por F. Morais Gomes

07
Out 10

Estava escura e cinzenta a manhã, uma chuva miudinha regava Lisboa naquele Setembro de 1930 à chegada do “Alcântara”, vindo de Dover.

Fernando Pessoa esperava o visitante que mal conhecia mas com reputação de tenebroso. Aleister Crowley, conhecido apologista do satanismo, desperto por uma carta astrológica que Pessoa a medo lhe enviara, desembarcava  ao encontro, quem sabe, de uma alma gémea e atormentada.

Pessoalmente detestava barcos, nunca  se lhe desvanecera a viagem no "Koenig"desde Durban anos antes  acompanhado o féretro da irmã Madalena, precocemente falecida e sepultada em Lisboa, o carácter misantropo era igualmente avesso a eventos sociais, mas não pudera dizer não.

-Mr.Crowley , welcome!- cumprimentou, reverente, naquele inglês que tão bem dominava e no qual se expressava em muitos  textos literários.

-Prazer em vê-lo, sr.Pessoa! É tal e qual como mo descreveram! - rosnou o inglês gordo e baixo, ar banal e um  tique num olho-Deixe-me apresentar-lhe fraulein  Jaeger, minha colaboradora- adiantou, apontando para uma loura com cerca de quarenta anos, enterrada num chapéu da moda  e envergando um vison  cor de rato.

Pessoa saudou-a, com um leve toque no vasto chapéu, e guardando as malas, levou-os no Chevrolet  ao Hotel Avenida Palace, onde se instalaram,  logo aí acertando encontro para o dia seguinte, depois de merecido repouso.

No dia 3, Pessoa, que pedira dispensa no escritório, levou-os a Sintra, pela estrada de Cascais.

-Pois é, Pessoa, fiquei muito intrigado com a carta astrológica que me enviou! Bateu na mouche! Nada a ver com os charlatães que por aí campeiam!-ia desfiando.

-Obrigado,Sr Crowley.A hora e minutos do nascimento são muito importantes nestas coisas.

-Trate-me por Aleister.-atalhou o inglês.

-Muito bem. Sabe, desde sempre me atraíram os estudos astrológicos.Em tempos pensei em abrir um consultório. Ainda cheguei a escrever em jornais, com o pseudónimo de Raphael Baldaya…

-Eu sei, eu sei…-cortou Crowley, insinuando saber mais do que dizia. Você também fez parte do Golden Dawn, não foi?

-Ah, também sabe disso?-estranhou Pessoa, por conhecer a associação de rosa cruzes inglesa.Pelos vistos, Crowley também pertencia.

Pararam na Boca do Inferno, levou-os a ver as vistas, fraulein Jaeger contudo,mais preocupada com a maquilhagem aproveitou para renovar o batôn vermelho  vivo.

-Gosto muito do mar, Aleister.Sou dum país em que o mar é sofrimento e força ao mesmo tempo- afirmou, olhando o horizonte, e segurando o chapéu para não voar com o vento gélido.

-Sim, espaço fabuloso. Foi aqui que viveu o tal do vosso Adamastor?

-Não ,mas neste país as pessoas vêm adamastores em todo o lado…

Seguiram para Sintra, Crowley achou sublime, logo descortinando símbolos  que só ele reconhecia nas pedras silenciosas e reveladoras.

-Há aqui a mão do Templo, Aleister, muitas coisas estão escritas nestas pedras: a necessidade de lutar contra a ignorância e o fanatismo.

-Um Irmão reconhece sempre a  presença espiritual-referiu Crowley,também ele iniciado nos labirintos da Maçonaria. Oiça, tenho uma proposta para si: gostava de editar no seu país alguns dos meus livros, você podia ser o meu tradutor, que me diz?.

-Interessante .Já li o  seu Hino a Pã, e….

-E gostou? Antes que Pessoa respondesse  lançou-lhe uma frase enigmática: Lembre-se que desde a morte física, até à percepção de que ela é só ilusão, há que passar a estalagem do assombro, despir-se do corpo mental antes de seguir por diante. Só então o corpo será divino!.É essa a busca, esse o desafio! – gesticulou o druida saído do Surrey.

--Eu sei! Já várias vezes morri antes da verdadeira morte….

O diálogo transformava-se em monólogos de dois obcecados pelo destino, espadas vivas ao serviço de batalhas para as quais só eles entendiam os sinais. Já bebia uma “Águia Real”, pensou Pessoa,carente duma aguardente.

A ameaça de chuva levou-os de volta, ainda se viram mais duas vezes, em Lisboa. Depois, combinaram novo encontro para a  semana seguinte. Pessoa não se podia dar ao luxo de faltar ao trabalho de correspondente comercial donde vinha o seu parco vencimento, havia que intercalar.

Chegado o dia, lá se postou no lobby do Avenida Palace, sem que nem Crowley nem fraulein Jaeger  comparecessem à hora marcada.

-O sr Aleister Crowley não está? Ou a acompanhante,a sra Hani Jaeger…?- perguntou na recepção.

-A sra Jaeger saiu no vapor de dia 19, caro senhor, e o sr Crowley também já não está alojado neste hotel.Saiu, e deixou todas as contas pagas!-informou um diligente empregado, impassível.

Pessoa ficou admirado. Desaparecia sem deixar rasto, nem um bilhete sequer. Crowley, alucinado, tal como se precipitara para Lisboa movido por uma carta astrológica, sumia como aparecera. Ainda lhe escreveu para Inglaterra, mas nunca mais teve notícias. Só uma vez um soturno individuo, que depois soube ser da PVDE o procurou no escritório perguntando sobre os seus encontros tempos antes.

