por F. Morais Gomes

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Mai 11

Repetia-se diariamente, dois sacos de milho, outro de pão humedecido, os pombos da Correnteza, aéreo exército de Sintra chegavam dos beirados e janelas, dos plátanos e das antenas, para o matinal bodo que o velho Ezequiel para eles preparava, seus alados amigos, rasgando os céus do Rio do Porto e deixando no horizonte o azul libertador do oceano e a fértil várzea.

Serpenteantes patrulhas dos ares do burgo, arrulhando ora exprimiam contentamento pelo sol e pela cor que lentamente a Primavera devolvia, como silenciosos calavam a visão de mais uma injustiça, mais um pedaço da Vila dos Pombos fenecendo, por incúria dos homens, a quem faltaria visão e milho para tais pombais.

Ezequiel conhecia os seus meninos, para cima de cem, à sua aproximação vindo das Murtas de todos os lados acorriam a saudá-lo, do telhado da Câmara e dos plátanos renascendo, após os sanguinários cortes do Inverno, o empedrado do jardim de repente repleto de bicos e asas, columbinas companhias vindas dos céus da pachorrenta urbe, onde alheios, acelerados carros e mais acelerados humanos corriam desencontrados para rotineiros empregos e escolas, hospitais e pastelarias. Ezequiel, viúvo e solitário passava alheado, o seu mundo eram os seus pequenos companheiros, ora arrulhando contentes, ora rasando rasteiros sobre os telhados vermelhos.

De plumagem cinzenta, mais clara nas asas que no peito e cabeça, cauda riscada de negro e pescoço esverdeado, Óscar era um pombo diferente, a Primavera trazia-o atrás duma fêmea assídua do telhado do Hotel Central. Macho orgulhoso, fazia-lhe reverência e ambos se acariciavam na cabeça com frequentes arrulhos, alimentando-se mutuamente. O ninho estava já feito numa plataforma de ramos, antes que Junho chegasse novos filhotes piariam contentes e promissores. Perigosos funcionários da Câmara procuravam dar-lhes cobro, como se de ratos com asas se tratassem, mas ainda assim resistiam, unidos.

Naquela manhã, Óscar, sempre o primeiro a comer da mão de Ezequiel, vinha estranho, o velho que o vira nascer e ao pai, e ao pai do pai, ficou curioso, o amigo de penas acabrunhado desabafou, denunciando falta de apetite:

-Que se passa, velho amigo? Onde está essa pujança, aquele rei de Sintra conduzindo o mais belo bailado que estas serras já viram?- indagou o velho Ezequiel.

Óscar trazia um olhar perdido, mortiço, conhecia aquelas cúpulas e troncos, todas as estátuas e pelourinhos, mas sentia-se angustiado:

-Ezequiel, há quantos lustros renovamos este  encontro diário nas sombras da Correnteza?- perguntou, abúlico.

-Muitos, companheiro, muitos. Do tempo em que o Zé Alfredo ali sentado na estátua fazia aguarelas da Vila e a velha Rita com a cesta à cabeça vendia queijadas na Volta do Duche. Já lá estão, todos!- o velho recordava velhas figuras, cúmplices de passeios e charlas, só os pombos lhe restavam, os outros por certo  voando noutros céus mais etéreos.

-A Vila está a morrer, Ezequiel, todos os dias o sinto. Levaram a cúpula do Paris, o Netto foi ocupado por ratos. Até cães vadios tomaram a Casa da Avó. Está tudo entregue aos bichos!...- o pombo, vigilante de outras Sintras estava melancólico, em silêncio olhava o palácio, majestoso mas deixando transparecer mazelas e  alguma incúria.

-A Vila mudou, Óscar, já lá não nascem humanos e os que restam partem, rendidos aos mercadores de queijadas e aos automóveis invasores. A Vila dos Pombos corre perigo, meu amigo!

Qual velha senhora que com pó de arroz disfarça a crueldade das rugas e a fragilidade da carne, a Vila envelhecia iludindo as visitas com obras de fachada e supostas renovações para que as hordas de calção e óculos escuros se contentassem durante as poucas horas que a invasão durava. O pombo, agora no ombro de Ezequiel, como que revelando um segredo que só eles partilhavam, continuou:

-A Estefânea morreu, Ezequiel. Dá dó o ginásio do Sintrense, os grafittis dos vândalos, os prédios em mau estado. Um destes dias pousei na estátua do Cambournac, e o velho médico chorava, coitado, antes sereno no meio das árvores, agora inerte polícia de um infernal trânsito!

Uma fêmea arrulhando chegou entretanto ao braço de Ezequiel, era a companheira de Óscar, no telhado do Hotel Central dois cúmplices ovos brancos renovavam promessas de primaveras no mundo dos pombos. Óscar, revigorado, acariciou-a com o bico, Ezequiel, pau de cabeleira sorria, a sua pomba partira à muito. Esvoaçando os dois, logo seguidos do fiel bando que ao passar escurecia os céus de Sintra, partiram a patrulhar Seteais e a beber da Fonte da Pipa, no dia seguinte regressariam, como muitos antes deles, no eterno renovar da partilha de pão e milho que só na Correnteza existia. Ezequiel, deixando-se ficar, sentou-se num banco mirando a serra, qual pombo velho partiria também ele um dia, os dias eram cinzentos mas uma réstia de azul invadia-lhe a alma, outros Óscares e outros Ezequiéis renovariam o voo de liberdade na Velha Senhora.

publicado por Fernando Morais Gomes às 04:40

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