois do jantar curtiriam a noite de Bruxelas, Silvio conhecia um bar bem guarnecido perto do Grand Sablon, sem esquerdistas nem gordas.A dívida fora saldada, e  grandes investimentos chegavam agora em catadupa, relançando a economia nacional, amigo, Portugal oferecia-se para comprar dívida grega a 80% a 2 anos, Vítor Gaspar fora mesmo enviado a ministrar um curso de finanças tântricas.

Enquanto isso, numa cadeira de praia num resort de luxo no Lido, escutando o mp3, o presidente dos Estados Unidos tirava uns dias de férias no mais recente estado americano, o 52º, enquanto um assessor lhe mostrava como funcionava um artefacto local designado bailinho, depois de passado a pente fino pelas secretas. A stars and stripes flutuava ondulante em toda a ilha, pululando casas de espetadas, agora designadas como maderan barbecue, um Disney World estava já planeado para o Machico e uma sequela do Avatar para o Chão da Lagoa. Divertido junto à piscina, Bo brincava correndo e roendo um chapéu de palha que pertencera ao antigo chefe do governo local, agora a viver nas Canárias, onde à noite fazia biscates de  stand-up-comedy num café concerto em Tenerife. Tudo está bem quando acaba bem.

publicado por Fernando Morais Gomes às 14:02

16
Set 11

 

A aproximação ao aeroporto do Funchal trazia a Ralph a lembrança da primeira vez que visitara a ilha, trinta anos antes, para a lua de mel com Marjorie. Jornalista dum diário de Manchester, vinha cobrir as novas realidades da ilha, para um suplemento de domingo, o governo da Madeira, interessado na promoção, pagaria as despesas. Nessa altura, a pequena pista era o terror de qualquer piloto, não aterrando à primeira teria de voltar a levantar e travar a fundo para não ir cair no mar, recordava como Marjorie lhe segurara as mãos, assustada.

No aeroporto, com um ramo de estrelícias, uma menina vestida com um traje regional acolhia o periodista, atrás dela, o doutor Ornelas, delegado regional do turismo e seu cicerone, durante três dias correriam a ilha, a ver novas infra-estruturas e atracções para o turismo.

Do que se recordava, o Funchal crescera muito, auto-estradas, novos hotéis, túneis, muitos, os locais chamavam-lhe os “furados”, esventrando a ilha e ligando em poucos minutos o que antes levava horas a percorrer. Lembrava-se bem da impressão que na altura lhe causara uma aldeia num imenso vale, o Curral das Freiras, onde a poucos quilómetros do mar muitos nunca o haviam visto ou saído até ao Funchal.

O doutor Ornelas há muitos anos trabalhava para o governo regional, chefiado por um político truculento, na manhã do segundo dia apanhou Ralph no Reid’s e partiram para a volta a ilha. O Funchal pululava de turistas, vindos em cruzeiros, pela manhã, no mercado das flores, captou fotos das coloridas hortênsias, um dos emblemas da ilha. O novo teleférico levou-os à parte alta, Ornelas ia distribuindo folhetos e explicando as obras executadas:

-Como vê, o meu governo tem modernizado a cidade. A capacidade hoteleira triplicou e o movimento de paquetes vai ser muito valorizado com o novo terminal junto ao Machico. Aqui fazemos obra!- atirou, ufano, como que fazendo um paralelo com o resto do país.

-E é investimento privado?- questionou Ralph, tomando notas.

-A maior parte é esforço do governo regional. A zona franca ajuda, também, mas o nosso presidente entende que não se deve olhar a dificuldades no esforço modernizador. E vê-se. Aqui e no Porto Santo.

-E a oposição não questiona o endividamento em obras?- quis apurar o inglês -porque a iliteracia parece ser grande ainda, segundo li.

-Ora… a oposição local é invejosa e não chega aos pés do doutor Jardim. Grande homem, grande homem!. Um dia há-de ter uma estátua no Chão da Lagoa, a olhar para o Funchal e para a sua grande obra!.

Ralph sorriu, bem vistas as coisas nem sabia porque perguntara algo de que já calculava a resposta.

Pelos novos roteiros seguiram para o Cabo Girão, em Câmara de Lobos duas gulosas ponchas oferta do Ornelas predispunham para uma suculenta espetada no Estreito de Câmara de Lobos, antes da visita a Santana. Ornelas ia apontando novos centros de saúde, escolas, acessibilidades, trinta anos de empolgante bailinho sob a batuta do timorato dirigente. Anotando tudo, Ralph perguntou por preços e custos, a obra mostrada era francamente superior à receita arrecadada junto dos pouco mais de duzentos e sessenta mil habitantes, Ornelas fez-lhe um briefing:

-Sabe, temos tido acesso a muitos fundos comunitários, e os nossos deputados em Lisboa são tipos experientes, têm sabido negociar com o governo apoios e transferências. Olhe, a um governo dos socialistas até conseguimos que nos perdoassem a dívida, veja lá como eram tansos. Mas é tudo em prol da Madeira. Está lindo, tudo, não está? -e mudando de assunto, seguiram para um revigorante cálice de Madeira.

Em São Vicente, grandes obras públicas em curso, bem como no Porto Moniz, atravessando o maciço central, Ralph deteve-se a fotografar as levadas e a floresta laurissilva. Nessa tarde, Ornelas teve de ir a despacho no Funchal e Ralph internou-se montanha abaixo, abrigos em madeira ofereciam alojamentos de natureza. Sem se identificar, entrou num, como cliente, a saber preços e se havia vagas. Relutante, um recepcionista, pediu desculpa, mas só telefonando para o chefe. A medo ainda confessou ao suposto hóspede:

-Sabe, aqui é só para amigos do Alberto João…sorry, sir!

Passados três dias, recolhida a informação para o jornal, terminou a visita com um jantar na Camacha, ao som do tradicional folclore e saboreando o bolo do caco. Após brindar com o doutor Ornelas, que em jeito de despedida lhe ofereceu bordados e livros sobre a ilha, ainda o questionou sobre a captação de investimento, com a crise internacional e os cortes orçamentais impostos por Lisboa. Terminando uma semelha e erguendo o cálice em jeito de brinde, Ornelas, seguro e com a experiência de muitos anos pelas secretarias do Funchal, rematou sem hesitar:

-Ralph, acredite. Pode faltar dinheiro em Lisboa, mas sempre haverá na Madeira. E sabe porquê? Como no futebol, o ataque é sempre a melhor defesa…

A cem metros, uma perfuradora rasgava a montanha para mais um “furado”, símbolo da enorme obra de fomento do mais desafiador dos políticos. Mesmo que em Lisboa não houvesse um tostão “furado” , a Madeira trilharia o progresso na mão de homens de visão, calejados na arte de fazer política.

publicado por Fernando Morais Gomes às 21:41

14
Set 11
 

In Dublin´s fair city/Where the girls are so pretty/ I first set my eyes on sweet Mollly Malone”. A música ecoava nostálgica e doce, no balcão do 0´Leary, no Temple Bar, ao ritmo das Guiness, música dos Chieftains, Dubliners e outros baladeiros da green Ireland animavam as tardes logo noite e madrugada da terra do caldeirão de ouro na ponta do arco-íris. Assim era nas lendas, não tanto na realidade, acossado o tigre celta, o desemprego espreitava e casas ficavam por vender. Para Júlia, o emprego de hospedeira na Ryanair, antes sonho e oportunidade, era agora diário risco, dependente do apertar de cinto com a crise.

Júlia partira em 2007, um curso de História que a trazia no desemprego fê-la trocar Lisboa e as noites no Bairro pelas neblinas de Dublin, cidade alegre e sempre pronta para o crack, a maneira irlandesa de fazer a festa, em pubs e em torno do guloso sumo de cevada. Três meses depois, conheceu Patrick no O´Leary, um jovem economista e broker na bolsa, ao som da Molly Malone haviam iniciado uma relação forte e apaixonada. Entre viagens para o continente, em serviços low-cost  e jantares no Gogarty’s, passaram três anos, o regresso a Portugal adiado, um novo futuro anunciado.

