por F. Morais Gomes

30
Nov 10

A manchete do PÚBLICO não deixava dúvidas: documentos revelados pelo site Wikileaks desvendavam que Osama Bin Laden poderia ter estado em Portugal em 2008.A embaixada americana em Lisboa teria recebido informações de que o mesmo entrara com um passaporte português falsificado, roubado na nossa embaixada em Riad, e teria estado alojado durante dois meses numa casa em Sintra, perto de Colares, de onde seguira para o Paquistão, onde se suspeitava que estaria neste momento.

Gustavo leu e ficou intrigado: dono de um táxi em serviço em Colares, lembrava-se daquele dia em que fora chamado para levar um indivíduo de meia idade, tez bronzeada e cabeça rapada a uma reunião no Restelo, um prédio de apartamentos junto ao estádio do Belenenses. O indivíduo, casaco escuro e camisola de gola alta, seguira sempre em silêncio, a seu lado um outro, mais jovem, indiano ou paquistanês, que todo o caminho falava pelo telemóvel, numa língua oriental, pareceu-lhe. Haviam pedido para esperar, a tarifa de ida e volta era a certeza do dia ganho. No regresso, deixou-os numa casa em Almoçageme, persianas corridas, aspecto de muito tempo abandonada, embora habitável. Voltou a vê-lo na praia, uns dias depois, o jovem sempre ao lado, vigilante.

Curioso, ao fim do dia, depois duma corrida até à Azóia passou pelo local, a casa estava de novo fechada.Decidiu entrar no jardim, acessível, embora isolado, não muito longe da Toca do Júlio. A relva há muito não era aparada, duas caixas de cartão continham jornais velhos. Aventurou-se a espreitar pela janela. Uma mesa e duas cadeiras, alguns sacos de plástico, um exemplar amarelecido de um jornal, árabe parecia-lhe. Seria aquele careca silencioso o famigerado Bin Laden que o mundo inteiro procurava e potentes sensores térmicos americanos falhavam em localizar?

Gustavo, sendo taxista, tinha uma frequência em Direito, desistira no segundo ano, e falava inglês razoavelmente, caso raro nos taxistas portugueses. Nessa noite pesquisou no Google dados sobre o terrorista mais procurado do mundo, o algoz do World Trade Center.Teria 56 anos, vivera muito tempo no Afeganistão, fora apoiante dos mujahidin e dos talibãs, tinha uma fortuna provinda dos negócios de família na Arábia Saudita. Alguns jornalistas que vagamente o conheceram referiam que sofreria de insuficiência renal.

No dia seguinte, ainda a matutar no misterioso careca, transportou o dr. João Botelho, clínico em Sintra, ao Centro de Saúde e como habitualmente, foi metendo conversa:

-Doutor, diga-me lá uma coisa, como é que se trata a insuficiência renal?

-Normalmente com hemodiálise, Gustavo.É um tratamento que pode levar de 3 a 5 horas diárias, e permite depurar do sangue substâncias como creatinina e a ureia. Faz-se usando um dialisador, onde o sangue é exposto à solução de diálise através de uma membrana semipermeável. Depois de retirado e filtrado pelo dialisador o sangue é devolvido ao doente pelo acesso vascular. É muito frequente hoje, o meu cunhado já faz há dois anos.

-Hum…. E tem de ser num hospital?

-Depende. Em alguns casos, o dialisato coloca-se no abdómen com um cateter lacrado. Leva várias horas a escoar a solução de reserva à bolsa e reencher o abdómen com solução fresca.

Nessa noite, voltou à casa de Almoçageme. Forçando uma janela, decidiu entrar.Sala deserta, numa mesa um mapa de Portugal e uma lista telefónica. Na casa de banho as loiças já calcinadas, uma escova de dentes num copo plástico, meio escurecida, nada de anormal.

Voltava a sair pela mesma janela quando descobriu uma lancheira azul, das que se usam nos piqueniques, numa dispensa. Abriu-a, no interior um volume de algodão, água oxigenada e um tubo fino, flexível. Era uma pista. Levou-os e foi a casa do dr.Botelho a mostrar

-Doutor, sabe para que serve isto? - e mostrou o tubo encontrado.

-Isso é um cateter, Gustavo.Olhe, lembra-se da conversa de hoje de manhã? Serve para tratamentos, como a hemodiálise, por exemplo.

As coisas começavam a fazer sentido.Um careca, disfarce óbvio para circular sem ser reconhecido, o indiano, da Al-Qaeda, de certeza, a hemodiálise.Tudo encaixava.Telefonou para a TVI e anunciou ter uma história bombástica, queria falar com o director de informação.

