por F. Morais Gomes

06
Nov 10

Os dois tinham chegado pela madrugada, três horas de voo desde Belém do Pará. Manaus pela manhã era um desvelo da natureza ,manguezais secos, floresta húmida esplendorosa, araras distantes gritando e adornando de música a selva mãe. Instalados num lodge longe da cidade, em pleno sertão, com receitas a reverter para a subsistência de um orfanato de símios, estavam qual Darwin à vista das Galápagos, verde fresco omnipresente, comodidades escassas mas perfeitamente dispensáveis, à descoberta dum mundo perdido e exótico. Um velho caboclo sugerira uma pescaria à piranha, simples anzol com carne na ponta que logo cozida, pegava a inadvertida fera de  dentes grossos, sabor deslavado. Á noite crocodilos, semáforos do rio com  olhos cintilando  com lanternas dirigidas aos olhos desafiavam,  o silêncio apenas intervalado pelo som de laboriosas térmitas. Emergindo poderoso, o encontro das águas, o Solimões castanho terra e o Negro cor de chá, magia de rio fértil para turista ocidental.

Manaus, a dos barões da borracha, que em terra agreste ergueram uma ópera em honra do  esforço seringueiro para outras aves canoras entreterem velhos coronéis, era uma cidade de contrastes, boat people enxameando o rio lotado e vivo,os mercados trepidantes de frutas, anárquicos e coloridos.

O carnaval anunciava a sua entrada de serpente, era quinta-feira da semana mais importante da cidade e de todas as daquele país arco-íris. Corpos lascivos rolavam o boibumbá , um trio eléctrico animava as ruas nas margens do Amazonas, o povo vibrava,  em pulsão de cor e libido.

Os  dois amigos deambulavam pelas ruas pejadas de jagunços, caboclos, comerciantes e garotas de programa. Na praça principal, vespeiro central daquela orgia colectiva, nem uma mesa livre nas esplanadas, todos abocanhando chopes gelados e guaranás refrescantes. Uma ajuda salvadora: dois polícias de apoio aos turistas acercaram-se, indagando sobre os forasteiros, fácies mais claro e europeu.

-Oi, caras, são paulistas?-perguntou um, meio desconfiado, meio afável.

-Não, somos portugueses -explicitou Bernardo, vinte e dois anos, estudante de História em Lisboa. Dum sítio chamado Sintra, já ouviu falar?

-Não. Poxa, netos de Cabral, não tem muitos por aqui, não…Bem vindos ao Amazonas, amigos. Tudo bem com ‘ócês?

-Tudo, obrigado. Andamos a ver se achamos uma mesa para tomar umas Brahmas fresquinhas, mas hoje estamos sem sorte…- respondeu Tiago, o mais velho, várias idas ao Brasil a negócios, mas primeira na Amazónia.

Olhando em redor, solícito, um deles descortinou uma mesa, quatro moleques dançando em redor ao som contagiante duma Daniela Mercury local e Brahma na mão.Logo os sacudiram, para dar o lugar aos patrícios das Orópa…

-Obrigado, não era preciso…-agradeceu Tiago, meio constrangido com o procedimento, bem sul americano, mas ainda assim aproveitando o gesto inesperado. Já agora, querem tomar algo?

-Não, amigo, obrigado. Mas  vamos ficar aqui por perto de olho, Manaus está cheio de pilantras, sabe…

A conversa prosseguiu entre os dois, a tarde quente e a música no ar convidavam a que a mesa se fosse enchendo de canecas logo esvaziadas, na presença próxima dos dois repentinos sentinelas, o que levou Bernardo a nova abordagem.

-Sentem connosco e tomem um chope , será um prazer!-insistiu.

Lá se sentaram, os chopes fluindo, tudo netos de Cabral reencontrados sob o calor tropical duma cidade no lado esquerdo do Paraíso. Às tantas, Laurindo, um dos polícias, quatro canecas depois, levantou-se e pediu a máquina fotográfica de Tiago.

-Cara, vou sacar uma foto de vocês para levarem lá para a vossa cidade!-e disparou uma, feliz logo outra, outra com os quatro, qual japonês e seu brinquedo, formalidades desfeitas.-Olha- aventou, ar malandro- vou buscar umas gatinhas para tirar umas fotos com  nóis…E sumindo na multidão extasiada com o trio eléctrico, maquina ainda ligada, prometia alegrar ainda mais a tarde. Era Carnaval,  que diabo, festa é festa, pensaram.

Dez minutos, vinte minutos,mais uma rodada. Olhando o relógio,Aldair, o outro,  levantou-se.

-Laurindo está demorando, vou ver onde para! Volto já!-e saiu no mesmo sentido.

Mais uns minutos, nada de polícias nem gatinhas, música cada vez mais alta, corpos cada vez mais soltos. Anoitecia. Foram à delegacia perguntar pelos dois. História explicada, um sargento de serviço.

-Caras, vocês estiveram com Laurindo? Então está tudo explicado!

-O que quer dizer?- desconfiado, Tiago ficava nervoso.

-É que não faz duas semanas que saiu de cana, e como já era policial retomou o serviço aqui em Manaus, veio de Mato Grosso do Sul! Sabe, Brasil é Brasil….

A música continuava, polícias e ladrões na mesma praça inebriada , a galera irmanada, era carnaval, nada mais interessava, o lodge era refúgio certo. Na favela, Laurindo mostrava ao filho o brinquedo topo de gama que comprara a um turista portuga. Afinal o que vale uma maquina fotográfica quando netos de Cabral se encontram algures no mundo…


publicado por Fernando Morais Gomes às 04:02

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