por F. Morais Gomes

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Out 10

O homem da gabardina branca chegava a Sintra, entardecia. Walter Schellenberg, oficial de Ligação da polícia alemã e elemento da Gestapo, ia encontrar-se no Hotel Nunes com o  capitão Fritz Kramer, chefe da III secção de contra-espionagem da Abwehr. Depois da proposta de Ribbentrop para que o Duque de Windsor, que havia abdicado para casar com a americana Wallis Simpson, fosse sondado para reocupar o trono de Inglaterra após a previsível vitória das forças do Reich, este, chegado a Portugal na Primavera, abordado num jantar no hotel Avis mostrara-se reticente. O Führer, furioso, mandara então raptá-lo em Portugal, onde se encontrava naquele Verão de 1940.

Primeiro pensara-se na remoção do casal  para um país neutro, sob controlo dos alemães, o que deveria ocorrer durante uma partida de caça, na fronteira luso-espanhola, onde o duque mostrara interesse em participar, mas, quando se soube que ele não ia e que provavelmente não estaria na disposição de seguir, Ribbentrop ordenou o seu rapto, pela força, se necessário, operação a que agora os dois germânicos davam andamento na pacatez daquela Sintra a viver mais um Verão.

Schellemberg e Kramer não passavam despercebidos ao groom do hotel Nunes, na Vila.Ar teutónico, cabelo louro e olhos azuis, supostamente turistas de visita aos palácios. No encontro de ambos foi transmitida a ordem de o raptar e transferir para a Alemanha.

-Heil,Hitler!-saudou discretamente Schellemberg, desde há semanas colocado em Lisboa,  logo tomando lugar num cadeirão da sala de chá.

-Heil, herr Schellemberg.- saudou marcial o capitão, cicatriz na cara, um estilhaço durante a ocupação de Danzig, um ano antes.O Reich tem planos para si. Sabe que o ex-rei Eduardo VIII está neste país?

-Ya, Hauptmann Kramer, todos sabem, temos inclusive dois homens infiltrados como  mordomos na casa do banqueiro onde está alojado!- informou, profissional nunca apanhado desprevenido, o duque estava alojado na casa de Ricardo Espírito Santo, no Estoril, todas as secretas vigiavam, o capitão Agostinho Lourenço, chefe da portuguesa PVDE ,instruído pelo Presidente do Conselho, tinha sempre seis homens seguindo os passos dos duques.

-Pois é preciso levá-lo em segredo para a Alemanha!-e passou a expor:O plano é o seguinte: no dia 29 de Julho os duques estão convidados para um jantar aqui perto de Sintra, em casa do  dono duma transportadora marítima, Mário Conceição Silva, que é da nossa confiança. Cecil Nassenstein, e Volbrecht, dos nossos serviços aqui em Lisboa levarão o duque após o jantar, num carro igual ao que o trará, mas  sem regressarem ao Estoril , seguem para um avião do Reich estacionado em Tires ,directo a Hamburgo. Compreendido?

-Ya wohl! Vou providenciar os detalhes!-

Despediram-se, ordens recebidas, disciplina teutónica a funcionar, seguindo em direcções opostas.Na Vila,colarejas ofereciam peras pérolas a preços convidativos, caía a noite.

Nassenstein e Volbrecht  tinham chegado recentemente a Portugal e trabalhavam a partir do Hotel Avenida Palace, que  no 4.º andar tinha  um corredor  ligado  directamente ao cais internacional da estação do Rossio.Com a conivência da PVDE ali chegavam incógnitos e sem controlo policial  personalidades importantes e espiões do Reich. Em Sintra ficava acertada a coberto de uma visita de lazer, a operação, a 29 de Julho, data do jantar.Na véspera, todos discretamente se encontrariam no lounge do Casino Estoril para os últimos detalhes, dois courpiers eram da confiança da Gestapo.Entre um bacará e um poker de dados seguiriam os passos dos ingleses, instalados em hotéis da linha do Estoril, jogo de gato e rato na roleta da espionagem internacional.