Nessa noite, de novo no O´Leary, pensativa e saboreando um capuccino, tudo era já diferente, a Patrick, que há semanas se queixava de enxaquecas, após exames fora diagnosticado um tumor no cérebro, não podiam operar, sessões de quimioterapia traziam-no enfezado e triste, de Portugal as notícias eram pouco animadoras, a loja de móveis do pai em Lisboa falira e pensava retirar-se para o norte, onde com algum pé de meia viveria com a mãe o resto dos seus anos. Ela mesmo diariamente via colegas despedidos ou transferidos, a política da empresa era não renovar contratos e contenção.

O velho Liam, bandolinista e animador das noites, era já um velho conhecido, simpatizara com a portuguesa quando um dia ela lhe cantou um fado, numa voz tão cristalina que logo ficou fã, levando horas depois do show no bar bebendo Guiness e cantando. Anos antes fora amigo de Edge, dos U2, juntos correram bares e pubs antes de ficarem internacionalmente  famosos.

Liam estava a par da história de Júlia, nessa noite depois de cantar o Whiskey in the Jar  pela enésima vez, sempre como se fosse a primeira, sentou-se no balcão e pediu mais um pint, Júlia estava tristonha mas sorriu ao velho amigo, cabelos brancos compridos rematados com um rabo de cavalo, a realçar a natureza rebelde do velho cantor de estrada. Liam animou-a:

-Come on, litlle portuguese, as coisas hão-de melhorar! Nada que um bom pint não resolva!

Júlia esboçou um sorriso, nesse dia Patrick ficara em casa, cada vez menos sociável, ela que sempre o acompanhava decidira-se a espairecer, no aconchego do O’Leary.

-As coisas estão sérias, Liam. O Patrick está a esmorecer com a doença, e na Bolsa parece que querem aproveitar para lhe propor uma rescisão, está tudo muito negro!

-Bloody bastards!- rosnou o velho baladeiro, anos de estrada, entre bares e barris- Há que ter esperança!. E pegando da guitarra cantou uma balada só para ela, uma furtiva lágrima caiu-lhe da face salitrando o capuccino. Terminada a canção, Liam acercou-se de Júlia , pegando-lhe as mãos e olhando-a nos olhos, animou-a:

-Júlia, estamos na Irlanda, a terra das fadas e dos duendes, onde tudo acontece. Sabes porquê? Porque há magia nas coisas. Quando queremos muito uma coisa, ela acontece, porque a força do homem é a maior de todas as magias!. Interrompendo para dar um golo no pint, continuou:

-Um dia destes hás-de encontrar o teu four leaf clover! Um trevo de quatro folhas, you know?. E quando o encontrares, guarda-o, pois todos os teus desejos se tornarão realidade. Uma folha é para a esperança, outra para a fé, a terceira para o amor e a quarta para a sorte. Believe me, i know what i’m saying!

Júlia abraçou o amigo, que não resistiu ao vigésimo pint, e voltou para casa. Patrick, absorto, fazia zapping desinteressado de tudo, no sofá o Irish Times anunciava o aumento do desemprego, a crise atacara forte o orgulhoso tigre celta.Júlia abraçou-o e em silêncio deitaram-se, a noite estava fria e os seus corações também.

No dia seguinte, a caminho do aeroporto para uma viagem até Londres, Júlia caminhou um pouco pelo Phoenix Park, o vasto prado verde da cidade onde alguns esquilos saltitavam era revigorante, o seu espírito precisava de silêncio e paz interior. Perto duma árvore, alguém esquecera um livro, O “Ulisses” de Joyce, o grande escritor irlandês. Ao pegar-lhe, mesmo ao lado, deparou com alguns trevos silvestres, um, mais desenvolvido tinha quatro pétalas, era a primeira vez que via um, raro e símbolo de sorte. Colheu-o, admirando-o fixamente, colocou-o dentro do livro e foi trabalhar. Liam ficaria surpreso, quando soubesse, ainda na véspera lhe havia falado da lenda. Coincidência, pensou Júlia, uma flor é apenas uma flor.

O voo de Londres foi sem história, foi e voltou duas vezes, pela noite regressou a casa, comprara pizzas no aeroporto, com um vinho alentejano que trouxera da última visita a Portugal tentaria animar Patrick, encafuado em casa, depois da sessão de quimioterapia.

Metida a chave à porta, estranhou a luz meio quebrada, uma música romântica tocava na aparelhagem, Patrick, sorridente, vinha da cozinha com um rosbife apetitoso. Júlia estranhou, a mesa estava posta com velas,  um incenso de jasmim exalava do parapeito da janela. Antes que tivesse tempo de abrir a boca, Patrick beijou-a e puxou-a para o sofá:

-July, i have great news! Estive no hospital de manhã, o doutor Callaghan viu os meus exames e disse que estou curado! O tumor encolheu, e pode ser retirado!

Júlia abraçou-o com veemência, beijando-lhe a cara e pescoço, alguma luz finalmente num túnel cada vez mais escuro. Mas não era tudo:

-Ah, e mais! Ligaram da Bolsa, ofereceram-me uma chefia no sector tecnológico. Isn´t that marvellous,?

Arregalando os olhos, Júlia correu para junto da mala, e de lá retirou o “Ulisses” que encontrara no Phoenix Park. Lá estava no meio o trevo de quatro folhas, Liam acertara: a magia, fazem-na os homens.

No dia seguinte, já com Patrick, voltou ao O´Leary, Liam tocava e cantava, posto a par das notícias abraçaram-se os três, fazendo o seu crack especial. Retomando o lugar junto da banda, Liam pediu silêncio e falou para os presentes que enchiam o bar:

-Fellows, temos connosco hoje a Júlia e o Patrick. Peço-vos que cantemos com eles, pois magia foi feita na sua vida. Um brinde ao Patrick e a Júlia!

E pegando na guitarra, desfiou a velha e mágica canção: “In Dublin´s fair city/Where the girls are so pretty/ I first set my eyes on sweet Molly Malone....”.

publicado por Fernando Morais Gomes às 20:28

13
Set 11

Todos os dias o velho de cabelo branco tomava um café na mesa ao canto do familiar “Talismã”. O “Talismã” era uma leitaria de bairro na Visconde Valmor, em Lisboa, propriedade do Narciso, anafada figura enterrada entre pastéis de nata e bolas com creme, servindo às senhoras confeitaria fina e bicas escaldadas com açúcar mascavado. Do velho, sempre entretido a ler, e muitas vezes solitário, ressaltava o ar aristocrático, cabelo farto e olhar profundo. Alguns dos clientes falavam dele a média voz, para Bruno, que diariamente com a mãe ali ia em busca do furo no cartão que consoante a bola propiciaria um chocolate ou brinquedo, era um personagem afável, certa vezes pagara-lhe mesmo um pirolito. “O Talismã” era na rua da escola, o rigoroso externato onde com denodo aprendia nomes de rios e províncias ultramarinas, e ao sábado fazia ordem unida com a farda da Mocidade, antes da providencial catequese. Corria 1971, entre dentes, cochichava-se que o velho seria alguém do contra, olhando uns tipos de gabardine e chapéu que sempre se sentavam na mesa em frente, que seriam duma tal pevide, segundo julgou perceber, o Narciso fazia silêncio, remetendo-se aos galões e aos papo-secos com fiambre e queijo. Concluída a primária, Bruno mudou para uma escola em Benfica e poucas vezes parou na leitaria, novos amigos e novas emoções levavam-no para outros lugares, longe da casa do avô, paredes meias com o “Talismã”.

