A musica arrancou, às ordens de Gildemeester.O velho cônsul, fortuna feita com os diamantes, inaugurava com brilho o novo palacete, aforado em de Seteais, fronteiro ao largo terreiro onde a artilharia real com frequência realizava manobras.
Para tanto convidara familias da aristocracia e o corpo diplomático. Representante do rei holandês, sessenta e cinco anos, alguns já em Portugal, havia casado com uma elegante senhora bem mais nova, a quem nesse dia ofertara um cintilante colar com um diamante lapidado em Antuérpia para a feérica festa.
Os convidados, creme de la creme , rodopiavam entre canapés e bebidas lautamente servidas por criados a rigor :o ministro da França, Laffite, o da Espanha, marquês de Sória e esposa, D.Diogo, Marquês de Marialva, estribeiro-mor do Reino, acompanhado dos filhos, Henriqueta e Pedro,Madame Street Arriaga, vizinha dona do Ramalhão, pares do reino, autoridades. O inglês Beckford, que chegara a Portugal naquele ano de 1787, com reputação de sodomita que o forçara a uma saída airosa de Inglaterra chamava as atenções e bruá entre as senhoras mais velhas, divididas entre o espanto pela sua distinção e o choque pelos alegados desvios. Contudo, o dinheiro tudo paga e Beckford exalava distinção, caíra nas graças dos Marialvas e visita frequente da casa de S.Pedro de Canaferrim.
André de Gildemeester, divertido, mostrava aos convidados a deslumbrante vista sobre a várzea verdejante, mar azul em fundo, o convento da Penha no seu presépio. As pinturas e lustres eram recentes, nem todas as salas estavam ainda mobiladas, mas a ânsia de ostentar e exibir a esbelta esposa, decidiram-no a uma festa que ficasse na memória.
O ministro da Inglaterra, Walpole, sabendo da presença de Beckford declinara o convite, constrangido. Mais fácil tinha sido a aceitação em Sintra do escandaloso filho do mayor de Londres que na corte inglesa, onde era tido como pária e ocioso, depois duma vida dividida entre um casamento de conveniência e os amores por um tal William Courtenay.Saíra de Inglaterra invocando um súbito desejo de conhecer a Europa…
Marialva, calculista, comentava com o Duque de Lafões a vontade de ver o jovem Beckford, viúvo e com vinte e seis anos , recomeçar a sua vida entre nós, talvez com Henriqueta, quinze prendados anos de lavores e piano. Beckford, contudo, mostrava mais inclinação pelo irmão,o esbelto Pedro, caracóis louros, corpo tenro de treze anos, já cadete, e sua lasciva presa nos salões dos Marialvas. Este, que trazia à recepção o amigo e cadete de cavalaria Álvaro de Albuquerque, escapava-lhe sempre que podia, incomodado.
Aberto o baile, um Gildemeester meio calvo e gordo, rodopiou com a vistosa esposa no colorido salão, ela deslumbrante, vestido debruado a seda, colar de diamantes reluzindo, minuete logo acompanhado pelos mais jovens, desafiando as envergonhadas donzelas, pouco dadas a grandes festas. A corte de Lisboa era frugal, a rainha Maria austera, morando com simplicidade na real barraca que seu pai erguera na Ajuda depois do cataclismo em 1755.Tal recepção era pois o acontecimento do ano.Beckford, cínico e provocador comentava mesmo com Gildemeester que rivalizava com o melhor de Paris, o que fez o velho cônsul, delirante,reforçar o champanhe para todos.
Festa em alta, o anfitrião fez um súbito sinal à orquestra para um intervalo, taça de cristal na mão, meio cheia. Já ruborizado perorava num português arrevesado, quando o grosso candelabro que iluminava o salão tombou, levando ao pânico na sala e incómodo ao anfitrião, que de imediato mandou criados reacender as velas e renovar as bebidas. Já ordenava que de novo a música arrancasse quando a consulesa largou um grito, entre espanto e pânico. O colar de diamantes sumira-lhe do frágil pescoço na confusão do candelabro.
Ruído geral, quem entre tantos distintos aristocratas e senhoras de bem teria a ousadia de tal acto próprio de salteadores.Muitos nesses tempos atribulados roubavam pelas azinhagas de Sintra, mas ali, gente de linhagem….
Os criados entreolharam-se, Beckford ria e escarnecia com Marialva, o cônsul, vermelho e suando, procurava manter a normalidade. Não era nada, talvez tivesse caído, no dia seguinte o encontrariam, dizia, entre um sorriso encenado e a apreensão com a fortuna que lhe sumia.A festa continuou, e já tarde se dispersou a parafernália, todos ainda comentando o sumiço do colar, que porém não mais apareceu.
Gildemeester ainda lá morou oito anos mais, tendo Marialva adquirido o mesmo após a sua morte. Beckford regressou a Londres, voltando a Portugal mais duas vezes, para Monserrate, contrariada, a jovem Henriqueta acabou casando com o idoso Duque de Lafões.
Vinte e sete anos depois, ia o ano de 1814,D.Pedro Vito,o jovem dos caracóis louros, agora 6º Marquês de Marialva, chegava a Paris como embaixador junto do rei Luís XVIII. Escondia o segredo duma aventura secreta com a princesa Carlota Joaquina, agora ausente no Brasil. O filho desta, Miguel, nascera seis meses depois de se apartarem e o Príncipe Regente confessara a seu físico para mais de dois anos não visitar os aposentos da princesa a quando da gravidez...
Desempenhado da função, por lá ficou, adquirindo para si e para um velho amigo,o coronel D.Álvaro de Albuquerque um valioso palácio em Besançon. O Reino ocupado e a Corte no Brasil desaconselhavam um regresso apressado a Lisboa.
Um valioso colar de diamantes, cobiça de joalheiros boquiabertos com peça de tal quilate pagava a tranquila e abastada vida que desde então levou até final dos seus dias…