por F. Morais Gomes

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Out 10

Salomão Ben Crespe, cinquenta e cinco anos, esguio e parco de carnes, diariamente cumpria o rotineiro trajecto entre a sinagoga de Sintra, de que era rabino, e a R. da Pendoa, onde tinha casa e seu irmão ofício de sapateiro.

A comunidade era pequena, a sinagoga apenas permitida após carta de aforamento em 1407. Tentativas houvera de alargar a judiaria para lá da urbe, porém El-Rei D.Afonso V  ordenara que todo o judeu só pudesse utilizar a porta da judiaria como local de comércio, para lá da mesma estando vedado mercadejar.

A tolerância era parca, cristãos-velhos denunciavam com frequência às autoridades, por esses idos de 1496 que crianças judias brincavam junto à igreja de S.Pedro de Canaferrim, num claro desrespeito por tal solo sagrado.Em Espanha havia ocorrido a expulsão dos irmãos, sangues turvados originavam comportamentos sanguinários, valera na altura a tolerância de D.João, que montara acampamentos junto à raia para receber os sefarditas deserdados do reino vizinho.No entanto, só podiam permanecer oito meses e pagando taxas incomportáveis a El-Rei. Famílias judaicas eram já algumas, sapateiros, alfaiates, ferreiros, Jacob de Baiona ou Abraão Ruivo, haviam sido anciãos respeitados e laboriosos. Salomão Palaegno era por essa época um dos principais mercadores da Vila Velha.

Salomão ia amenizando a vida com as leituras dos Livros Sagrados na sinagoga, duas ménorahs em prata oferta da comunidade local como único adorno, local de refúgio dos filhos de Israel .Alguns vindos de Espanha instalaram-se em sua casa, maldizendo a sorte, acossados pela maldição de um sangue dito impuro e pela infelicidade de ser felizes nos negócios.

Um dia, um édito real acordou transtornado o sábio rabino. El-Rei D.Manuel, no encalço do cristão rei de Espanha decretava a conversão forçada, promessa de casamento para com sua católica noiva, os impuros que buscassem a purificação pelo baptismo, assim seria  grandioso senhor da Cristandade, temente à Santa Madre Igreja.

Salomão reuniu as principais famílias, assustadas, chingadas nas ruas pela plebe, pedia-se sangue, pela usura haviam porfiado, pois que pagassem, semíticos herdeiros de Caifás, que matara Nosso Senhor Jesus Cristo. Na igreja de S.Martinho, frei Gonçalo do Rosário acicatava á conversão em homilias incendiadas, marranos para bem longe, juntos aos infelizes gafos de S.Pedro, exigia-se.

A vila passava por seca prolongada, logo nas igrejas  justificada pela má influência dos judeus, o Senhor castigava o convívio com os pecadores, o inferno estava exangue dessa justiça cristã que apaziguaria os elementos encolerizados com Sintra. As pestes dos anos anteriores eram o sinal da ira divina e  incendiavam os clérigos.

Nas semanas subsequentes, oficiais do Paço correram as ruas e casas curando de saber quem se mostrava temente a Deus e ao Santo Padre, labaredas purificadoras se encarregariam dos que resistissem.

Salomão Bem Crespe juntou a comunidade.Velhos recitando salmos, filhos assustados pegando as saias de chorosas mães a medo entoaram os cânticos que os filhos de Moisés, David e Salomão cantavam desde que a terra do leite e do mel fora alcançada, essa Terra Prometida bem longe desta, agora  madrasta e castigadora.

Com o tempo, alguns converteram-se, era o fogo ou a sobrevivência. Frei Gonçalo do Rosário somava os baptismos salvíficos.No momento da água cair, cristalina, muitos fechavam os olhos e interiormente rezavam pela redenção do povo de Israel. Várias famílias de Sintra ainda tentaram fugir, mas o rei,alertado, fechou os portos. Os filhos de Rute de Córdova foram levados á mãe para serem educados como cristãos, a comunidade que restou passou a ser um espectro silencioso, arrastando uma lepra disfarçada, onde só os corações reprimidos podiam em sofrimento ser livres.

Salomão Ben Crespe, amargurado, acabou abandonando Sintra e retirou-se para Lisboa, onde nos  anos seguintes subsistiu como alfaiate no Rossio, em casa dum primo converso junto ao Hospital de Todos os Santos.

1506 entrara flagelado pela peste, os cristãos velhos celebravam a Semana Santa, Pesach hebraico,as  igrejas enchiam pedindo pelo fim da praga e pela redenção das almas, inflamados frades vendiam indulgências, muitos amancebados e com vidas dissolutas.

Na igreja de S.Domingos, ia o 19 de Abril, dominicanos assanhados peroravam contra os males do reino e seus pérfidos causadores, a turba cega e colerizada pedia sangue. Olhos turvados viam já sinais divinos num crucifixo junto a uma capela milagre, anunciava-se, muitos rezavam já, em fervor.Um cristão-novo mais sereno arrefecia os ânimos, seria apenas uma candeia acesa ao lado do crucifixo,parecia-lhe. Reconhecido como marrano, logo a plebe  matou o descrente, e acossada pelos dominicanos perseguiu nas ruas a eito todos os desnaturados e incautos às leis de Deus.

Salomão Ben Crespe passava nessa altura a caminho do Paço da Ribeira,absorto, vergado pela idade e desgostos da vida.Virando-se para o lado da igreja de S.Domingos viu vir em direcção a si um grupo de exacerbados populares, acicatando: Mata!Mata! Ainda se virou pensando ser outro o alvo de tal raiva,quando agarrado pelos longos cabelos o arrastaram pela terra pejada de excremento de cavalo, golpeando e pontapeando, como se a cada pontapé uma chaga de Cristo fosse curada e o reino dos Céus ficasse mais próximo.

Atordoado, junto a si espancavam mais três infelizes crianças arrancadas a suas mães e jorradas para um monte de lenha que logo se armou numa guincharia própria de açougue, como o bezerro sentindo o cutelo justiceiro.

Salomão fechou os olhos, olhou o céu, sorriu,e deixou que o calor libertador daquele madeiro  tomasse sua carne e chamuscasse as entranhas. A alma  preservada para a eternidade, descansaria agora ,o Deus de Israel não o abandonaria.Até 21 de Abril duraria a sanha, sanguinária e atroz.Nesses dias do ano de 1506 da era de nosso senhor D.Manuel, venturoso rei de Portugal, o fumo negro da perfídia, e o esturricado cheiro da justiça dos homens enegrecia a capital dum Império onde o Sol nunca se punha, mas as trevas não largavam.

publicado por Fernando Morais Gomes às 19:55

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