Olhar absorto, dedos férreos, tez altiva. Na pequena sala, pinturas campestres inglesas e tectos de flores em papel estampado, ecoavam os acordes cristalinos dum piano solitário, voz obediente a seu mestre e criador.
Viana da Mota ensaiava para um concerto em Galamares, no cineteatro que em boa hora o Visconde de Monserrate mandara erigir, pequena ilha numa floresta de palácios altivos e férteis pomares, concerto de angariação de verbas para a electrificação da estrada até Colares. Pedira a comissão de melhoramentos e com prazer anuíra.
Já à beira dos sessenta e cinco, sempre tivera Sintra no coração. Desfiando aquele piano com o transe próprio dum profundo apaixonado, ensaiava a sós o concerto que essa noite tocaria a favor dessa luz tão necessária ao progresso.
Brincando com as notas, familiares e cúmplices, recordava os anos já longínquos em que vindo duma roça nos trópicos aportara a essa Colares húmida e silenciosa, palco de pescarias no rio da sua infância. Os primeiros concertos no Salão da Trindade, jovem e aplaudida promessa da música. E acima de tudo, a felicidade daquele dia em que a doce condessa Elise lhe anunciou a vontade de pagar os estudos com Scharwenka, em Berlim.
Nunca esqueceria a emoção desse encontro no chalé de cortiça na Pena, e mais tarde da récita, onde jovem executante, perante D. Fernando, a condessa d’Edla e convidados, tocara pela primeira vez “Au bord du lac de Pena”, que compusera em sua homenagem. Gratidão de artista paga-se com arte, pensou.
Pela tarde, chegava entretanto o gerador da Sintra- Atlântico para iluminar a sala para o concerto, que as famílias abastadas amavelmente pagariam. Viana da Mota ensaiava agora andamentos mais exaltados, levado pelo eco daquela sala ainda vazia.
Escolhera as “Cenas da Montanha” para abertura, o von Bullow sempre lhe dissera que era um dos seus temas mais conseguidos, partes da “Evocação dos Lusíadas”a seguir. No fim, se a luz não falhasse, “A Pátria”, a sua imagem de marca, que o visconde sublimemente apreciava e a plateia quase sempre reclamava.
Era 15 de Setembro de 1923, o Outono afastava já os veraneantes para a capital, havia risco de não encher, disseram. Viana da Mota adorava o desafio, porém. Que viessem dois mas bons em vez de trinta a bocejar.
A sala afinal encheu afinal, senhores de fato impecável, senhoras com os melhores chapéus, os homens da Sintra-Atlântico, a cultura juntando-se ao progresso. Cumprimentos, vénias, Guilherme Oram, feitor da casa Monserrate, verificando os pormenores, as tosses da praxe, a função.
Saudando com uma simples vénia, José Viana da Mota saboreou o silêncio expectante que sempre ocorre nos recitais, e depois dum momento sepulcral, qual guerreiro alucinado de espada em riste, esperando a fera desafiadora, espalhou o néctar inebriante de melodias redentoras sobre aquele cineteatro ufano e orgulhoso, São Carlos de aldeia, nem por isso menos vibrante e atento. Toda a família do visconde assistia, Eduardo Gaio e esposa, também pianista amadora, os Farias, da casa do visconde, bombeiros, autoridades. Algum povo, desconfiado e distante não deixava de espreitar ou ouvir no exterior.
Nessa noite mágica e luminosa, os tordos na serra fizeram silêncio, os sapos abafaram o coaxar, o som hipnotizado e hipnotizador do piano mágico atravessou o vale e Monserrate, agitando as acácias, amenizando as almas .Galamares, por umas horas, ganhava o seu pedaço de paraíso,
Lá longe, em Lisboa, já para lá dos oitenta, a velha condessa d’Edla tomava chá, e sorria, como se o som daquele concerto dum tímido rapaz que um dia mandara para Berlim lhe chegasse perfumado pela brisa da noite.