por F. Morais Gomes

24
Jan 11

Manhã de Dezembro, a fria aragem matinal de Sintra aconselhava agasalhos, com a crise a marcar as conversas e as presidenciais a encher as televisões .Com o frio, a fila do centro de emprego não tinha mais de trinta pessoas e a loja chinesa colocara uma banca de cachecóis  saliente à entrada. Bruno Giestas como habitualmente dirigia-se para o banco, telefonemas e reuniões, em Março mudaria para o balcão do Cacém. Pouco depois das nove, um Peugeot vermelho estacionou à porta e de lá saíram dois jovens, passa-montanhas na cabeça e roupa em desalinho ,postando-se alguns minutos a sussurrar junto à caixa do multibanco, sem a utilizar. Bruno começou a achar a situação irritante, clientes  queriam usar a máquina e desistiam, achou por bem fazer um reparo, assegurava sozinho o serviço, a Marta fora ao café. Mal abriu a boca, um sacou de uma seringa e ameaçador mandou que passasse o dinheiro da caixa para um saco que levava dobrado.Ainda tentou dialogar, mas  o outro arrastou-o para um canto e amarrou-o , longe da vidraça que dava para a rua, sacando todas as notas à vista, mais de  vinte mil euros e fugindo depois à pressa, que chegava um cliente e não convinham testemunhas. Ainda amarrado e com o coração acelerado, tentou registar as caras dos ladrões, um moreno e magro,aí vinte e cinco anos, brinco na orelha direita, o outro mais familiar, da Portela talvez, aparentava dezoito anos, cabelo ruço e olhos verdes.Depois de desamarrado  ainda correu para a porta, mas já o Peugeot sumia veloz na direcção da Vila. A GNR tomou conta da ocorrência e Bruno retomou a rotina, não sem que nos dias seguintes várias vezes relatasse o seu primeiro assalto em dez anos de banca, como os havia enfrentado sem medo, um murro certeiro nos dentes de um, se não fosse serem dois…

Semanas mais tarde, de novo num dia frio e invernoso,  novo stock de gorros a três euros na loja chinesa, os jornais anunciavam que os mercados continuavam a pressionar a dívida,o PSI-20 débil, até as acções do BNES desvalorizavam.Uma torrada e uma meia de leite  e começava mais uma semana para Bruno. Desde o assalto ,a videovigilância fora reforçada, e pelo sim pelo não adquirira um spray de gás pimenta, religiosamente guardado na gaveta direita. A filha fazia anos e ainda faltava a prenda, pedira um Ipad mas ainda eram caros, uma roupa na Zara e o jantar no chinês de S. Pedro com a família e amigos selariam os dezassete anos da Mafalda.

À noite, pouco passava das oito, os amigos dela iam chegando. O Jaime, filho do Borges da seguradora de Lourel, as amigas do voleibol, o Toni,agora  DJ na discoteca da praia. E um novo, que não conhecia, o Marco, atrasado, roupa sóbria e ar franzino, um peluche de prenda para a Mafalda e abraços fraternos aos amigos, a Bruno um  cumprimento respeitoso, pai de amiga oblige. depois de sentados, com a conversa a ficar solta e Marco mesmo frente a si, Bruno começou a descobrir familiaridade naquele rosto, asseado e pacato,quase tinha a certeza de haver visto aquela cara antes e meteu conversa:

-Então ,és colega da minha filha?

-Sim, andamos na Portela, em Santa Maria, na mesma turma.

-O Marco é um querido, pai, aliás é o melhor aluno do 12º lá da escola- interrompeu Mafalda, algo mais que simples colega a  escapar no tom de voz, olhar cúmplice na sua direcção.

-Muito bem…Ia jurar que te conhecia de algum lado.. mas está bem, se calhar é do banco, entra lá muita gente, chega-se a uma altura em que julgamos conhecer toda a gente…

-O senhor trabalha num banco?Qual?

-O BNES,de Sintra, costumas lá ir? Se calhar o teu pai… Até foi assaltado o mês passado, não ouviste falar?

Marco não recordava  e ficou em silêncio mas passados momentos saiu para ir à casa de banho. Dez minutos depois, o telefone de Mafalda tocava e do outro lado  o amigo alegava uma chamada da mãe, sentira-se mal e tivera de sair às pressas, pedia desculpa, Mafalda, tristonha, alegava compreender.Bruno, atento, sondou-a:

-Algum problema, Mafaldinha?

-Era o Marco,pai, a mãe dele adoeceu de repente e teve de sair. Espero que não seja nada de grave, as coisas estão a correr-lhe bem agora, até lhe saiu o totoloto o mês passado, pagou  uma rodada no Maçãs à malta toda...

-Saiu-lhe o totoloto? E foi coisa que se veja?

-Foram vinte mil euros, altamente, mas ele tinha jogado a meias, mesmo assim ainda foram dez mil .

De repente fez-se  luz no cérebro de Bruno: a cara familiar, vinte mil euros, o tal do Marco só podia ser um dos assaltantes do BNES, agora bem vestido e com ar de sonso. Sem levantar suspeitas foi tirando nabos da púcara, os restantes colegas já animados acompanhando os noddles de camarão com um tinto espirituoso:

-E sabes o que ele pretende fazer com esse dinheiro todo?

-Vou-te contar uma coisa, pai, mas promete-me que não ficas zangado. Eu e o Marco  curtimo-nos bué.Ele é muito fixe,quando o conheceres melhor vais ver, o dinheiro é para pagar os estudos, coitado, tem média para entrar em medicina mas o pai está desempregado, a mãe é epiléptica…- foi explicando, entusiasmo na voz.

Bruno embatucou, desconfiado . Nos dias seguintes seguiu-os de carro à saída das aulas,felizes e descontraídos a caminho do Académico ou do autocarro, jovens com sonhos apanhados nos dias  cinzentos dum Portugal de chumbo. Aos poucos esqueceu a história do assalto, o seguro do banco cobrira o prejuízo, à polícia lá foi adiantando não lembrar pormenores dos assaltantes. Um genro médico e a felicidade da filha valiam mais  que isso tudo e afinal até podia não ter sido ele, concluiu, rotina do banco retomada, o gás pimenta à cautela ao lado.


publicado por Fernando Morais Gomes às 11:30

Fernando, o que eu me divirto com estes seus relatos tão frequentemente desconcertantes. Este está fantástico. Aqui para nós, tomara que seja pouco lido por candidatos a medicina em situação financeira crítica :-)
Abraço desde o Atlântico.
ZM
Zé Maria a 24 de Janeiro de 2011 às 15:46

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