por F. Morais Gomes

14
Out 10

Olhar absorto, dedos férreos, tez altiva. Na pequena sala, pinturas campestres inglesas e tectos de flores em papel estampado, ecoavam os acordes cristalinos dum piano solitário, voz obediente a seu mestre e criador.

Viana da Mota ensaiava para um concerto em Galamares, no cineteatro que em boa hora o Visconde de Monserrate mandara erigir, pequena ilha numa floresta de palácios altivos e férteis pomares, concerto de angariação de verbas para a electrificação da estrada até Colares. Pedira a comissão de melhoramentos e com prazer anuíra.

Já à beira dos sessenta e cinco, sempre tivera Sintra no coração. Desfiando aquele piano com o transe próprio dum profundo apaixonado, ensaiava a sós o concerto que essa noite tocaria a favor dessa luz tão necessária ao progresso.

Brincando com as notas, familiares e cúmplices, recordava os anos já longínquos em que vindo duma roça nos trópicos aportara a essa Colares húmida e silenciosa, palco de pescarias no rio da sua infância. Os primeiros concertos no Salão da Trindade, jovem e aplaudida promessa da música. E acima de tudo, a felicidade daquele dia em que a doce condessa Elise lhe anunciou a vontade de pagar os estudos com Scharwenka, em Berlim.

Nunca esqueceria a emoção desse encontro no chalé de cortiça na Pena, e mais tarde da récita, onde jovem executante, perante D. Fernando, a condessa d’Edla e convidados, tocara pela primeira vez  “Au bord du lac de Pena”, que compusera em sua homenagem. Gratidão de artista paga-se com arte, pensou.

Pela tarde, chegava entretanto o gerador da Sintra- Atlântico para iluminar a sala para o concerto, que as famílias abastadas amavelmente pagariam. Viana da Mota ensaiava agora andamentos mais exaltados, levado pelo eco daquela sala ainda vazia.

Escolhera as “Cenas da Montanha” para abertura, o von Bullow sempre lhe dissera que era um dos seus temas mais conseguidos, partes da “Evocação dos Lusíadas”a seguir. No fim, se a luz não falhasse, “A Pátria”, a sua imagem de marca, que o visconde sublimemente apreciava e a plateia quase sempre reclamava.

Era 15 de Setembro de 1923, o Outono afastava já os veraneantes para a capital, havia risco de não encher, disseram. Viana da Mota adorava o desafio, porém. Que viessem dois mas bons em vez de trinta a bocejar.

A sala afinal encheu afinal, senhores de fato impecável, senhoras com os melhores chapéus, os homens da Sintra-Atlântico, a cultura juntando-se ao progresso. Cumprimentos, vénias, Guilherme Oram, feitor da casa Monserrate, verificando os pormenores, as tosses da praxe, a função.

Saudando com uma simples vénia, José Viana da Mota saboreou o silêncio expectante que sempre ocorre nos recitais, e depois dum momento sepulcral, qual guerreiro alucinado de espada em riste, esperando a fera desafiadora, espalhou o néctar inebriante de melodias redentoras sobre aquele cineteatro ufano e orgulhoso, São Carlos de aldeia, nem por isso menos vibrante e atento. Toda a família do visconde assistia, Eduardo Gaio e esposa, também pianista amadora, os Farias, da casa do visconde, bombeiros, autoridades. Algum povo, desconfiado e distante não deixava de espreitar ou ouvir no exterior.

Nessa noite mágica e luminosa, os tordos na serra fizeram silêncio, os sapos abafaram o coaxar, o som hipnotizado e hipnotizador do piano  mágico atravessou o vale e Monserrate,  agitando as acácias, amenizando  as almas .Galamares, por umas horas, ganhava o seu pedaço de paraíso,

Lá longe, em Lisboa, já para lá dos oitenta, a velha condessa d’Edla tomava chá, e sorria, como se o som daquele concerto dum tímido rapaz que um dia mandara para Berlim lhe chegasse perfumado pela brisa da noite.

publicado por Fernando Morais Gomes às 13:31

Mário, Florêncio, Osmán, trinta mais, sessenta e nove dias de escuridão ,sessenta e nove dias de luz brilhante  e redentora para  quem desceu  mineiro  e subiu Homem. Sessenta e nove dias de sombras, palavras partilhadas, noivas sonhadas, vidas de sobrevivência. Como naquela outra alegoria, sem espelhos, sombras projectadas na parede interna da caverna. E o fogo da esperança sessenta e nove vezes aceso em torno duma lata de conservas , duma reserva de esperança e provação. Perto do fogo destruidor dos medos e das finitudes humanas, ofuscados pelo presságio dum fado de vida quase certeza de morte, o milagre para lá das sombras, a unir para a sobrevivência. Por eles, por elas, por nós. Do insuportável calor numa mina perdida do deserto chileno, as sombras viraram esperança, a esperança virou luz, o braço aflito e sequioso dos homens na sombra encontrou o braço solidário e quente de toda Humanidade naquela cápsula elo entre a Vida e a Morte.