Pela manhã, ao volante do táxi dirigiu-se para Queluz de Baixo, imaginava já a CNN a entrevistá-lo para o Larry King, idas à Judite de Sousa e Nuno Rogeiro, exclusivos. Antes foi meter gasolina, em Colares, de soslaio leu as primeiras páginas dos jornais. Chamou-lhe a atenção uma foto, uma figura muito semelhante à do misterioso passageiro para o Restelo, com chamada para as páginas interiores. Correu a comprar, e fixado na página indicada inteirou-se da novidade:”Faleceu ontem em Lisboa, aos 56 anos, o conhecido arabista e professor da Faculdade de Letras Arménio Linhares. Autor de várias obras sobre o Médio Oriente, sucumbiu vítima de insuficiência renal. O Primeiro- Ministro já lamentou a perda irreparável para a comunidade científica nacional”.

Ainda mal refeito do impacto, o telemóvel chamava, da TVI:

-O director de informação vai recebê-lo a partir das 10h, pode confirmar? - perguntou uma voz feminina do outro lado.

-Não, não, lamento- respondeu, desolado. A essa hora tenho um serviço para o aeroporto…


publicado por Fernando Morais Gomes às 22:50

28
Nov 10

O vigilante fechava as portas de madeira, o projector sobre o torreão estava já apagado, uma da manhã. Em volta, poucos circulavam, noite de Inverno, as chaminés da Vila imitavam o lento apagar, lua cheia, cintilante, a vila dormia.

O leão de pedra, silenciosa sentinela dos paços do concelho de repente parecia uma lâmpada de néon. De branco fez-se azulado, os olhos vermelhos, ganhava vida, com um salto, seguro postava-se majestoso frente à Tasca do Manel. Abanando a cabeça ,rugiu e subiu direito à estação.

Shintara,assim se chama o leão, havia sido em tempos um vizir árabe a quem uma vil e vingativa feitiçeira transformara em pedra havia mais de mil anos, no Castelo dos Mouros. Durante o dia, hirto, contemplava o movimento, serra ao fundo, cidadãos tratando dos seus assuntos, funcionários atarefados com processos, vereadores marcando reuniões. À noite, ganhava vida, até ao nascer do sol, quando inexoravelmente voltaria ao pedestal, tinha uma missão a cumprir: fazer justiça a quem ali tinha ido em busca dela e saído sem resposta, proteger os fracos,o rei da selva lutando pelo reino da justiça.

Naquela noite havia vários locais a visitar, injustiças a reparar, várias pessoas haviam já falado num leão nocturno deambulando em Sintra,mas como loucos ou ébrios foram tratados. Leão em Sintra só um que era polícia, dizia o Manel da tasca, aviando uma bica.

Shintara subiu a rua, o último comboio saíra já, um derradeiro táxi esperava o tardio cliente. A primeira paragem seria no Morais. Uma rajada de vento dias antes soltara o grosso galho de um plátano sobre o carro de Sandra, faltara a sinalização, a câmara que não, não podiam indemnizar, fizesse uma exposição. Sandra ganhava o ordenado mínimo, trabalho na Abrunheira, o seguro não cobria os danos e tinha de trabalhar todos os dias, a creche do pequeno Ruca para pagar. Shintara, resoluto, dois polícias na ronda sem o verem, rugiu, bandeou a farta juba, e como por milagre, o carro em segunda mão ficava agora como novo, chapa sem riscos, vidros repostos, os galhos ameaçando queda subitamente cortados e removidos.

Esboçando um ar de felicidade, fechou os olhos e seguiu em frente, missão cumprida.Na Portela de Sintra, morava Dolores, funcionária administrativa. Miguel Gomes fazia quinze dias que subia e descia as escadas da câmara em busca duma licença  que permitisse a festa de Natal da escola primária do filho, incluía a comissão de pais.Dolores estava renitente: era o número de contribuinte, primeiro, o IRS depois, este não, tem de ser original, o certificado dos bombeiros, a licença de ruído. Passaria o Natal e a festa estava em risco. Dolores dormitava, trinta anos de câmara e toneladas de requerimentos, o prazer de levantar mais um problema, um impresso, uma taxa.

