Estava escura e cinzenta a manhã, uma chuva miudinha regava Lisboa naquele Setembro de 1930 à chegada do “Alcântara”, vindo de Dover.
Fernando Pessoa esperava o visitante que mal conhecia mas com reputação de tenebroso. Aleister Crowley, conhecido apologista do satanismo, desperto por uma carta astrológica que Pessoa a medo lhe enviara, desembarcava ao encontro, quem sabe, de uma alma gémea e atormentada.
Pessoalmente detestava barcos, nunca se lhe desvanecera a viagem no "Koenig"desde Durban anos antes acompanhado o féretro da irmã Madalena, precocemente falecida e sepultada em Lisboa, o carácter misantropo era igualmente avesso a eventos sociais, mas não pudera dizer não.
-Mr.Crowley , welcome!- cumprimentou, reverente, naquele inglês que tão bem dominava e no qual se expressava em muitos textos literários.
-Prazer em vê-lo, sr.Pessoa! É tal e qual como mo descreveram! - rosnou o inglês gordo e baixo, ar banal e um tique num olho-Deixe-me apresentar-lhe fraulein Jaeger, minha colaboradora- adiantou, apontando para uma loura com cerca de quarenta anos, enterrada num chapéu da moda e envergando um vison cor de rato.
Pessoa saudou-a, com um leve toque no vasto chapéu, e guardando as malas, levou-os no Chevrolet ao Hotel Avenida Palace, onde se instalaram, logo aí acertando encontro para o dia seguinte, depois de merecido repouso.
No dia 3, Pessoa, que pedira dispensa no escritório, levou-os a Sintra, pela estrada de Cascais.
-Pois é, Pessoa, fiquei muito intrigado com a carta astrológica que me enviou! Bateu na mouche! Nada a ver com os charlatães que por aí campeiam!-ia desfiando.
-Obrigado,Sr Crowley.A hora e minutos do nascimento são muito importantes nestas coisas.
-Trate-me por Aleister.-atalhou o inglês.
-Muito bem. Sabe, desde sempre me atraíram os estudos astrológicos.Em tempos pensei em abrir um consultório. Ainda cheguei a escrever em jornais, com o pseudónimo de Raphael Baldaya…
-Eu sei, eu sei…-cortou Crowley, insinuando saber mais do que dizia. Você também fez parte do Golden Dawn, não foi?
-Ah, também sabe disso?-estranhou Pessoa, por conhecer a associação de rosa cruzes inglesa.Pelos vistos, Crowley também pertencia.
Pararam na Boca do Inferno, levou-os a ver as vistas, fraulein Jaeger contudo,mais preocupada com a maquilhagem aproveitou para renovar o batôn vermelho vivo.
-Gosto muito do mar, Aleister.Sou dum país em que o mar é sofrimento e força ao mesmo tempo- afirmou, olhando o horizonte, e segurando o chapéu para não voar com o vento gélido.
-Sim, espaço fabuloso. Foi aqui que viveu o tal do vosso Adamastor?
-Não ,mas neste país as pessoas vêm adamastores em todo o lado…
Seguiram para Sintra, Crowley achou sublime, logo descortinando símbolos que só ele reconhecia nas pedras silenciosas e reveladoras.
-Há aqui a mão do Templo, Aleister, muitas coisas estão escritas nestas pedras: a necessidade de lutar contra a ignorância e o fanatismo.
-Um Irmão reconhece sempre a presença espiritual-referiu Crowley,também ele iniciado nos labirintos da Maçonaria. Oiça, tenho uma proposta para si: gostava de editar no seu país alguns dos meus livros, você podia ser o meu tradutor, que me diz?.
-Interessante .Já li o seu Hino a Pã, e….
-E gostou? Antes que Pessoa respondesse lançou-lhe uma frase enigmática: Lembre-se que desde a morte física, até à percepção de que ela é só ilusão, há que passar a estalagem do assombro, despir-se do corpo mental antes de seguir por diante. Só então o corpo será divino!.É essa a busca, esse o desafio! – gesticulou o druida saído do Surrey.
--Eu sei! Já várias vezes morri antes da verdadeira morte….
O diálogo transformava-se em monólogos de dois obcecados pelo destino, espadas vivas ao serviço de batalhas para as quais só eles entendiam os sinais. Já bebia uma “Águia Real”, pensou Pessoa,carente duma aguardente.
A ameaça de chuva levou-os de volta, ainda se viram mais duas vezes, em Lisboa. Depois, combinaram novo encontro para a semana seguinte. Pessoa não se podia dar ao luxo de faltar ao trabalho de correspondente comercial donde vinha o seu parco vencimento, havia que intercalar.
Chegado o dia, lá se postou no lobby do Avenida Palace, sem que nem Crowley nem fraulein Jaeger comparecessem à hora marcada.
-O sr Aleister Crowley não está? Ou a acompanhante,a sra Hani Jaeger…?- perguntou na recepção.
-A sra Jaeger saiu no vapor de dia 19, caro senhor, e o sr Crowley também já não está alojado neste hotel.Saiu, e deixou todas as contas pagas!-informou um diligente empregado, impassível.
Pessoa ficou admirado. Desaparecia sem deixar rasto, nem um bilhete sequer. Crowley, alucinado, tal como se precipitara para Lisboa movido por uma carta astrológica, sumia como aparecera. Ainda lhe escreveu para Inglaterra, mas nunca mais teve notícias. Só uma vez um soturno individuo, que depois soube ser da PVDE o procurou no escritório perguntando sobre os seus encontros tempos antes.
Mais tarde os jornais teceram um novelo de intrigas em torno da estranha visita. Ainda voltou à Boca do Inferno, onde absorto reconstituiu as conversas havidas. Constava em Lisboa que aí se teria suicidado.
Com o tempo, alheio, esqueceu Crowley, mais empenhado em afogar-se em aguardente e absinto.
-Há nisto metafísica que baste para pensar!-comentava, falando consigo mesmo ao balcão do Abel Pereira da Fonseca, na R.do Ouro, ortónimo em transe ganhando fôlego para à luz do candeeiro a petróleo libertar em papel o tumulto interior que o atormentava.I know not what tomorrow will bring!- rematou, emborcando mais uma Aguia Real.