Mais tarde os jornais teceram um novelo de intrigas em torno da estranha visita. Ainda voltou à Boca do Inferno, onde absorto reconstituiu  as conversas havidas. Constava em Lisboa que aí se teria suicidado.

Com o tempo, alheio, esqueceu Crowley, mais empenhado em afogar-se  em aguardente e absinto.

-Há nisto metafísica que baste para  pensar!-comentava, falando consigo mesmo ao balcão do Abel Pereira da Fonseca, na R.do Ouro, ortónimo em transe ganhando fôlego para à luz do candeeiro a petróleo libertar em papel o tumulto interior que o atormentava.I know not what tomorrow will bring!- rematou, emborcando mais uma Aguia Real.

publicado por Fernando Morais Gomes às 13:28

Trinta e cinco anos de poder local são tempo suficiente para se ponderar as virtualidades e patologias do nosso sistema de governo das autarquias, bem como das políticas que lhe estão cometidas.

A começar pelo número e dimensão das mesmas. Desde Mouzinho da Silveira que não há uma reforma de fundo do quadro das câmaras e freguesias como unidades coerentes, soçobrando até hoje o critério de campanário e os regionalismos bacocos sem ligação com uma correcta racionalização de serviços e recursos humanos a nível regional. Autarquias há que têm uma população que cabe toda em 3 ou 4 ruas de Lisboa, por exemplo.

Também ao nível da escolha dos eleitos e governo da polis, o sistema se revela desajustado, produto dum obsoleto método de Hondt e da distribuição de mandatos de forma proporcional, obrigando a coligações contra natura. Mais curial seria a eleição de listas apenas  para a Assembleia Municipal, das quais o primeiro candidato seria presidente da câmara e livremente escolheria a equipa de gestão, com apresentação de programa na Assembleia Municipal e aí negociando maiorias e políticas.Com o sistema actual, alguém que por virtude tenha sido candidato para agradar à secção local do partido proponente, pode ter  de repartir o poder  sem que seja particularmente dotado para o lugar, e apenas por mérito partidário. Igualmente a queda do executivo por via de moções de censura seria um critério mais transparente e dinâmico, no fundo semelhante ao que já funciona para o Governo.

Igualmente deveriam  ser definidas quais as áreas que deve manter na esfera das competências próprias  e aquelas que se pode contratar com privadas a sua gestão conjunta, ou seja, definir os princípios gerais e estratégias globais e sectoriais, tanto de desenvolvimento como de implementação.

A chave está na imposição de uma cultura de responsabilidade. É imperativa a avaliação de situações, critérios de julgamento, capacidade de decisão, lidar com o conflito, construir  consensos, distinguir o essencial do acessório. Acresce ainda a gestão do tempo como bem escasso, embora temperado com a necessária ponderação que o interesse público importa; a gestão dos recursos financeiros e dos recursos naturais com responsabilidade, de forma a evitar que o solo urbano ou a urbanizar seja parasitado pelas autarquias que vejam nas mais valias a taxar a forma de financiar os programas municipais, ao mesmo tempo que não indemnizam aqueles que perdem valor com a classificação dos seus terrenos como zona não aedificandi, numa verdadeira falta de justiça distributiva balizada pela proporcionalidade.

As reformas deveriam incluir a reestruturação dos quadros de pessoal, adequando-os às necessidades e evitando duplicações de tarefas  com outras já exercidas por privados ou empresas municipais. Igualmente o estatuto das polícias municipais em nome da necessária proximidade deveria evoluir para um assumir da maioria das competências hoje afectas à PSP e GNR, apenas se excluindo a investigação judiciária.

Na área dos  planos de ordenamento do território, a  decisão sobre localização e realização de investimentos públicos com impacte no ambiente e vida dos cidadãos deveria estar  sujeita a um efectivo e não semântico  dever legal de participação, consagrando-se como um direito fundamental dos cidadãos e não apenas como tarefa, incumbência ou fim do Estado, como um interesse colectivo confiado à Administração como interesse público, em que o fim último está em prevenir danos e não tentar remediá-los.

Os PDM deveriam ser objecto de revisão em permanência e não apenas nas datas actualmente previstas, adequando-os à dinâmica da economia local e num quadro inter regional, corrigindo os erros dos PDM de 1ª geração Nessa perspectiva, seria importante  um quadro geral em que a pró-acção fosse a captação de investimentos sustentáveis e geradores de qualidade e receita qualitativa, através dum quadro urbanístico, ambiental e fiscal claro e supervisionado por uma Agência Municipal de Investimentos; fazer coincidir as ambições de gestão do território das várias entidades num mesmo espaço categorial, seja no PDM, PP’s ou outras servidões administrativas vinculativas para a gestão do território ;promover uma carta de redes que permita integrar e orientar as intervenções dos fornecedores de serviços públicos e assim planear o seu modus operandi,  bem como reforçar o papel de autoridades locais de transportes e acessibilidades. E, sendo o PDM um plano de estabilidade mais duradoura, agilizar o processo da elaboração de planos de pormenor que estariam em actualização permanente, abertos á sociedade e ao escrutínio dos destinatários duma verdadeira Democracia do Território.

Como escrevia Vitor Hugo, “saber exactamente qual a parte do futuro que pode ser introduzida no presente é o segredo de um bom governo”.

publicado por Fernando Morais Gomes às 04:30

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