Shintara galgou a varanda de um salto só, um primeiro andar antigo, e focando a cama onde ela e o marido dormiam, rugiu zangado, levantando-se nas patas traseiras do lado de fora da vidraça.Só eles o viam e ouviam, tinha o dom de só se deixar ver a quem queria, em pânico fugiram para a sala. Shintara fixou Dolores e, voz gutural, sentenciou:

-Se criares dificuldades para vender facilidades, a fúria de Shintara cairá sobre ti, imprestável! Faz o teu trabalho e serás reconhecida!- deixando a velha funcionária a  correr em busca de um Valium, atónita, o marido escondido na dispensa.

A última paragem era em Lourel: Fernando metera um projecto para ampliar a pequena casa onde vivia, uma mãe idosa que não queria internar no lar precisava de um quarto, simples, familiar. O arquitecto levantava problemas, a volumetria, o PDM, a legenda. Shintara entrava agora no jardim da casa com onde o arquitecto vivia. Dormia, televisão ligada. Desta feita, por hipnose fez aparecer em sonho ao dorminhoco arquitecto uma família feliz, a velha avó com os netos brincando aos pés, um sorriso de felicidade, ele inconscientemente dormia e esboçava um sorriso e com a mão instintivamente acariciava o mais pequeno apalpando a almofada.

A noite ia já longa. Um sem abrigo ajeitava os cartões e a placa de esferovite que lhe servia de colchão, a lua cheia reflectia a sombra do grande felino no empedrado da Estefânea. Era tempo de voltar, depressa clarearia, os primeiros funcionários da manhã rotineiramente cumpririam mais um dia entre a parafernália de requerimentos, guias, despachos, certidões.

De volta à câmara, pulou para o pedestal, rugiu uma última vez, e lentamente foi ficando azulado, prateado e logo branco, alvo, eterno, orgulhoso.

Pelas sete horas chegavam as senhoras da limpeza, o Manel aquecia a máquina do café, o comboio cumpria o ritual diário de partidas e chegadas, turistas, utentes, alunos.

Sandra boquiaberta ria e chorava ao mesmo tempo, carro renovado, despesa riscada, Dolores chegava surpreendentemente simpática e pontualmente abria o guichet, prestável, o arquitecto requisitava o processo e apunha diligente um parecer favorável.

O leão, impassível sentinela, interiormente regozijava, logo tornaria à sua ronda justiceira, nova noite, novo périplo. Nessa tarde ainda sentiu na cabeça uma involuntária festa de Miguel Gomes que apressado ia buscar a licença que franquearia a festa de Natal de muitos pequenos na escola. Isenta de taxas.


publicado por Fernando Morais Gomes às 16:31

26
Nov 10

O guia conduzia os últimos visitantes pela Sala dos Veados, na Pena.Rogério discretamente deixava-se ficar para trás, simulando atenção a um baixo- relevo incrustado num corredor.

Rogério, trinta anos, empregado nos correios, tinha um defeito. Era um  colecionador obstinado. Selos, envelopes, notas, moedas, fotos, músicas, tudo tinha devidamente catalogado e inventariado, tudo pelo prazer de juntar. Da cleptomania, evoluíra para uma espécie de esquizofrenia, a certa altura o colecionismo de passatempo passara a ser uma obsessão. Aos 18 anos já era perito em História de Arte, dissertava sobre estilos, o manuelino, o gótico, literatura alemã ou cultura árabe, viajara pela Europa onde conhecera todos os grandes museus e palácios do mundo, o Hermitage, o Louvre, o Guggenheim.

Desta vez o seu alvo era um conjunto de pratos da Companhia das Índias adquirido por D. Fernando II e que se encontrava na Sala Árabe do Palácio da Pena, vitifricados, recobertos de esmalte incolor e transparente, com desenhos representando paisagens da China ao tempo da dinastia Tang.

Estava frio, ameaçava chover a qualquer instante. Depois de discretamente se ter infiltrado na sala, já os visitantes do dia tinham saído, luvas colocadas, memorizou o plano previamente estudado e assim que as portas se fecharam, deixando-o no interior, em bicos de pés avançou até ao salão. De acordo com o reconhecimento que fizera em anterior visita não havia videovigilância ou alarme, em silêncio, penetrou no salão apenas iluminado pela luz exterior. Um vigilante, na zona da bilheteira, lia um jornal desportivo, bocejando.

Em visitas prévias tirara fotografias á sala e aos pratos, qual vulgar e insuspeito turista, e em casa treinara com uma sacola os timings e procedimentos, inclusive às escuras, para se habituar a orientar no interior. Já antes furtara um valioso cálice de prata do Museu de Arte Antiga em Lisboa, nunca fora descoberto o ladrão. Assim que se sentiu em segurança, acendeu uma pequena lanterna de bolso e aproximou-se das peças.

