por F. Morais Gomes

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Naquele sábado ia passar outra vez o Quo Vadis? no barracão da Praia das Maçãs, momento para o anual reencontro que  Samuel e Joana faziam com os amigos desde  a infância.1973 ia acalorado, findo o liceu, no Pedro Nunes, veraneavam antes do desafio da entrada no Técnico, ele já em Outubro. Joana, tudo aprontava para o seu sonho de ir para Letras e ser professora, sua ambição de sempre.

De amigos por via das famílias, vizinhas na casa do Vinagre, um impulso de fim de semana depois dum jantar na casa do Topê, na Praia, tornara-os namorados, e se já em Lisboa furtivos encontros para café haviam no Vavá ou na biblioteca do Palácio Galveias, o Verão, com o seu despertar de instintos tudo libertava e precipitou-os definitivamente um para o outro.

Todos os anos o mesmo ritual: as idas à praia com  o David e a Lurdinhas, João, agora com cabelo à Bob Dylan embrenhado no seu Sartre, invariavelmente ao fim de semana as festas na garagem da Francisca, onde mais tarde a Luísa e  o Topê casariam ao som do Hotel Califórnia, depois de concluída a Faculdade de Ciências e entrar para os quadros da CUF.

O Verão na Praia era rotineiro e por isso também previsível. A  Concha, o Quivuvi, a pirosa discoteca do Hotel Miramonte cheia de velhos ingleses, as idas à Praia de eléctrico, com toldo pago no mês de Agosto,os jogos de matraquilhos no café e festas de fim de semana, onde se passava  música dos Génesis e cumpriam os slows daquelas vidas, sonho sonhado de promessas de amor e amanhãs de fraternidade, eternos amigos de Alex.

Um dia, já em Setembro, alvoroçado e lívido, surgiu o Samuel no Bibió, levantando um envelope. Tinha recebido uma carta do DRM. Julgava que era o deferimento do adiamento do serviço militar, para entrar no Técnico, mas afinal recrutavam-no, dois meses para se apresentar em  Santarém, Cavalaria. Aquela manifestação junto à Voz do Operário durante o 1º de Maio, reprimida pela GNR três meses antes não ficara esquecida. Depois, talvez Moçambique, Wiriamu estava fresco.

-E agora?Estou tramado!-África nunca!Vou dar o salto!

Joana ficou apreensiva, mas abraçou-o longamente, acariciando-lhe os cabelos.Uma pequena lágrima espreitava, mas havia que dar força.

-Vou desertar!Tenho uns amigos em Paris, um dia isto há-de mudar!-reclamava, injustiçado.

Ao longe, o som do mar, a velha senhora de pele queimada apregoando as bolas de Berlim e batatinhas Ti-Ti, que todos os Verões ouviam desde crianças quando construíam castelos de areia naquele mar de toldos às riscas e cheiro a iodo.

Naquela noite amaram-se na Praia Pequena, rádio da 4L ligado, os Shadows soando em fundo.

Santarém chegou em Outubro, em Fevereiro de 1974 embarcou para Moçambique. O pai, advogado influente, ainda tentou um coronel do Estado Maior, mas o caso fugia-lhe, tinha vindo nos jornais, pouco podia fazer. Para trás a Joana e um mundo de sonhos, o toldo do Verão, os slows na garagem. O plano de Paris falhou, o sol de África surgia invasivo na brisa da Praia das Maçãs.

Um dia, logo na primeira semana de Abril, contemplava Joana o pôr do sol no miradouro das Azenhas, o velho Jerónimo, caseiro dos pais de rompante pedia que a menina fosse até casa, o senhor doutor tinha urgência em falar-lhe.Um aerograma de Lourenço Marques, levado por um capitão com ar formalmente pesaroso comunicava a morte do jovem alferes Samuel vitimado por uma mina durante uma operação de reconhecimento.

A vida para Joana terminava naquele ocaso do fim de tarde dum Abril ainda imóvel. Ao fundo, a senhora das bolas de Berlim e o pregão estafado, um horizonte gradualmente desfocado, a morte antes de morrer. Na rádio, passava um fado letárgico vagamente alterado pelas interferências na rede.

Era Portugal.

publicado por Fernando Morais Gomes às 10:56

Sintra, Ano do Senhor de 1414.El Rei D.João voltava de mais uma caçada, três lebres e uma corça, nada mau para um dia chuvoso. Agradavam-lhe as estadas em Sintra, onde anualmente caçava e jogava canas desde que se apossara das propriedades de Henrique Manoel de Vilhena, que tomara o partido de Castela durante os eventos de quase trinta anos antes.

O encontro que Pêro Anes de Sintra, regressado de viagem secreta, lhe solicitara em termos algo misteriosos havia-lhe suscitado curiosidade. Pêro Anes era um místico e profundamente religioso, mas acima de tudo devotado a D. João.

-Estimado D.Pêro, que novas trazeis das costas de Algeciras?

-Eu sei, Senhor, que em cuidados vos encontrais sobre as terras dos  moiros. Mas não é de Gibraltar, Algeciras ou da montanha de Djabal Musa, ou sarracenos mercadejando que é meu mister aqui falar. Outro é meu intento e ,  se me permitis a ousadia!

-Explicai-vos D. Pêro. Não fostes espreitar a cova do infiel em terras de Septa, como vos instruí? -ripostou o de Boa Memória, já aborrecido por ser tirado às suas lebres a fim de ouvir temerosos vassalos.

-Assim fiz, e em verdade vos digo: perigosa e inútil será a empresa, pois nem especiarias nem ouro, cereais ou fazendas para o erário do reino e de Vossa Majestade, meu rei e senhor podem as naus de Portugal porfiar nessas bandas. Antes ousava sugerir uma aliança com vosso genro, o conde da Flandres, a fim de que os laços de comércio entre ambas as casas possam prosperar, e desse trato possam os proventos do reino aumentar e com eles a vossa fazenda.

-Mercadejar é impróprio dum rei, D.Pêro!- soltou o infante D.Henrique, presente na sala, até então em silêncio. A honra dum infante só pode ser resgatada quando lavada no sangue dos infiéis. Honra, conquista e glória, esse o dever de quem reina, e não curar de arcas de peixe salgado ou pipas de vinho, coisa de almoxarife e não de um príncipe da cristandade!

-Que vos parece, Senhora? -apurou o velho rei, olhando para a já doente rainha D.Filipa.

-Henrique tem razão.Prudente será evitar cuidados e maleitas, mas mais acertado e próprio dum monarca é a expansão da Fé e dos Santos Evangelhos- aconselhou a alva senhora, empalidecida e de voz sumida.

D.João postou-se breves momentos em silêncio. Por fim, despachou o avisado fidalgo, e chamou o prior do Hospital, D.Álvaro Gonçalves Camelo a quem incumbiu de uma missão secreta.

Meses mais tarde, voltando D.Álvaro a Sintra, depois de com favas e areia ter reproduzido a fortaleza dessa misteriosa Ceuta, o Reino se lançou num novo e perigoso destino.

A  22 de Agosto de 1415, e com poucas horas de combate, o vencedor do Andeiro, de Castela, e dos filhos de Inês de Castro, virava-se em definitivo para o Mar Oceano, para  apenas cinco séculos depois voltar ao ponto de partida. Nunca a Europa e Portugal se olharam como semelhantes, mas como diferentes e distantes.Se a geografia nos havia colocado junto ao mar apenas um desígnio se impunha aceitar: sulcá-lo.Para sul.

publicado por Fernando Morais Gomes às 01:22

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