Estão já fora da caverna. Da tangível, escura, castigadora, mas também da do medo, do desalento, da descrença. A Vida venceu o Destino algures nos arredores de Capiapo, Chile, Mundo.

publicado por Fernando Morais Gomes às 08:53

Era dia de círio em S.João das Lampas. Zé da Adega, Domingas e os rapazes pequenos preparavam-se para, fato domingueiro envergado, irem na burra Zorra de Alfaquiques até S.João, ao círio da Senhora do Cabo. Era a segunda vez que o círio se efectuava em suas vidas, passara em 1830, e vinte seis janeiros mais haveriam de viver, graças a  Deus, para ver um terceiro. Domingas estava de novo prenha, o quinto cachopo vinha a caminho, vinha irritadiça, pois gulosa como era aborrecia-a ter de comer pão alvo e galinha durante os trinta ou quarenta dias do regimento, evitando aquele toucinho que tinha guardado da última matança na casa do ti Januário.

Em casa, para que o rapaz pequeno viesse em boa hora, usava o chapéu do marido, nos ombros os calções do mesmo, nestes preparos andava na monda. Hoje, porém, era dia de festa, Zé da Adega lá pudera usar os calções para que não fosse apanhado desprevenido.

O círio era tudo.Era aí que cada um na aldeia mostrava o valor da sua bolsa. Zé da Adega comprara barretina nova à Domingas, postas as festas não voltaria por certo a usar. Para si mandara fazer uma casaca, tinha obrigação de durar os próximos vinte e seis anos, pelo menos.

O filho do ti Ambrósio que Deus tenha, o Justino, amanuense na capital, viera à terra para os festejos, mas tendo um temporal arrasado o telhado da casa onde ficaria, logo na véspera da procissão, aceitou de bom grado a oferta do ti Zé de ficar a dormir lá em casa.

-É pobre, mas malga de vinho e lume de chão não lhe há-de faltar , amigo  Justino!-reforçava o ti Zé , orgulho pouco escondido de albergar o filho da cidade do ti Ambrósio, -Boa gente era o senhor seu pai! Todas as quintas -feiras íamos á venda na Malveira, bons tempos!

O Justino vivia em Lisboa há cerca de seis anos. Alojara-se num quarto na Praça da Alegria, serventia de águas quentes e frias, era já um homem da cidade, enfiado em papéis e letras de câmbio.

No dia do círio, pela manhã, leite directo da vaca e presunto adornavam a mesa de madeira em honra do visitante, a Domingas fizera filhoses.

Logo pela manhã, o Januário pediu um alguidar e um pano, e foi para o quarto compor-se para a grande festa. Estranhando o interesse de Januário pela água, o mais velho da Domingas, maroto, foi espreitar na enxerga, deparando pasmo com o Januário a lavar a cara e os sovacos.

-Oh mãe, oh mãe, vem ver o que ele está a fazer! -correu para a mãe o pequeno Serafim, assustado com o que vira.

Domingas acorreu prestes, e benzeu-se ante aquela visão invulgar

-Nossa Senhora! Parece que lá na cidade agora lavam-se com água! Água é para o baptizado, benza-os Deus!

Saíram para o círio. A procissão, deslumbrante, Serafim de anjo pela primeira vez, toda a aldeia vestira o melhor fato, as burras tiveram reforço de pasto.Na quermesse, Zé da Adega e Justino, já de nariz avermelhado, provavam a pipa do Teodoro, malvasia da boa, o Verão fora farto.

-Pois é como lhe digo, compadre Teodoro.Com a venda das vacas e o vinho das minhas terras da Assafora já consegui um bom cabedal. Este ano vou arrematar o boi cobridor que o ti Estevão de Cheleiros tinha lá na Malveira! E, copo erguido, já meio cambaleante, falava das colheitas,    enfiado naquela fatiota que lhe impuseram para ir ao círio.

-Os seus filhos já ficam arranjados, ti Zé- concordava o Justino, eufórico com o terceiro copo, vinho agora era raro.

-E já comprei um bocado de chão para mim e a minha Domingas no cemitério de S.João! Quando morrer, já cá fica, pago e tudo! Antes para ali que para o boticário!

-Eu boticário é logo meia canada de vinho e uma folha de alecrim dentro!- adiantou o Teodoro- quando morrer vou deitado! –arengou sentenciador, emborcando mais uma malga do tinto.

Assim passava mais uma Senhora do Cabo em S.João.O comendador Nogueira, juiz da festa, mandara distribuir um bodo, coisa farta, todas as noites se rezava a novena, rara ocasião para as mulheres casadas recolherem mais tarde á alcova.

Passadas duas semanas, a Domingas teve a sua hora pequenina.Mais um rapaz. Correram a dizer ao Zé da Adega, na vinha.

-Há-de criar-se! -disse entre dentes –e continuou a cavar, rude de modos, mas no fundo coração mole.

Domingas lembrando-se do Januário, decidiu experimentar dar um primeiro banho ao rebento.

-Se lá na cidade se lavam com água e não morrem, mal não pode fazer!....-pensou.

publicado por Fernando Morais Gomes às 00:00

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