Um dia, já depois de Abril, cabelos longos de quinze anos e soissant-huitard retardado, qual Che das Avenidas Novas e revolucionário indómito, indo visitar o avô, voltou à leitaria, na mesma, os habituais bolos e refrigerantes e o Narciso, mais gordo, sempre a transpirar. O velho de cabelo branco lá estava, fazia dois anos que o não via, reconhecendo Bruno, com um livro de Gramsci na mão, sorriu-lhe e chamou-o:

-Bruno! Estás crescido rapaz! Que fazes agora?- Bruno que nem o nome do velho sabia, desbobinou uma retórica revolucionária, de acordo com os tempos e com a sua alegada consciência de classe, contra a burguesia exploradora e a favor dos proletários, soldados e marinheiros, juntos devolveriam o poder ao povo. O velho ouviu, anuindo discretamente, e disse-lhe que se sentasse:

-Vou-te contar uma história. Sabes quem foi o Salazar?

-Claro! Um velho fascista que oprimiu o povo português, um padreco hipócrita.

-Faz agora trinta e sete anos, a 4 de Julho, um domingo, recordo bem, o seráfico homem de Santa Comba veio ouvir missa ali na Barbosa du Bocage, na capela privada dum amigo, um tal Josué Torcato. Mas deu-se mal com a viagem. Mal saiu do Buick preto, o safardana foi projectado para o chão ao rebentar uma bomba que meteram nos esgotos para o matar! Interessado, Bruno quis saber mais, o velho de cabelo branco era um manancial de informações, histórias recônditas e segredos agora à luz do dia.

-Os que o queriam matar enganaram-se e meteram a bomba no colector de esgoto, mas por azar, no lado oposto onde o carro estacionou. O “Botas” ainda caiu ao chão, mas levantou-se e sem dizer nada seguiu para a missa. Podia ter sido nessa altura, o 25 de Abril…- absorto, o velho revia a cena como se fosse hoje, de soslaio, o Narciso enxugava os copos e escutava a conversa. Interessado, Bruno quis saber mais:

-Então e os autores? Foram apanhados?

-Foram, mais tarde. Um em Inglaterra, apanhou oito anos de prisão, outros terminaram os dias atrás das grades…-o velho alterava agora o tom da voz, emocionado mas cerrando os dentes. Pagos os cafés, levantou-se, colocou a boina basca e saiu, na direcção da Barbosa du Bocage, já sem vestígios do buraco, mas onde poderia ter mudado a história de Portugal. Ficando a falar com o Narciso, Bruno, agora militante dum partido trotskista, perguntou pelo nome do velho, agora correligionário no ódio à ditadura deposta. O Narciso coçava a cabeça, servia-lhe o café desde que para ali fora, mas nunca lhe perguntara o nome, constava-se que teria estado preso. Mas devia ser um político de esquerda  ou comunista, varias vezes tipos da PIDE se sentavam em mesas perto quando ele ali ia, antes de Abril, o Barbieri, o subdirector, morava mesmo a cem metros. Bruno continuou pregando a revolução pelas RGA’S e vigílias que a orgia da liberdade permitiu, sempre com a esquerda revolucionária, correndo as escolas com o Chico Louçã, um caixa de óculos que conhecera nas lutas estudantis, queria seguir Económicas, ele  preferia Belas Artes.

Já em 1975 e no auge do PREC, num comício na Voz do Operário, descortinou o velho do “Talismã” na tribuna, falavam anti fascistas e velhas glórias da resistência, Francisco Fanhais abrilhantava com canções. Puxando o Chico Louçã pelo braço, perguntou-lhe se sabia quem era:

-Camarada, em que terra é que vives? Aquele é o Emídio Santana, o pai dos anarco-sindicalistas portugueses e director do jornal “A Batalha”. Temos divergências políticas, mas o homem é uma lenda viva, assim como o Palma Inácio!Foi ele quem projectou o atentado que ia tirando a vida ao Salazar, nos anos trinta!. Na mesa, entre glórias do passado oposicionista, Emídio Santana descobriu na assistência o garoto dos furos de chocolate, agora na vanguarda da luta de classes, e acenou-lhe. Levara trinta e sete anos, mas falhada a dinamite debaixo do Buick de Salazar, uma imensa explosão de liberdade dinamitara finalmente um país entorpecido.

Emídio Santana veio a morrer em 1988, o Chico Louçã enveredou pela política, Bruno fez-se arquitecto e casou, por vezes e com saudade, passa à porta do saudoso “Talismã”, dos bolos e furos e dos clientes da PIDE, hoje anódina loja de produtos informáticos. Também um dia a liberdade rondou por ali.

publicado por Fernando Morais Gomes às 15:41

12
Set 11

Setembro herdou um Agosto triste mas com surpresa trouxe de volta o Verão perdido, bafejando de dias quentes almas amornadas por quotidianos duros. A escola reabriu, ruidosa e alegre, as folhas amarelecem ameaçando cair, como autómatos, clientes entram e saem das compras, sacos cada vez mais leves, rostos fechados, a esperança sumindo-se no lado esquerdo da alma. É o país do fado, na mão de fadistas estafados, charlatães vendedores de banha da cobra, exasperando no IC-19, desesperando no Centro de Emprego, aflitos clamando por um ansiado milagre ao fim do segundo acto, que obvie um terceiro de morte sem glória. E as segundas iguais às sextas, a meia de leite da manhã, os jornais com as manchetes da crise, os golos marcados e os penalties roubados, a necrologia, a ver quem deixou de fumar. E mais um corte, um despedimento, um gritar baixo na secretária ou balcão, no autocarro ou no médico. É da Europa, salivam especialistas em generalidades. É estrutural, alvitra um ex-ministro com reforma dourada, piedoso com os pobres. No jardim, putos rasgam os ares com acrobacias de skate, adultos sem skate derrapam nas esquinas da vida, hoje mera vidinha anémica e perigosa. Lê-se a opinião publicada para se ter opinião, há culpados, e os culpados são “eles”. “Eles”. Sacrossanta casta e tríade do nosso descontentamento, “eles” roubam, conspiram, tiram partido, servem-se. “Eles” são o corpo alienígena, possuídos mutantes e criaturas esfaimadas, vingativas e esquálidas, adamastores de gravata e seres marinhos do Notebook,  cruéis justiceiros de pecados por expiar.

Setembro levou praia e devolveu cidade. Asfixiante. Com coisas demais para dinheiro de menos, propinas a mais para livros a menos, cirurgias a mais para órgãos a menos, crise demais para esperança de menos. Nas notícias estampadas desfila sentenciada a galeria de horrores chegados e a chegar, a valsa lenta da velha senhora rodopiando com as roupas estafadas de outrora, as promessas dum amanhã glorioso levadas numa noite de Acqua Matrix nos oníricos dias da Expo, promessa e ensaio para amanhãs dourados. Assim és hoje, Portugal, velha corista de lantejoulas estafadas e sem dinheiro para o asilo, apagadas que foram as luzes da ribalta.

