por F. Morais Gomes

29
Set 11

Eliminar o caos, a dor, o sofrimento, tal o desígnio do engenheiro Ezequiel Levi, judeu e cabalista nas horas vagas, interprete do Livro da Formação, o Sepher Yetsirah dos seus antepassados marranos, iniciado maskilim e céptico do Talmud. Encafuado no retiro da Ulgueira, em cada número ou acento das escrituras descortinava sentidos escondidos, ao procurar reconhecer fontes negativas na mente e coração, Ezequiel acreditava estar a contribuir para uma interioridade positiva, liberta de egoísmos e mais próxima de Deus. Separado aos sessenta de Greta, uma norueguesa com quem casara numa altura em que trabalhara numa plataforma de petróleo no mar do Norte, reformado e dado agora às espiritualidades, vivia só e junto ao mar, com um gato e uma governanta, a Cecília, quase sessenta também, que de tudo o aliviava para que se dedicar em exclusivo aos seus estudos e elucubrações. Já entrado nos setenta, divorciado e sem herdeiros, fizera testamento a favor de Cecília, deixando-lhe a casa da Ulgueira uma vez que partisse deste mundo, só ela o aturava nesse fim de vida, retirado e dedicado ao misticismo, era justo que assim fosse recompensada. Jurando nada querer, Cecília ia aguentando as taras do velho Ezequiel, ciente de que, apesar das excentricidades, a segurança de uma casa compensaria a paciência de santa que tinha para com ele. Ezequiel, em dias de maior excitação, procurava doutrinar a serviçal, pessoa simples e de poucas letras, doutorada sobretudo nuns maravilhosos pastéis de feijão com que aconchegava o estômago do espiritualmente esfomeado aprendiz de cabalista:

-Sabes, Cecília, a Cabala ensina-nos a que todo o ser humano é uma obra em execução. Qualquer dor, desapontamento ou caos que exista nas nossas vidas não ocorre por fatalismo, mas apenas porque ainda não terminamos o trabalho que nos trouxe até aqui. É preciso libertarmo-nos do domínio do egoísmo e criar uma afinidade com Deus!.

-Senhor Ezequiel, eu para mim, já faço a minha parte. Todos os domingos assisto à missa aqui na Ulgueira, e sou muito devota de Nossa Senhora do Cabo, fique sabendo!- rematava a velha criada, para quem as centenas de calhamaços espalhados pelo chão mais não eram que um entrave para limpar o pó, tudo queimado ainda era pouco, pensava.

-É preciso a verdade, enfrentar o mundo com paciência, ter empatia com o nosso semelhante…- repetia, esbracejando pela sala da velha casa, num roupão de cetim que lhe conferia um ar aristocrático.

-Sim, sim, lá empatia não tenho, graças a Deus, que o Dr.Botelho diz que estou rija, felizmente, mas olhe, até costumo ajudar o Exército de Salvação de Colares, e tudo…

Absorto, Ezequiel mergulhava na obra do rabino Kook, o primeiro rabino ashkenazi de Israel e fundador da Merkaz Harav, cabalista e afamado estudioso da Tora, devorando versões traduzidas do Livro da Criação, de Abraão, o famoso Sefer Yetzirah e do Bahir, do rabino Ben Hakana, sob o signo da busca espiritual. Ezequiel procurava agora a paz e a verdade de que andara afastado em anos de vida materialista e mundana, dependente do álcool e com uma relação atribulada com Greta, que voltara para a terra natal dez anos antes, depois dum divórcio já entrado nos sessenta.

-O Zohar diz-nos que a alma humana possui três elementos, o nefesh, o ru'ach, e o neshamah. O ru'ach, a alma mediana, contém as virtudes morais e a habilidade de distinguir o bem e o mal. Como achas que está o teu ruach, Cecília?

Cecília encolhia os ombros, já habituada às excentricidades do velho. Não fosse a promessa de herdar a casinha depois dele bater a bota e já se teria despedido.

Alguns meses ainda durou Ezequiel devotado aos seus livros e estudos, procurando uma tardia redenção no fim dos seus dias, sabedor de ter uma doença terminal refugiava-se no estudo da alma, diariamente visitado pela Cecília, que lhe fazia a lida da casa e as refeições, voltando para o marido ao final do dia.

Um final de tarde, já no Verão, Ezequiel finou-se, em paz, lendo na sua biblioteca e partindo finalmente para a terra do Deus de Abraão. Como combinado, Cecília providenciou um enterro judaico, em Lisboa, aos livros e papeis encaminhou para Sintra, à guarda do Arquivo Histórico, que em sua homenagem abriria uma nova sala com o seu nome. O principal seria passar a casa para seu nome, uma vez que fosse lido o testamento no qual era única beneficiária, e foi isso que procurou tratar no cartório em Sintra. Para pasmo da devotada governanta, do testamento cerrado constavam apenas frases enigmáticas da cabala, e a doação dum serviço de mesa que Cecília tanto gabava. Com medo de a perder e aos seus cuidados, Ezequiel nunca confessara que a quando do divórcio de Greta, a casa da Ulgueira ficara para ela, com reserva de usufruto em vida do engenheiro. Depois de morto, o safardana pregava a partida à desinteressada Cecília, revelando que a sua alma mediana, esse ru'ach da virtude, do bem e do mal, mais que prática assimilada não passara afinal de sórdida judiaria enredada por tortuosa cabala, movida não pela prática do bem e da redenção, mas mais atenta aos valiosos e quase gratuitos préstimos de fada do lar e aos deliciosos pasteis de feijão da empregada.

                                

publicado por Fernando Morais Gomes às 11:17

Fernando,
Agora tens aí mais uma história real, mas que parece uma das tuas :-)
Essa história das Casas Novas dá uma boa série de posts aqui para o café com adoçante, sobretudo considerando que foi justamente num café que o indivíduo foi capturado.
Abraço.
Zé Maria a 30 de Setembro de 2011 às 16:51

Pois é, e eu até conhecia o homem de vista. Talvez saia uma em próximas vezes. um abraço
Fernando
acanetadebyron a 30 de Setembro de 2011 às 17:44

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