Eduardo VIII, ex-rei de Inglaterra, sucedera ao pai, Jorge V, em Janeiro de 1936. O seu reinado, contudo, iria ser muito breve, oficialmente devido ao romance com Wallis W. Simpson, uma americana divorciada. O anúncio da sua intenção de casar-se com ela obrigara Eduardo a abdicar em Dezembro a favor do irmão Jorge VI, mantendo  o título de Duque de Windsor. As suas simpatias pela Alemanha nazi , já conhecidas,começaram então a manifestar-se mais abertamente, canalizando para aí o despeito que sentia contra os britânicos por não ser concedido à senhora Simpson o tratamento de Alteza Real. Ainda  rei, realizara uma viagem à Alemanha, onde fora calorosamente recebido por Hitler, e ao estalar a guerra pronunciara vários discursos criticando a atitude britânica e defendendo os nazis. Era um trunfo importante  e útil para o pós armistício, um rei sem poder que Hitler colocaria no trono inglês como fantoche manobrável.

Ricardo Espírito Santo, anfitrião do duque, banqueiro, homem de confiança do regime de Lisboa, trabalhava para ingleses e alemães, num jogo duplo, que era do conhecimento dos serviços secretos ingleses, que o designavam pelo nome de código de holy ghost. Comunicações directas com Ribbentrop haviam sido detectadas por Kim Philby, agente inglês enviado para espiar o duque a mando de Churchill. Na noite do jantar em Sintra, a que não comparecia, despediu-se dos seus hóspedes, ia a um encontro com o Ministro do Interior, o rapto gizado não lhe era totalmente desconhecido, mas  havia que dissimular.

Já á saída, seis da tarde, o motorista posto ao serviço dos duques, o Silveira, foi abordado por um inglês, seria ele o chauffeur nesse dia, ordens da embaixada, frisou, o dr.Ricardo estaria a par. Coisas da política, pensou, acatando a ordem, aliviado, iria ter com o Porfírio aos fados na Rua da Rosa.

Os duques eram afáveis, porém pouco faladores. Notava-se uma certa amargura em Eduardo, o rei que o mundo via como protagonista duma história de cinderela, dividido entre a angústia pela sua Inglaterra bombardeada e o apreço pela extraordinária obra do senhor Hitler, que tirara a Alemanha da crise que nos anos vinte a levaram quase à irrelevância. Afinal a dinastia britânica tinha origens alemãs, dos Hannovers, sangue prussiano corria-lhes nas veias.

Pelas dezanove horas, viagem rotineira, quarenta minutos  de carro, o duque lendo um jornal inglês, Wallis Simpson olhar absorto e cansado, lá seguiram para o jantar.O motorista substituto falava inglês e era conterrâneo, o que agradou a Eduardo, saudando o mesmo com cortesia, formal.

Chegados ao Alcoitão, o carro  guinou para a esquerda, noutra direcção, para uma quinta em Ranholas. Eduardo estranhou, já tinha estado em Sintra antes, nunca por aquele caminho, o condutor pediu-lhe  que não fizesse perguntas, chegando tudo lhe seria explicado.O motorista era Dusko Popov, agente duplo britânico, de ascendência sérvia, conhecido como o “Triciclo”.Os ingleses já haviam descoberto por comunicações cifradas os planos alemães e uma operação havia sido montada para pôr os duques a salvo. Popov apressou-se a inteirá-los do plano alemão, ora desmantelado, com a coordenação do MI5 e a acção de retaguarda de Philby e Donald Darling, espião britânico estacionado no posto de Lisboa, conhecido como Didi, todos envolvidos na designada “Operação Willi”.

Em S. Pedro, entretanto, senhoras de lantejoulas e membros da comunidade britânica esperavam e estranhavam a demora. Mário Conceição Silva olhava o relógio, entreolhando Kramer, que saboreava um Porto, Volbrecht, inquieto, disfarçado de motorista  aguardava junto ao carro.Os duques não apareciam nem apareceriam nessa noite, uma indisposição súbita de Walis foi alegada, com delicadeza se desculpavam, de volta ao Estoril, goravam-se os planos.

A espionagem europeia ensaiava manobras de diversão na spyland que era Portugal nos anos da Grande Guerra, ele próprio num jogo similar piscando o olho às potências em conflito consoante os tacticismos do Presidente do Conselho.

A  2 de Agosto de 1940, três dias depois , o duque de Windsor e Wallis Simpson partiam no «Excalibur», rumo às Bahamas, onde, longe do vespeiro europeu Eduardo assumiria o tranquilo posto de Governador. Por esta vez, os ingleses levavam a melhor.


publicado por Fernando Morais Gomes às 15:02

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