A cigana romena pede esmola, trespassado que foi o lugar a um mendigo reformado, morto de cirrose ou solidão, doente de desespero, sem lugar a cuidados intensivos. Alheios, miúdos atafulham-se em pizzas e cola, amanhã serão mil amigos no Facebook e uma consola de jogos, talvez um casting para um reality show e o Céu. Inferno, a haver, há-de esperar mais um tempo. Pontuais,velhos de todos os Restelos ocupam os bancos de jardim, no areópago do povo, esconjurando tudo, e sobretudo o tempo. O tempo que não conta com eles e onde se limitam a passar o tempo, no tempo deles é que era…

Em Setembro tombaram torres, e, desafiadores bispos fizeram xeque ao rei. Não caiu, que peões e cavalos tomaram o tabuleiro, mas as regras mudaram, e Setembro mudou. À vindima das uvas sucedeu o pisar dos protestos, é Primavera nas mesquitas e desertos, logo virá o Verão Quente, inquieto, arde fogo incontido em Londres, Madrid e Atenas. Mais branda, a cidade lusa promete fumo, soprado por uma brisa atlântica e conformada, pelos cantos sussurram vozes sem voz. No quiosque dos jornais compram-se desgraças matinais, recebidas com torcer de nariz, espanto e indignação, valem as páginas eróticas, oferecendo ninfas a cinquenta euros em qualquer espelunca da Mouraria.E o tabaco de enrolar, e as pastilhas, e as fofocas, mundanas Cinhas com vestidos alugados e quilos de maquilhagem.

As árvores decepadas no Inverno cresceram, crescem sempre, vingando o corte, altivas e ondulando. Zelosos, polícias de amarelo fazem por deixar condutores de sorriso mais amarelo ainda, no quotidiano jogo de gato e rato, terminado como sempre na  costumada coima e no ufano miar dos gatos. Deus fez o mundo, previdente, o homem concebeu a multa. Teria Deus licença para exibir maçãs, cobras e homens nus na via pública? Coima garantida, asseveram os de amarelo, se multar pudessem um tal Adão, infractor…

Diminuem, os dias. É bom. Menos horas cedidas à crise e ao PSI-20, menos fatias de pizza e menos multas, a serra exalando um cheiro a húmus em cada matinal despertar. Concentrado, um varredor recolhe os vestígios do Outono que fartos se espalham nas ruas e nas almas, cumpridas as orgias de verde e da esperança, folhas que foram de Verão e Primavera.

Os deuses do Sul preparam a Grande Viagem, deixando aflitos seres de regresso às cavernas, sem alegorias, assustados, levará luas até regressarem, deixados a si próprios e ao Grande Inimigo: “Eles”. Com sorte, alguns sobreviverão, portadores da esperança e da seiva fecunda em renovada Primavera. Outros, tombados como as folhas de Setembro e nos Setembros que se irão seguir, não.

A romena, aquela ou outra, continuará a pedir esmola, alegres miúdos comerão mais pedaços de pizza, circunspectos polícias aplicarão correctivas multas. Os jornais trarão novas capas, alegres ou tristes, renovados, os rostos hão-de continuar, esculpidos pelos tempos e por eles marcados. E Setembro também, no eterno spleen de lento adeus e prometida fénix.

publicado por Fernando Morais Gomes às 14:58

11
Set 11


O pianista dedilhava sofrimento, absortos e ao mesmo tempo graves, os dedos corriam o Teclado-Mundo, gritando silêncios e angústias, no canto da casa de Gigarós. A sombra musgosa que o velho plátano lançava sobre si, projectando-lhe a penumbrosa silhueta, realçava o que de mais o velho músico amador adorava, capturado por irregulares artrites mas insistindo, possesso, na masturbativa dança pelas teclas do solitário e leal piano, o velho Steinway, do avô e bisavô.

Ernesto de Medeiros Valença, funcionário reformado do tribunal de Sintra, antes calcorreando em pena e tinta azul notificações sem melodia, requiems condenatórios ou allegros absolutórios, na orquestra onde maestros de negro conduziam sinfonias de vida nem sempre nos melhores andamentos, havia dez anos que deixara a casa onde a dita justiça nunca deixava de ser feita, mesmo quando era injusta. Viúvo aos cinquenta e sem filhos, tarde descobriu o fascínio pelo velho piano encostado e poeirento na velha casa de família. Curioso, descobriu qual criança o fascínio dos sons, estranhos e sibilinos antes, melódicos e angelicais depois, faziam sentido, na estrada do solfejo, premonitórios e libertadores. E treinadas as mãos entorpecidas, ganhou um novo e especial amigo, ao qual confessava tristezas e desabafava emoções. Como felizes passaram certas manhãs de primavera e em torpor viram chegar outonos belos no seu castanho de dever cumprido, certos de regressar algumas luas depois, ao som solitário mas seguro do velho piano .

Tirando o Steinway e os livros, a Ernesto pouco interessava, à excepção dos passeios pela serra, com o seu cajado, uma fina vara da justiça que um dia comprara em Rio de Onor, juiz de juízos silenciosos, saía sem rumo a patrulhar a serra, captar os cheiros, cheiros de Sintra, únicos e eternos, para horas depois regressar, e tonificado sentar-se com o velho amigo e falarem das flores, do musgo ou dos pássaros chilreantes, barítonos da natureza pura.

Um dia, passeando perto dos Capuchos,  cruzou-se com Matilde. Matilde, senhora de muitas primaveras e alguns outonos, era uma figura fascinante, aguarela saída da serra, enfermeira reformada para os homens, deusa da serra para ele, também ela a conselho médico fazendo caminhadas pela serra, a serra onde sós sempre se encontram multidões, multidões de emoções, sós e contudo na multidão, de flores, borboletas, odores e chilreios. Ernesto, na sua pose aristocrática, com uma barba grisalha primorosamente aparada, lembrava um personagem de Balzac ou Zola, o primeiro encontro foi um mero cruzar, em silêncio, um bom dia protocolar e o caminho aos seus destinos, na serra crepuscular. Uma semana mais tarde, voltaram a cruzar-se, já perto da Estrada da Pena, desta vez cumprimentaram-se, sorrindo, duas vezes são uma velha amizade em vidas marcadas por silêncios, Ernesto perguntou-lhe se a podia acompanhar, respeitoso, falou-lhe da serra, do tempo e das memórias. Matilde breve se revelou alma gémea. Enviuvara recentemente e caminhava atormentada, para esquecer e ao mesmo tempo recordar, nas feteiras recordava a mocidade com o defunto Epitácio, tempos de sorriso fácil e desprendido, com amigas aderira a um clube de caminhadas, caminhava e esquecia, caminhando sobrevivia.

Uns encontros mais tarde, sempre pelas bermas da serra, encontraram-se à porta da casa de Gigarós. Sem que ela o soubesse, Ernesto, cavalheiro, apontou-lhe a velha casa solarenga:

-É aqui que moro! Posso convidá-la para entrar?

Matilde aceitou. A casa era o rosto de Ernesto: elegante, aristocrática, envelhecida mas com charme. A um canto, o velho Steinway, descansando, nobre e perfilado. Matilde abriu um largo e surpreso sorriso, e dirigiu-se até ele:

-Um Steinway! Você toca, Ernesto?

-Sim…- orgulhoso mas a medo, Ernesto ia abrindo um pouco de si para a enfermeira, não de corpos, mas de almas agora. Matilde sentou-se e sacudindo as mãos que antes seguraram compressas e tintura, lançou-se, cirúrgica, sobre o velho Steinway, temerosa primeiro e decidida depois, desfiou o Nocturno Op.9 Nr. 2 de Chopin.

Ernesto pasmou. Solitário pianista amador, passadas as lides dos tribunais e a solidão após a partida de Sara, o destino, insondável, presenteava-o com aquele inesperado sortilégio. A música inebriava a velha casa, enlevado, Ernesto fechava os olhos e revisitava a sua vida, nem sempre calma, como a música, mas melancólica e altiva. E o Steinway respondia, garboso, desconhecia aquelas mãos, dóceis e meigas, faziam dele o que ele sabia dele desejarem. Finda a melodia, Ernesto segurou as mãos de Matilde, e silencioso beijou-as, como jovem colibri osculando a flor mais doce do seu jardim.

