por F. Morais Gomes

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Out 10

Em tempos de vacas magras, a Cultura volta a ser o parente pobre do OGE. Unindo serviços  à pressa, cortando a eito, nas actividades criativas,que não na burocracia, a Cultura em Portugal vai ao fundo como o novo submarino, tudo a reboque de duas agências de rating e meia dúzia de cinzentos burocratas em Bruxelas que são quem efectivamente gere o rectângulo. E depois fala-se no reforço dos centros nacionais de decisão…

Também a nível local é  este o momento em que  se prepara o orçamento para o próximo ano, e na cultura o quadro da intermitência e precariedade dos agentes  culturais vai perpetuar-se, o que é já endémico. Tempo para reforçar a sugestão de que os quadros de tomada de decisões passem pela implementação dum Orçamento Participativo ,onde as verbas da Cultura e protecção do património sejam contratualizadas com os parceiros culturais aprofundando a democracia na tomada das decisões. Mas como estamos agrilhoados pelas tais agências big brother, tal procedimento é luxo a que não nos podemos dar, aliás pouco faltará para o acto de ler ou ir ao teatro pagar imposto ou as festas populares serem proibidas por falta de licença de ruído. Para enquadrar esse Orçamento participativo ,curial seria um Conselho Consultivo Cultural que  se pronunciasse sobre os instrumentos estruturantes da política cultural local e apreciasse os investimentos nessa área ,como seria normal numa democracia adulta de cidadãos, e não de vassalos.Mais ligação com as associações , a sociedade civil e o tecido empresarial, envolvendo  tal Conselho em contratos programa, cooperação internacional e mecenato, apoiados num Plano de Cultura e Conhecimento publicamente discutido e sufragado.Mas, infelizmente, também quem um dia disse I have a dream morreu logo de seguida...

É a triste condição de fazer parte do grupo dos PIGS,os feios porcos e maus desta Europa sem rumo, nas mãos de um chauvinista francês pinga-amor e uma governanta alemã mais perita em apfelstrüddel que em visão estratégica, querendo agora  erguer um novo muro de Berlim  separando os cumpridores obedientes dos despesistas rebeldes.


 

publicado por Fernando Morais Gomes às 16:16

Arnaldo raramente ia à praia, vivia enfiado naquele sótão da casa na Rinchoa onde escrevia  poemas que ninguém lia, tesouro da sua gaveta, confessionário dum ser torpedeado de inseguranças e fantasmas. Existia sem viver. Naquele dia, depois da consulta no hospital e a notícia de um fim próximo, tabaco fazendo das suas, sentiu a necessidade de estar perto da água salgada, sentir o cheiro límpido do iodo. Aterrara naquela esplanada da Praia Grande num turbilhão de whiskies duplos. Ninguém nos ensina a morrer, mas a verdade é que todos os dias da vida são intervalos que a morte nos concede.

Um cancro no pulmão intrometia-se, convidado indesejável. No início a surpresa, a hipótese do engano, a segunda opinião. Depois o desespero, presença insuportável, lágrimas, mágoa, as dores como companheiras mais chegadas. Estava só, naquela morte de viver, os livros que nunca editara, tudo comprometido por um corpo frágil e tangível, qual anjo caído, pecador, mergulhado em culpas secretas a quem iam faltando asas para voar. Exaurido do mundo, exaurido de si, talvez finalmente descansasse.

Antevia já a campa inerte onde poucas flores lhe iriam levar, uma lápide burocrática e igual a todas as outras, ninguém para lembrar a obra desconhecida por editar, só aquele solitário funcionário do registo civil a escrevinhar em guardanapos de papel na mesa do canto da leitaria do bairro as obras- primas da sua gaveta secreta,fumando os religiosos três maços de cigarros diários. Agora acendia mentalmente o cigarro e fumava com a imaginação, comprara um isqueiro de plástico. A quimioterapia fazia das suas, os cabelos cada vez mais agarrados ao pente, tosse purulenta, olhos inchados.

Uma vez mais pegava na caneta e no guardanapo de papel e ensaiava um testamento, requiem dos bens que não tinha para uma família que não existia. Quando tudo acaba não sabemos ao certo o que devemos pensar, há a tentação de escrever para imortalidade. Redigiu umas linhas, levantou-se, passeando no areal, um trilho de pegadas na areia molhada.Ignorou o médico, e fumou um dos cigarros assassinos, o mal estava feito.

No dia seguinte, a roupa foi encontrada numa rocha, o corpo nunca apareceu. Um empregado da esplanada, limpando as mesas, deu com um pequeno papel amarrotado dentro de um cinzeiro. Curioso, foi ler.”Hoje começa o dia de amanhã”.


publicado por Fernando Morais Gomes às 00:45

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