por F. Morais Gomes

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Out 10

A musica arrancou, às ordens de Gildemeester.O velho cônsul, fortuna feita com os diamantes, inaugurava com brilho o novo palacete, aforado em de Seteais,  fronteiro ao largo terreiro onde a artilharia real com frequência realizava manobras.

Para tanto convidara familias da aristocracia e o corpo diplomático. Representante do rei holandês, sessenta e cinco anos, alguns já em Portugal, havia casado com uma elegante senhora bem mais nova, a quem nesse dia ofertara um cintilante colar com um  diamante lapidado em Antuérpia para a  feérica festa.

Os convidados, creme de la creme , rodopiavam entre  canapés e  bebidas lautamente servidas por criados a rigor :o ministro da França, Laffite, o da Espanha, marquês de Sória e esposa, D.Diogo, Marquês de Marialva, estribeiro-mor  do Reino, acompanhado dos filhos, Henriqueta e Pedro,Madame Street Arriaga, vizinha dona do Ramalhão, pares do reino, autoridades. O inglês Beckford, que chegara a Portugal naquele ano de 1787, com reputação de sodomita  que o forçara a uma saída airosa de Inglaterra  chamava as atenções e bruá entre as senhoras mais velhas, divididas entre o espanto pela sua distinção e o choque pelos alegados desvios. Contudo, o dinheiro tudo paga e Beckford exalava distinção, caíra nas graças dos Marialvas e visita frequente da casa de S.Pedro de Canaferrim.

André de Gildemeester, divertido, mostrava aos convidados a  deslumbrante vista sobre a várzea verdejante, mar azul em fundo, o convento da Penha no seu presépio. As pinturas e lustres eram recentes, nem todas as salas estavam ainda mobiladas, mas a ânsia de ostentar e exibir a  esbelta esposa, decidiram-no a uma festa que ficasse na memória.

O ministro da Inglaterra, Walpole, sabendo da presença de Beckford declinara o convite, constrangido. Mais fácil tinha sido a aceitação em Sintra do  escandaloso filho do mayor de Londres que na corte inglesa, onde era tido como pária e ocioso, depois duma vida dividida  entre um casamento de conveniência e os amores por um  tal William Courtenay.Saíra de Inglaterra invocando um súbito  desejo de conhecer a Europa…

Marialva, calculista, comentava com o Duque de Lafões a vontade de ver o jovem Beckford, viúvo e com vinte e seis anos , recomeçar a sua vida entre nós, talvez com Henriqueta, quinze  prendados anos de lavores e piano. Beckford, contudo, mostrava mais inclinação pelo irmão,o esbelto Pedro, caracóis louros, corpo tenro de treze anos, já cadete, e sua  lasciva presa  nos salões dos Marialvas. Este, que trazia à recepção o amigo e cadete de cavalaria Álvaro de Albuquerque,  escapava-lhe  sempre que podia, incomodado.

 Aberto o baile, um Gildemeester meio calvo e gordo, rodopiou com a vistosa  esposa no colorido  salão, ela deslumbrante, vestido debruado a seda, colar de diamantes reluzindo, minuete logo acompanhado pelos  mais jovens, desafiando as envergonhadas donzelas, pouco dadas a grandes festas. A corte de Lisboa era frugal, a rainha Maria  austera, morando com simplicidade na real barraca que seu pai erguera na Ajuda depois do cataclismo em 1755.Tal recepção era pois o acontecimento do ano.Beckford, cínico e provocador comentava mesmo com Gildemeester que rivalizava com o melhor de Paris, o que fez o velho cônsul, delirante,reforçar o champanhe para todos.

Festa em alta, o anfitrião fez um súbito sinal à orquestra para um intervalo, taça de cristal  na mão, meio cheia. Já ruborizado perorava num português arrevesado, quando o grosso candelabro que iluminava o salão tombou, levando  ao pânico na sala e incómodo ao anfitrião, que de imediato mandou criados reacender as velas e renovar as bebidas. Já ordenava que  de novo a música arrancasse quando a consulesa largou um grito, entre  espanto e  pânico. O colar de diamantes sumira-lhe  do frágil pescoço na confusão do candelabro.

Ruído geral, quem entre tantos distintos aristocratas e senhoras de bem teria a ousadia de tal acto próprio de salteadores.Muitos nesses tempos atribulados roubavam pelas azinhagas de Sintra, mas ali, gente de linhagem….

Os criados entreolharam-se, Beckford ria e escarnecia com Marialva, o cônsul, vermelho e suando, procurava manter a normalidade. Não era nada, talvez tivesse caído, no dia seguinte o encontrariam, dizia, entre um sorriso encenado e a apreensão com a fortuna que lhe sumia.A festa continuou, e já tarde se dispersou a parafernália, todos ainda comentando o sumiço do colar, que porém não mais apareceu.

Gildemeester ainda lá morou oito anos mais, tendo Marialva adquirido o mesmo após a sua morte. Beckford regressou a Londres, voltando a Portugal mais duas vezes, para Monserrate, contrariada, a jovem Henriqueta acabou casando com o idoso Duque de Lafões.

Vinte e sete anos depois, ia o ano de 1814,D.Pedro Vito,o jovem dos caracóis louros, agora 6º Marquês de Marialva, chegava a Paris como embaixador junto do rei Luís  XVIII. Escondia o segredo duma aventura secreta com a princesa Carlota Joaquina, agora ausente no Brasil. O filho desta, Miguel, nascera seis meses depois de se apartarem e o Príncipe Regente confessara a seu físico para mais de dois anos não visitar os aposentos da princesa a quando da gravidez...

Desempenhado da função, por lá ficou, adquirindo para si e para um velho amigo,o coronel D.Álvaro de Albuquerque um valioso palácio em Besançon. O  Reino ocupado e a Corte no Brasil desaconselhavam um regresso apressado a Lisboa.

Um valioso colar de diamantes, cobiça de joalheiros boquiabertos com peça de tal quilate pagava a tranquila e abastada vida que desde  então levou até final dos seus dias…

publicado por Fernando Morais Gomes às 11:10

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