Nos tempos seguintes, os encontros passaram a ser diários, e as tardes nimbadas da serra abrilhantadas com o som vindo da sala da velha casa, como se das entranhas expelido, vulcão de sentidos e lava de felicidade. Viúvos, mas não da vida, tempos depois disseram não ao conformismo. Não seriam Chopin e George Sand, mas nas fragas de Gigarós um velho Steinway, a quatro mãos agora, concluiria em apoteose  a melancólica mas bela sonata das suas vidas.

publicado por Fernando Morais Gomes às 15:12

09
Set 11

Teve a Inquisição de Lisboa notícia da edição dum livro de Diogo de Sintra sobre o governo das nações, e lendo-o, achou que continha coisas escandalosas, ordenando que o autor fosse alvo de buscas, corria  o mês de Abril de 1644. Homem culto mas cristão-novo, suspeito de heresia, da sua casa em Belas uns quinhentos volumes foram levados para serem examinados, dezasseis listados no Index librorum prohibitorum. Concluiu-se que, alem de herege queria introduzir em Portugal obras ofensivas da fé, pelo que foi preso.

Diogo, já perto dos quarenta, era pessoa abastada, adepto de ideias modernas na governação dos reinos, dividindo o tempo entre o retiro de Belas e viagens a França e à Flandres, interessado, decidira-se a escrever sobre o governo e os valores da moral. Agora, insidiosos inimigos comprometiam-no e de Belas levaram-no sob prisão para o Santo Ofício onde um alcaide dos cárceres o pôs em cárcere de vigia, num corredor sem luz. Na casa do tormento, fronteira e algoz, preparava-se a sua  perdição.

Era um homem de prestígio, amigos bem colocados, próximo de um secretário do rei, haveriam de o inocentar, pensou. Chegado, depois de revistado e retirados os bens pessoais, o alcaide e dois guardas levaram-no para o cárcere. Só cinco dias depois compareceu perante os juízes, na casa da Mesa do Despacho. Sobre um estrado, uma grande mesa, coberta de coiro preto e vestida de damasco carmesim,  um missal para os juramentos, uma tábua com a oração do Espírito Santo e os Regimentos do Santo Ofício e do Fisco, o Collectório das Bulas Apostólicas e Privilégios da Inquisição, tinteiros de prata e uma campainha. Os inquisidores, solenes, eram todos de avançada idade. Frei Gaspar dos Inocentes rezou a oração do Espírito Santo e começou a audiência, com a sessão da genealogia. Ainda seguro de ser vítima de um erro,Diogo indicou nomes dos que o queriam perder, inveja, alegava.Contudo, nos dias seguintes, os guardas descobriram que observava o jejum judaico. Conhecedores do facto, os inquisidores lançaram-se sobre ele, implacáveis: Quantas Páscoas celebrara comendo o cordeiro pascal com pão ázimo? Já deixara de comer carne de porco, lebres, aves, ou peixes sem escama? Tudo negou, atarantado.

O julgamento foi um desfilar de editores que se diziam enganados, guardas que asseveravam rituais heréticos na cela, vizinhos da quinta de Belas que juravam ter ouvido blasfemar contra Deus e a Virgem. Perdido, foi condenado ao garrote, no Terreiro do Paço. Começou então o lento ritual da expiação, com a morte para si e outros companheiros de infortúnio aproximando-se. No domingo antes da data aprazada, o inquisidor mais antigo participou a El-Rei que o auto se publicaria  em todas as Igrejas de Lisboa para que nesse dia não houvesse sermão ou procissão, nomeou-se desembargador para o despacho dos relaxados, chamou-se um pintor para os retratos e os hábitos que haviam de levar, escolheram-se os clérigos para a leitura das sentenças. Diogo, na cela, vendo o tempo esgotar-se na ampulheta, jejuava, mais por prostração que por ritual, as cartas para o secretário do rei não haviam tido resposta.

Na véspera do dia aprazado e compassadamente, cumpriram-se os procedimentos: preveniram-se os religiosos que haveriam de dar apoio espiritual aos condenados para se apresentarem no tribunal; notificaram-se os relaxados, deu-se-lhes um padre que lhes cuidasse da alma, mandou-se recado ao tesoureiro da capela real para armar os altares do cadafalso e ao reposteiro-mor para o fazer revestir de panos como era de uso, avisaram-se os familiares dos presos para estarem no pátio da Inquisição no domingo de madrugada, e o prior de S. Domingos para  levar o guião de S. Pedro Mártir e preparar a procissão, juntaram-se as sentenças aos processos. A mulher de Diogo, D. Luísa, num pranto ainda se rojou aos pés do inquisidor-mor no Rossio, mas foi repelida por um meirinho. À tarde, chamaram-se os homens que deviam conduzir as estátuas dos condenados e as arcas dos processos e fez-se  cópia da lista dos presos para o alcaide, declarando os que levariam hábito penitencial, afogueado, mordaça ou carocha;para o inquisidor encarregue de presidir à entrega dos penitenciados aos que deviam acompanhá-los; para o meirinho, com o nome dos vivos e o dos defuntos cujas sentenças se leriam no auto e distinção das abjurações, para no mesmo modo fazer chegar os réus ao lugar onde ouviriam as sentenças e juntar os que houvessem de abjurar; e  para os notários, para que fossem dando os processos aos clérigos leitores das sentenças e abjurações em tempo devido.

Chegada a hora aziaga, pôs-se em marcha a terrível procissão: os dominicanos, com o guião do Santo Ofício; o solicitador, de vara alçada; os guardas dos cárceres, com mordaças para os que perdessem a compostura; os penitenciados,  vinte e oito, cada qual com seu familiar, onde seguia Diogo, de olheiras escurecidas e uns quilos menos e Luísa, inconsolável; o capelão do cárcere da penitência levando o crucifixo, rodeado de familiares com tochas; e logo depois, cinco relaxados: quatro homens e uma mulher com os religiosos que lhes assistiam, dois em estátua, por entretanto terem morrido no cárcere; e vários ministros da justiça, para os livrarem da violência de algum popular mais fanático.

Chegados ao cadafalso, presentes os que em nome de Deus julgavam da vida e da morte, subiu ao púlpito frei João de Sousa, esmoler-mor, que pregou o sermão da praxe, exaltando a religião católica e condenando as heresias, que leu o édito da fé, no qual se incitava a denunciar os heréticos e impenitentes. Perguntado a Diogo de Sintra se abjurava, o pavor duma morte terrível, para espectáculo da turba ignara e ávida de sangue, levou-o a tudo confessar, num choro convulsivo, simulando três vezes o sinal da cruz, iludido da salvação. A Mesa entendeu porém que o fazia apenas com o intento de escapar da morte, e confirmou a sentença. Depois de lida, o inquisidor mais antigo tomou sobrepeliz, estola e capa roxa, e com a autoridade devida às funções, procedeu à absolvição, seguido dos clérigos da freguesia, dos clérigos leitores e do capelão do cárcere da penitência, os quais com as varas tocaram os penitenciados, depois do que voltou o inquisidor ao seu lugar e se leram as sentenças dos relaxados. A de Diogo de Sintra, relatadas longamente as suas culpas, terminava com fatais palavras: Christi Jesu nomine invocato, declaram o réu convicto e confesso no crime de heresia e apostasia, e que foi e ao presente é herege apóstata da nossa santa fé católica, e que incorreu em sentença de excomunhão maior e em confiscação de todos seus bens para o fisco e câmara real e nas mais penas em direito estabelecidas”

O desenlace estava decidido. O meirinho entregou Diogo e os demais aos ministros da justiça secular que assistiam e os inquisidores selaram as sentenças com o selo do Santo Ofício, dando-as ao inquisidor mais antigo e ao desembargador que presidia no despacho dos relaxados, que condenou todos à morte, sendo Diogo de garrote, por ter abjurado, pois apenas se queimavam vivos os hereges profitentes. Os relaxados  voltaram ao Rossio, em procissão, onde o alcaide do cárcere da penitência os recolheu nas prisões, para mais tarde  serem açoitados, e  conduzidos à cadeia pública os condenados a degredo, depois de instruídos na fé.

