por F. Morais Gomes

09
Out 11


O domingo de Outono estava solarengo, sol baixo e fora de época. Intruso na praia em tempo de vindima, Bruno rumou à cidade, deserta como há muitos domingos para cá, desde que fugindo os moradores se mudaram para o subúrbio, escapando das rendas caras e dos prédios em ruína. Ao domingo, Lisboa era pachorrenta e ausente, ruas vazias e centro despovoado. Sob um prédio bem central, um sem abrigo dormitando dava voltas na caixa de papelão dum plasma de último modelo, aumentando os tamanhos aumentavam as suas chances de um  abrigo de corpo inteiro, a cidade inteira como quarto, o céu como candeeiro. Após um galão num tasco decadente, decorado com ovos verdes e jaquinzinhos da véspera, rumou à Graça no 28, celebrado amarelo esventrando as aguareladas vistas de Lisboa, dolente e intemporal. Velhinha e mal tratada, a cidade era sempre familiar, rica de passados, tragédias e alegrias, manjericos e canastras de peixe, mourisca e meridional, varina do rio e da viela, aristocrática contudo, silenciosa testemunha de idos autos de fé e chegadas da Índia, de especiarias e escravos, e também da peste e dos cercos. E a luz, esse azul rasgado, só nosso, cegando de radioso, quente e colorido.

Ao contrário do céu, iam cinzentos e perigosos os dias e tempos. O espírito em baixo, os amigos desalentados, uma súbita vontade de partir sem saber para onde, sem mapa para a felicidade ou plano B para um amanhã sem planos. Uma prostituta velha saía duma pensão familiar de décadas, ambas velhas e a cair, observador, Bruno sentou-se junto ao miradouro, onde sobreviventes de vidas sumidas se arrastavam com as bengalas a caminho de mais um campeonato de sueca, ponta de cigarro ao canto da boca, rugas marcadas e veteranas. Uma turista nórdica fotografava, a miséria fica sem bem nas fotos, visual poema radiografando almas em silêncio. A manhã passava devagar, numa velha tasca deteve-se tomando um licor, familiares, os eléctricos chiando cruzavam-se num ritual lisboeta.

Curiosamente lembrou Fernando Pessoa. Como ele agora, imaginou-o sulcando a cidade, só, bebendo aguardentes em tascas, vendo os mesmos eléctricos, o mesmo céu azul, quem sabe outras prostitutas e velhos pelo jardim. Há uma magia em Lisboa, e a sua poção é o fado, intemporável, repetível, pensava.

Tocando o telemóvel, Susana perguntava por ele, saíra sem avisar, um desejo irresistível de deambular trouxera-o à cidade de comboio, não se inquietasse, voltaria pela tarde. Um casamento rotineiro, esfriando a paixão, aguçava o desejo de solidão, a pensar nas coisas, prisioneiro do tédio e das diárias idas para o emprego, a mesma bica à mesma hora, a mesma imperial no final do dia, espectral e sórdida.

Descendo à Baixa, a pé, tocava o sino na Sé, o casario envelhecido despertava aos poucos, vindas das missas, senhoras idosas com ciáticas e reumáticos voltavam a casa. Por momentos pareceu-lhe ver a gabardine coçada de Pessoa a seu lado, a parar para mais um brandy, antes de descer a R. Augusta a marcar o ponto no Martinho. Faltava um Martinho a Bruno, cansado do café do Baptista, mausoléu de chamuças requentadas e bolos de arroz intragáveis, até nisso era execrável o subúrbio.

Melhor seria voltar a casa, enfiar-se num Chopin com gin ou num Duke Ellington de reserva, Susana fora ver a mãe ao Pendão, entretanto, um domingo horroroso em perspectiva, fugido da cidade nua refugiar-se-ia no quarto, esperando-a, sonhando cidades felizes e futuros construídos no papel, no seu mundo de  fortuito escritor por terapia. Voltou ao comboio, esse fantasmagórico comboio de terrores mundanos, vidas perdidas e outras sem salvação, olhares aflitos arrastando-se na selva grafitada do depósito de existências, suburbanas, revoltadas, vencidas e cerrou os olhos, ausente, exilado.

Na estação de Queluz, novo café, faria horas até Susana voltar da visita à mãe, já não tinha pachorra para os queixumes de D.Berta, os atrasos da pensão e os bicos de papagaio. Estranhamente, pareceu ver de novo o vulto de Pessoa ao lado, devia ser do licor que bebera junto à Graça, que faria o poeta de Orpheu naquele PALOP desqualificado, sem Chevrolet nem absinto. Tinha razão de ser, pensando bem, lembrar Pessoa ali, perdido entre vidas perdidas num  apeadeiro a leste da esperança.

Susana chegou entretanto,recriminando a ida a Lisboa sem avisar, de volta a casa, voltou a sair, a aviar um xarope na farmácia. Letárgico e aliviado por mais uns momentos a sós, Bruno enfiou-se no quarto, pondo um Mussorgsky em tom baixo, saudosista, buscou um velho álbum de fotografias, confortando-se com os rostos alegres e vivos dum passado feito a sépia. Curioso como o passado era sempre feliz e os rostos sorridentes e soltos, nunca as fotos de família transmitiam angústia ou pesar, crença no futuro, rostos alvos e sem acne, glamorosos mesmo, dos tempos em que se punha o melhor fato para ir tirar o retrato.

Tocou o telefone, interrompendo a introspecção de Bruno. Era João, colega do escritório, convidava-os para um fondue chinês lá em casa, estavam só os dois, os miúdos com os avós em Odemira. Aceitou, pensando bem, o domingo fluía já depressivo demais, o Reguengos de 96 do João depressa reporia tudo no sítio, devolvendo-o à rotina e ao presente. Antes, e já regressada Susana, foi tomar um banho. Ao arrumar o álbum na gaveta, numa foto solta do casamento do avô Jesuíno descortinou de relance um vulto posando com os noivos sorridentes. Era Fernando Pessoa, ou o diabo por ele, com um ar melancólico parecia olhar para fora da foto fitando Bruno e dando a entender não ser outro senão ele.

Bruno esfregou os olhos, fechou a gaveta e meteu-se no chuveiro. Chegava de um  domingo cinzento sob um luminoso e magnânimo céu azul.

publicado por Fernando Morais Gomes às 14:12

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