por F. Morais Gomes

28
Out 10

Máximo José dos Reis deambulava pela Quinta dos Pisões apreciando as suas laranjeiras e limoeiros, vendia para a cidade e até para Inglaterra. As suas propriedades estendiam-se de Seteais ao Rio do Porto, alugara às irlandesas Lawrence a estalagem quase vizinha e a partir daí como capitão -mor de Sintra administrava o concelho havia já 15 anos. Abastado, nada devia aos políticos desavindos em torno dos senhores D.Pedro e D.Miguel, sendo frequente ser ele a ajudar o erário público do seu  bolso, a troco de apólices da dívida pública.

A vida já o havia marcado. Enviuvara havia 12 anos, D.Maria Rosa não resistira ao quarto parto e falecera no paço da vila, sobreviveram-lhe dois varões e duas raparigas. Nesse ano de 1828, o filho mais velho pusera termo à vida, inexplicavelmente ,no tanque dos Pisões, assistira a tudo impotente, uma dor profunda marcava-o desde então.Evitava sair, prisioneiro da dor e da solidão intervalada pela administração dos negócios da Vila.

Dos lados do Paço chegou esbaforido um cavalo a trote interrompendo os seus pensamentos. Estevão Mateus, escrivão do concelho trazia notícias, uma mensagem escrita e lacrada.

-Senhor Capitão- Mor!Correio de Lisboa!É urgente!

Segurando um papel branco lacrado, entregou-lho. Máximo rasgou o lacre, curioso ,leu e descaiu sobre um banco de pedra do jardim:

-Será que a desventura veio para me acompanhar no resto dos meus dias?....-desabafou, pressionando as pálpebras com os dedos, ar cansado e envelhecido apesar de apenas contar cinquenta e nove anos.

-Alguma desgraça,senhor capitão?-sondou Estevão, preocupado.

-Meu filho Domingos,que estuda em Coimbra...

-Pois de saúde é a maleita?

-Pior. Antes fosse . Foi preso. Dizem que participou no assalto a uma carruagem com lentes de Coimbra que vinham ao beija- mão ao senhor D.Miguel…

-Pois será possível? O menino Domingos apenas se preocupa com os estudos, deve ser engano!

-Aparelha-me um cavalo, Estevão.Vou a Lisboa!

Quatro horas volvidas, na Intendência, conseguiu falar com Domingos, arrojado numa enxerga, a palha servia de colchão, ao fundo duas ratazanas circundavam uma côdea dura já bolorenta.

-Meu pai! Viestes!Vossa bênção, senhor!-súbito se ergueu o detido,olhos brilhando da surpresa.

-Meu filho!Diz-me que é falso o que dizem neste documento infame.Acaso atentaste contra teus mestres da forma ignominiosa que aqui relatam?-perguntou, abraçando o filho,a  barba era de vários dias e as olheiras profundas.

-Meu pai…-hesitou Domingos.-Sim, é verdade!Em nome da honra matámos os biltres,apressavam-se a servir ao bastardo D.Miguel, nada fizemos senão justiça!

-Mas quem? Com quem andas envolvido?

-Pai, eles vinham pedir a expulsão dos lentes adeptos de D.Pedro. Os Divodignos apenas fizeram justiça.

-Divodignos?

-Sim.Lembrai-vos de Francisco Cesário  Moacho, que uma vez levei aos Pisões?Em Coimbra  ele nos inspirou e uniu, a Sociedade dos Divodignos  não podia deixar que o  filho da adúltera Carlota Joaquina entregasse o reino a frades e inimigos da liberdade.

-Liberdade? Chamais liberdade a assassínio a tiro,de rosto coberto como  reles salteadores de estrada?

-O tempo é de acção, eles fariam o mesmo…-reagiu, seguro do seu acto.

-Cinco pessoas estão feridas, dois lentes morreram…-Meu filho, o senhor D.Miguel foi jurado Rei de Portugal,  D.Pedro seu irmão assim o quis, não pode a fúria de alguns homens querendo substituir-se  a Deus  impedir o curso dos reinos. Mal andaste, dilacerado está meu coração!

-Mas senhor meu pai, podeis ajudar-me a sair daqui, não podeis? Sois o capitão-mor de Sintra, os juízes da Relação são vossos amigos…

Máximo José dos Reis fechou os olhos, e afastou-se. Uma luz mortiça penetrava no calabouço imundo por uma nesga, um guarda vigiava. A mulher precocemente partira, um filho lhe morrera afogado nos Pisões….

-Não meu filho. Há que ser temente a Deus e ao Rei.Com  teus devaneios de juventude manchaste o nosso nome, enfrenta agora como um Reis as leis dos homens. Quem assim procede desonra a seu pai e com isso mortalmente o fere!

-Senhor!

-O Estevão fará com que te não falte uma malga de sopa e pão fresco.Adeus!

-Pai! Pai!Assim abandonas a carne da tua carne?-gritava Domingos, quase em lágrimas. Máximo dos Reis, sem olhar para trás, envergou o capote e o chapéu, e dilacerado tomou a estrada de Sintra para não mais voltar a ver aquele filho,  interrompida promessa de bacharel incendiado por um idealismo exacerbado.

Dos treze divodignos, a maioria acabou tristemente, na forca, outros  fugidos e emigrados. Um foi mais tarde encontrado no Algarve em estado miserável, caldeireiro ambulante. Tempos depois, outros fundaram o que viria a ser a Carbonária. Nos anos seguintes, foram riscados da matrícula outros estudantes, centenas expulsos, assim se extinguindo sem contemplação a Sociedade dos Divodignos.

Domingos acabou enforcado. Máximo José dos Reis, homem honrado,  ultimo capitão-mor de Sintra e seu primeiro presidente da Câmara depois das reformas de Mouzinho da Silveira, preferira a honra ao  chamamento do sangue.

Os Pisões cumpriam o  seu fadário de trágico palco de vidas perdidas. Depois de um anterior proprietário, D.José de Mascarenhas, ter sido condenado e morto por aí conspirar com os Távoras pela cilada ao rei, caía agora sobre o actual o ferrolho da desgraça: dois filhos mortos no mesmo ano, viúvo prematuro, arrastava na penumbra daquele casarão  um pesado e triste grilhão. O mesmo com o dono seguinte William Galway, que acabou seus dias num manicómio na América. A  suave e tranquila valsa  dos Pisões e suas fontes cristalinas  cedo ou tarde acaba em fatídico requiem  pelos seus incautos inquilinos…

publicado por Fernando Morais Gomes às 14:43

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