Diogo de Sintra, um dos trinta e dois confirmados, soçobrou no garrote, com o pescoço despedaçado. Frente ao Terreiro do Paço, o rio ondulava revolto e o céu escurecia, periódicas testemunhas da cruel justiça dos Homens.

publicado por Fernando Morais Gomes às 20:26

04
Set 11

 


6 de Setembro de 1966, a serra de Sintra era motivo de notícia  na imprensa nacional e estrangeira, violento fogo lavrava com intensidade brutal na Penha Longa, Quinta de Vale Flor, Lagoa Azul e Capuchos, favorecida por elevadas temperaturas e constantes mudanças de vento forte. Seteais, Monserrate, a Pena e até S. Pedro estavam em risco. Todos os corpos de bombeiros do distrito de Lisboa foram mobilizados, aos quais se juntaram corpos das Caldas da Rainha, Elvas e Leiria, até forças militares integraram o dispositivo de luta contra o fogo, num total de quatro mil homens. Sitiada, Sintra era pasto das chamas, destruidoras e cruéis, assassinas cruzavam o ar, a vila dos turistas e veraneantes transformava-se em quartel improvisado para uma batalha que durou 6 dias, lançando cinzas e fumo a quilómetros, destapando um  clarão enorme e infernal nas noites intermináveis. Nos cafés, alimentos e bebidas eram fornecidos aos soldados da paz, que nunca em suas vidas haviam visto tal coisa.

Por esses dias, Luís fazia o serviço militar em Queluz, a rotina do quartel repartida entre serviços rotineiros e a angústia pela incerteza de uma indesejada chamada para o Ultramar. Aos vinte anos, noivo da Angelina, a oficina de torneiro mecânico do tio haveria de chegar para começo de vida, se tudo corresse bem uma casita de duas assoalhadas em Queluz estava debaixo de olho.

O incêndio apanhou-o no quartel, o Regimento de Artilharia Anti-Aérea Fixa de Queluz (RAAF) ficava na proximidade de Sintra, toda a manhã do dia 6 se haviam escutado sirenes dos carros de bombeiros a caminho dos pontos em perigo, a Emissora Nacional relatava danos consideráveis na vertente virada a Cascais, mas por toda a serra focos se espalhavam incontrolados, populares com ramos de árvores, cansados e impotentes, faziam o que podiam.  Preparava-se para almoçar uma feijoada, na messe, quando o comandante de batalhão mandou formar na parada, urgente, era preciso acorrer ao fogo, todos os meios disponíveis estavam a ser mobilizados. Reunidos os homens em viaturas, saíram a dar apoio. A abundância de mato por limpar, por haver sido proibido tirar mato da serra, ajudava a propagar o fogo, Luís, com mais alguns homens foi enviado a ajudar perto da Peninha, se bem que se denotasse no tenente alguma insegurança sobre onde atacar e quando. Nervosos, os comandantes dos voluntários dividiam-se sobre a frente prioritária, apagado num lado, com as velhas viaturas há muito em idade de reforma, reacendia logo noutro, zonas antes cerradas eram agora clareiras incandescentes. Envolta num braseiro, a Tapada do Mouco pouco tinha já de verde. O Antunes e o Fernandes, do pelotão de Luís, davam luta, homens do campo, rudes e habituados à mata, era inglória porém a luta do homem contra as chamas, Lúcifer parecia ter-se mudado para Sintra levando o inferno até lá, triunfante. Nessa noite, pernoitaram na serra, poucas e inseguras horas, umas senhoras do Penedo alcançaram leite e sandes de presunto. Passando no local, um jornalista do “ Diário de Notícias” dizia ao major que se falava em declarar o estado de sítio, e mandar vir pessoal de Santa Margarida, tais as proporções que o fogo tomava.

Durante todo o dia 7, exaustos e sem coordenação, Luís e os camaradas quais baratas tontas, acorriam onde o tenente, histérico, ordenava, a chuva de Setembro, que tão necessária era, tardava em aparecer. Ia de estio o Setembro, estranhamente rondando Sintra. Segundo os comandos, mais de cinquenta quilómetros estariam sob pasto das chamas, vestígios na Lagoa Azul indiciavam poder ter origem criminosa. O Antunes transpirava, de galho na mão, asfixiados pelo fumo, dois cabos tiveram de receber assistência e voltar para Queluz. Luís fazia o que podia, pensando em quando aquilo terminaria. Todo o dia a serra ardeu. Chegada a noite, o clarão laranja do apocalipse voltou a sentir-se no seu belo horrendo, persistente, o fogo levava a melhor.

O tenente, temerário, mandou avançar para o Alto do Monge, tentaria um corta fogo, e aberta uma frente, combater fogo com fogo, este inimigo, diferente do dos manuais, não tinha pernas nem balas, a estratégia pareceu-lhe adequada. Todos os homens tomaram posições na zona, bem no epicentro do incêndio, os carros dos bombeiros, civis, protegiam as povoações prioritárias. Aos poucos, cem anos de arborização perdiam-se sem apelo nem agravo, de Cascais a serra tinha o ar dantesco de dia de juízo final. Moto-bombas dos Lisbonenses passaram em correria por eles e reposta a água necessária concentraram-se  num local elevado, mas perigoso contudo. A dada altura, o Antunes gritou por trás dele, uma mudança do vento criara uma nova frente ali perto. Luís ficou apreensivo. Fogo pela frente e pelos lados, uma coluna ameaçadora chegando por trás, o tenente ordenava que se mexessem, ele próprio tentando posicionar-se. Mais vinte e um camaradas estavam naquele penedo, perto da anta do Monge, por ironia chamado Cerro da Queimada, não muito longe dos Capuchos. Aumentando o calor e o fumo, aos poucos deixaram de se ver uns aos outros, gritos lancinantes abafados pelo fogo invasivo escondiam o Inferno recolhendo novos prisioneiros, impotentes anjos naquele Setembro negro. Afogueado e de tronco nu, Luís viu-se perdido, já não via nem ouvia os camaradas. De relance, pensou na Angelina, olhou o céu, vermelho e absorto de si sentiu-se levar, colhido e febril. Possuída, a serra de Sintra ganhava mártires e os homens, heróis. Até que Lúcifer, desperto, regresse, ameaçador e inclemente, faminto de carne esturricada e impotente. Regressará?

publicado por Fernando Morais Gomes às 14:45

03
Set 11

 


Sendo apenas um português a viajar para Moscovo nessa semana, a agência destacou para acompanhar André, jornalista de viagens, um outro André, Andrei Esaurov, já entrado nos sessenta e reformado do KGB, falava um português razoável, que aprendera nos anos em estivera colocado na embaixada soviética em Brasília. Saudosista dos velhos tempos, fazia uns biscates como guia, quando o chamavam, que a reforma era pequena, vivendo num apartamento com 30 m2 nos arredores. Com guia quase exclusivo, o périplo tornou-se mais íntimo, tudo mudara na Rússia, Andrei sublinhava cada comentário com um suspirado “lamentavelmente”, nostálgico dos anos Brejnev e da Rússia como superpotência.

O hotel de André, na Trevskaya Ulitsa, era uma torre feia e cinzenta dos anos sessenta. Ao chegar, e apreendido o passaporte pelos dias da estadia, irritante hábito resquicio dos velhos tempos, três mulheres falavam umas com as outras no lobby, envergando roupas ousadas e retocando os lábios com batôn. Dirigindo-se a André, uma delas ofereceu-se para lhe mostrar a cidade, sinuosa, André, admirado mas divertido, quis saber por onde começariam, a resposta desfez veleidades turísticas:

-Pelo teu quarto…- e lambendo os lábios, piscou o olho a André, ainda saboreando o cocktail de boas vindas oferta do hotel e já atacado por uma mercenária de afectos. No cartão que suportava a chave electrónica do quarto, mais tarde, dobrou os vinte dólares que fecharam os olhos ao recepcionista, para que subisse ao 709. Começava bem, a viagem russa.

Ao chegar a Moscovo, André levava a cabeça cheia de imagens de gulags e purgas estalinistas, apesar de ter já passado um bom par de anos sobre a queda da URSS.Antes de partir, lera “Koba, o Terrível”, de Martin Amis, uma curiosa narrativa sobre Estaline, interessava-o sobretudo saber se ainda havia medo, Putin, falso democrata não era propriamente um campeão da democracia, Andrei, que no segundo dia pelas oito  já estava postado no lobby do hotel, desfiava a ladainha de ex-aparatchik:

-Lamentavelmente, as máfias tomaram conta do país, e ai de quem lhes faça frente. Antes da malfadada perestroika, havia ordem, éramos primeiros na agricultura, tivemos Gagarine…- e falando, com orgulho, notava-se uma vivacidade nos olhos até ali mortiços, decidiram começar a visita pelo imponente e artístico metro de Moscovo.

A cidade ainda remetia para o período anterior à perestroika, edifícios, ruas e lugares impregnados de uma estética ainda profundamente estalinista e pouco permeável à mudança, apesar dos bairros dos novos ricos na periferia, contrastando os mais recentes modelos da BMW, da Mercedes e da Audi com os velhos e ferrugentos Lada que ainda circulavam, muitos,  usados como táxis de ocasião. Querendo, qualquer condutor, a troco de uns rublos, levá-los-ia  aonde desejassem, bastando esticar a mão e mandar parar, Andrei, amigo de alguns, mandara-os estar sempre perto deles, para aparecerem como se passassem ocasionalmente, como ao fim de algum tempo constatou, uma pequena comissão sempre daria jeito.

-Lamentavelmente, as pessoas tem de se virar. É tudo muito caro na Rússia. Olhe, pechinchas, pode arranjar na rua Arbat, lá tem “camelô”, como dizem no Brasil, e pode regatear o preço do caviar, o Beluga do Irão é o melhor!. Venha!

A rua Arbat era a mais consistente metáfora da nova realidade, rua calcetada e sem carros, completamente entregue aos peões, aí tudo se vendia: cães, serigrafias, pins, t-shirts, fardas militares do antigo regime, com grande procura aliás, André comprou um chapéu do Exército Vermelho como souvenir. Para os lados da Praça Vermelha a par das antigas galerias do povo, agora transformadas em lugares aristocráticos, requintados e cuidadosamente decorados, onde as marcas brilhavam e o preço do café seleccionava o perfil social adequado ao espaço, pululavam jovens vestidos de calças de ganga Diesel, calçado Adidas ou Nike e blusões Roberto Cavalli. De facto, Moscovo mudara, pelo menos no imaginário. Na outrora marcial Praça Vermelha, onde Lenine deitado posava para os turistas, embalsamado no corpo e na História, uma velha babushka pedia esmola. Andrei suspirou, espetando mais uma alfinetada:

-Antes do alcoólico do Ieltsin , não havia nada disto! Olhe, aqui está a Krasnaya Ploshchad, a grande Praça Vermelha!. Aqui assisti aos gloriosos desfiles das nossas heróicas forças armadas! - e apontando com a mão aberta, indicava as estrelas nas torres do Kremlin, que chegaram a estar recheadas de diamantes e rubis, mandados lá pôr por Estaline. –aqui em frente eram as bancadas, o desfile vinha dali. Ainda me lembro de nos anos sessenta ali ver sentados a Passionária e Álvaro Cunhal, eram sempre convidados do Soviete Supremo. Cunhal era inteligentíssimo, conheci-o bem…- nessa altura, Andrei colocou um tom misterioso na voz, sugerindo saber mais do que dizia, um grupo de jovens com garrafas de vodka e já embriagados quebrava o impressivo silêncio da vasta praça moscovita. -Quer parar para almoçar?

-Sim, vamos…

-Eu vou a casa, volto depois…

-Deixe-se disso, Andrei, ora essa, é meu convidado. O que sugere?

Com os olhos arregalados pelo inesperado almoço grátis, Andrei sugeriu um restaurante “muito bom, mas caro, veja lá…, a conversão em rublos fazia do local onde Estaline comia nos anos de ouro acessível, pouco mais de dez euros, seria aí. No restaurante, de comida sobretudo da Geórgia, a terra natal do ditador, a comida e bebidas, todas indicadas ao peso no menu, fluíam, com Andrei tirando a barriga de misérias, um tradicional caviar, o preto, aconselhava Andrei, acompanhava uma óptima garrafa de champanska. Andrei parecia pouco à vontade, intruso no restaurante das elites, uma sala privada acolhia a mesa onde muitas vezes o ditador jantara e já ébrio provavelmente mandara opositores para férias na Sibéria.

-Lamentavelmente é muito caro para a nossa bolsa…- Andrei encolhia os ombros, devorando um canapé de salmão que há muito não deveria provar, os criados, reverentes com André, olhavam contudo de soslaio para o compatriota, sem nível nem dinheiro para tal lugar.

Com o passar dos dias, Andrei e André ficaram amigos, calcorrearam São Basílio, a Torre do Sino, o gigantesco canhão e o sino do czar, a igreja do Cristo Redentor, profusão de cúpulas douradas e passados gloriosos. No museu do Kremlin, já íntimo de André, o guia e ex-espião fez-lhe uma confissão meio marota:

-Sabia que  documentos na posse do KGB e recentemente desclassificados revelaram que Catarina a Grande morreu a ter sexo com um cavalo? Lamentavelmente…

Na última noite, depois de pagos vários almoços e jantares, e muitas gramas de vodka, e das também regulares visitas das “guias” na entrada do hotel ao quarto 709, André convidou o companheiro de oito dias para uma ida ao Bolshoi, estava em cartaz “Khovanshchina”, de Mussorgsky, André esperaria no átrio. Andrei, envergonhado, anuiu depois de insistência, teria de pedir um fato emprestado ao cunhado, o único que tinha, coçado e velho, traçara no armário. Como tardasse, André teve de entrar, no final do primeiro acto não aparecera ainda, sem telemóvel não tinha para onde o contactar. A peça decorreu, admirável, mas de Andrei, nada.

No dia seguinte, o da partida,como não aparecesse, ligou para a agência a saber do recente amigo, já decidira dar-lhe uma lembrança de 50 dólares, pelo trabalho e pelo arrevesado português do Brasil. Uma moça, em inglês, informou que Andrei Sergeievich Esaurov aparecera morto em casa na noite anterior, preparava-se para pôr uma gravata, depois de se vestir para sair. AVC fulminante, concluíra a polícia. Desaparecida a Rússia dos proletários e heróis do socialismo, mais uma testemunha desse tempo e agora guia acidental, desaparecia também, deserdado dos novos dias. Lamentavelmente.

publicado por Fernando Morais Gomes às 15:39

02
Set 11

Dezanove anos acabados de fazer, enamorados, a estação de Santa Apolónia era a partida para um mês de inter-rail pela Europa, em segunda classe, a possibilidade de ver paisagens até aí só dos postais e revistas. E sobretudo, tempo para os dois. Sofia e Jorge, convencidos os receosos pais de que o mundo ia mais longe que Cacilhas, lá partiram num primeiro de Agosto, quente e tipicamente lisboeta, com mochilas e cantis, a repetir o que já o tio Artur havia feito anos antes, sempre relatado com grande vivacidade e saudade.

O velho Sud-Express, testemunha de muitas partidas dolorosas e chegadas excitadas, de emigrantes a salto e camones louros que de fora traziam a Europa ao rincão, em tempos de chumbo e melancolia, era a porta de embarque para um primeiro banho de Europa para muitos que fora de portas pouco conheciam. Jorge delineara um plano, primeira paragem Paris, vinte e nove horas de comboio, depois se veria. Aos castanhos de Portugal e Espanha, recortados pelos picos nevados dos Pirinéus, a Europa surgiu molhada, em Irun, na mudança para comboio mais moderno e paisagens de vinha e castelos, a Provença e a França industrial. A verdadeira Europa começava aí.Paris foi uma sensação esquisita: a tão aguardada Cidade Luz, fosse pelo tardio da chegada ou pelo cansaço pareceu sombria e soturna: uma ratazana coquette serpenteando nos carris em Austerlitz, já na gare, um clochard sem abrigo dormindo e fazendo duma caixa de sapatos almofada. Paris, enfin!...

Na pousada da juventude, apesar das camaratas separadas, trocaram as voltas do alberguista e partilharam o beliche na dos homens, um casal finlandês, cúmplice, fazia o mesmo, Paris sem amor não era Paris. Baixinho e abraçando-a, nua,  Jorge sussurrou-lhe uns versos de Éluard: et d’abord j’ecriverai ton  nom: liberté,em liberdade se entregavam, mochileiros de esperança, pelos comboios da Europa. O dinheiro não era muito, mas a diversão imensa: passeios em Pigalle, fotos no Moulin Rouge, a aventura dumas ostras no Boulevard des Italiens, o pai emprestara algum dinheiro, recomendando moderação, que se danasse, a vida são dois dias. Ao fim da segunda noite, na esplanada do Café de La Paix, não estavam Breton nem Hemingway, mas dois portugueses e o mundo, razoáveis exigindo o impossível, despreocupado, um acordeonista tocava velhas canções de Chevalier e Trenet.

Mochilas às costas, a peregrinação continuou, Jorge e Sofia cada vez mais convictos de trilhar a iniciação a um futuro feliz, ele um dia engenheiro, ela professora, as neves dos Alpes e a frieza da Suíça foi a paragem seguinte, marcial, teutónica, duma beleza gélida e formal. Dez graus em Agosto não convidavam a ficar muito, nem o franco suíço dos ricos, ao fim de uns dias, rumavam já para Itália, a bella, e a Veneza, musical, doce, de Rialto e Santa Lúcia, tortellinnis e doges, a melhor cerveja até então, convencia. Em Veneza-Mestre, um encontro insólito: Rogério, um amigo de Almada, solitário com a sua mochila pela Europa também,  roupas a precisar de lavagem, uns copos em Murano para assinalar o encontro da agulha em palheiro transalpino. Logo decidiram seguir os três daí em diante, comemorado com grande festa em La Giudeca no velho albergue, cacofónico e ruidoso, não fosse ali Itália e a maioria latinos. Rogério era de Direito, talvez pela novidade após duas semanas só com Jorge, Sofia passou a prestar mais atenção ao novo companheiro e às suas conversas, olhos azuis e meio aloirado, fanfarrão embora, a Jorge ao fim de uns dias não escapou o interesse e gentilezas com que cobria Sofia, que se derretia, ingénua. Falava italiano, e bem, para Sofia o meio sujo amigo parecia um garboso príncipe florentino, condottieri de mochila sulcando os trens da Europa. Jorge achou por bem arranjar um pretexto para se livrar dele, seguirem cada um para seu lado, e recuperar Sofia só para si. Sugerindo Rogério um salto a Viena, Jorge de imediato optou pelo sul, perto de Trieste, a enigmática Jugoslávia é que era, ele que não se prendesse. Tiro ao lado, Rogério também achou bem o sul, e lá foram os três, Dalmácia abaixo, num terreno menos palmilhado pelos mochileiros de Verão, sem néones nem comércio, e gentes com ar triste, do lado de lá da Cortina de Ferro. Rogério estava em terreno virgem, o seu italiano não adiantava, em Belgrado, a língua impronunciável e a falta de estrangeiros fazia-os alvo dos mirones, fixados nas velhas Lévi’ s azuis, símbolo do Ocidente e consumo. Certa tarde, já cansados uns dos outros, e Jorge de Rogério, sobretudo, discutiram sobre o autocarro a apanhar para o albergue, Sofia, amuada, não quis ir com Jorge ou Rogério e voltaram cada um por si, Jorge, mais metódico e com mapas, chegou primeiro, esperando ufano no átrio já com duas cervejas despachadas. Foi a gota no copo cheio: Sofia pegou nas coisas e decidiu seguir sozinha, farta de garotos e rivalidades. Jorge e Rogério tentaram demovê-la, mas foi inglório, nessa noite seguiu sem eles no primeiro comboio que apareceu, Viena, soube Jorge mais tarde, o Danúbio porém pouco azul, só e amuada ao fim de três semanas. Zangados e culpando-se mutuamente, Rogério e Jorge seguiram viagem igualmente. Jorge de regresso a Veneza, Rogério para Atenas, semanas depois de partirem mundo fora o mundo que os juntara à saída de um trem, separava-os agora em mais uma gare de comboio. Não foi sem algum prazer mórbido que Jorge viu Rogério, com a pressa, embarcar em Belgrado no trem errado, com destino a Bucareste, julgando ser o de Atenas, ignorando que sem visto logo seria recambiado para trás. Que fosse, seguiu para a sua linha, era a sua pequena vingança, ele que se virasse.

Contemplando a verde paisagem da Bósnia, pobre e num comboio velho e podre, Jorge foi magicando na vida, nas promessas de felicidade de Paris, e na frivolidade das mulheres. La donna é mobile, cantava a ária de Verdi, e bem certo era. Reentrando em Itália, voltou a Veneza, dali iria a Pisa, Génova, a riviera francesa depois. Sózinho, decidiu-se a fazer um diário, à falta de Sofia e dos beijos quentes no beliche. Com a mochila suja, e já sem roupa limpa, sentou-se a ver os pombos em São Marcos, o relógio secular marcava as seis da tarde e a praça fervilhava de turistas e ruidosos gondoleiros, num caderno deu-lhe para escrever um poema. Lembrou Dick Bogarde e o filme de Visconti, em magotes, os turistas capturavam tudo em flashes intermináveis. Numa esplanada, já perto do Grande Canal, a silhueta morena e magra duma mulher jovem, sentada de costas para ele, despertou-lhe a atenção, estava só e escrevia também, desenhava uma torre Eiffel, reparou de longe. Forçado o encontro, era Sofia, a irritada mas bela Julieta que ele, Romeu idiota, deixara escapar por causa dum reles Capuleto da Margem Sul. Sem que ela abrisse a boca, recitou, em francês:

-Et d’abord, j’écriverai ton nom: liberté !...

Um impulsivo beijo cinematográfico foi aplaudido por japoneses que logo o registaram em foto, um gondoleiro de bigode retorcido, sorrindo, aplaudia, comentando em voz alta: Ecco!, sei Venezia, sei l'amore..., arlequim e columbina reencontravam-se, saudados pelo esvoaçar das dezenas de pombos arrulhando sobre a basílica.

Depois de Nice e Marselha, um cansativo e enriquecido regresso a casa, a certeza dos perigos do amor ressaltada e a segurança da velha cama em casa, retemperadas as energias, anteviu dias de felicidade e futuro. Fora um mês de alegria e descoberta, do mundo, mas deles sobretudo.

Enquanto isso, na fronteira romena, um atarantado português sem visto era apertado pela milícia de Ceausescu. Sem dinheiro, e finda a validade do bilhete, ainda passaria por apertos antes que esfomeado e sujo voltasse à velha e agora saudosa Santa Apolónia, de muitas partidas chorosas e também alegres chegadas.

publicado por Fernando Morais Gomes às 16:02

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