A denominada “Sala Árabe”, pintada por Paolo Pizzi, estava ricamente adornada com cadeiras indianas, consolas de ébano, os ditos pratos Companhia das Índias, e encimada por um vistoso lustre. Rogério retirou um saco de pano almofadado especialmente comprado para o efeito, colocou os pratos no saco e este dentro de uma mochila. Um resmalhar de passos quebrou o silêncio, tosse seca, o vigilante passava ronda, escondeu-se atrás dum reposteiro, a respiração sustida.

Afastado o sonolento guarda, do bolso retirou um retrato do rei D.Fernando, deixou-o no lugar dos pratos, com farda de oficial, ainda jovem . De seguida sacou da mochila uns ténis três números acima dos que calçava, um de cada cor, guardou os que trazia e saindo por uma janela pé ante pé, saiu do palácio às arrecuas, sumindo pelo caminho florestal. Cem metros à frente abandonou um ténis, o esquerdo, amarelo, caminhando descalço de um pé até junto de uma bicicleta dissimulada. Já perto do Chalé da Condessa, em obras, calçou os ténis que usava de início, largando o outro, de cor branca.

Guardado o valioso despojo na casa da Vila, a juntar à vasta colecção, trocou de roupa e foi tomar um copo ao Dois ao Quadrado, rotina diária, ninguém suspeitando, as luzes da Pena já ligadas.

Os pratos eram o trato acordado com Werner, um alemão, ar hippie, quarenta anos, que com ele trocaria um raro selo alemão do século XIX, o tal que lhe faltava numa vasta colecção que lhe atulhava a casa .A bem dizer não seria um ladrão mas um colecionador, cleptómano incorrigível, nada se perdia, apenas mudava de mãos.

Só no dia seguinte o alerta foi dado, a Judiciária baralhada com as pistas suscitadas pelos diferentes ténis, um percurso ziguezagueante, nada de impressões digitais. E a foto sóbria de D.Fernando no lugar dos pratos. O inspector André, da PJ mirava a foto, impressa a partir de computador. No verso, um recado enigmático “Em arte, procurar não significa nada. O que importa é encontrar”


publicado por Fernando Morais Gomes às 21:29

25
Nov 10

D. António Castelo-Branco Correia e Cunha, 5º conde de Pombeiro escolhera quarta-feira para reunir os membros da Nova Arcádia na sua Quinta de Belas, a nova fonte de Neptuno e as obras recentes tornavam-na um dos locais mais agradáveis fora da capital. Em tempos pertencera ao traidor Diogo Lopes Pacheco, um dos algozes de Inês de Castro, e o próprio rei D.Pedro depois de a confiscar aí viveu algum tempo.

Conquanto as tertúlias fossem habitualmente no palácio do conde em Lisboa, desta feita o aniversário da esposa trazia os académicos e ilustres membros a apanhar ares de Belas. Alem dos condes e família, marcavam presença o padre Domingos Caldas Barbosa, Bocage, o conde de Vimioso, José Agostinho de Macedo, outros mais, a Lisboa da Viradeira.Também convidado, ar carrancudo e austero, o intendente da Polícia, Pina Manique.

Caldas Barbosa, o mulato Lereno, como literariamente se baptizara, era o mais expressivo. Gongorismos recorrentes, via ninfas em qualquer matrona, tágides no charco mais mal cheiroso, glosando as futilidades tão do gosto do conde. O fofo conde, como lhe chamava o cáustico Bocage.

Ao invés dos saraus em Lisboa com bolinhos e torradas, desta feita a festa era de gala, aniversário natalício, noite literária em perspectiva.

Bocage detestava aquela fauna, sobretudo Lereno, e só aceitara comparecer porque sempre seria mais um jantar grátis, alguma sopeira mais matrona com que se refastelasse nalguma alcova dos fundos colmataria as alarvices do conde e os esgares patéticos de Agostinho de Macedo. Como arcáde adoptara o acrónimo de Elmano Sadino, sarcástica coqueluche nos salões de Lisboa e visita assídua dos calabouços do Limoeiro.

A busca do ideal campestre, o locus amenus de que tanto se emulavam fazia da pueril Belas o recanto idílico para investida de bucólicas odes e inspiradas elegias, assim corressse o tinto ou o branco, proclamando o corte no inútil, inutilia truncat, como de cátedra apregoava Macedo, ele mesmo entre inutilidades bolçando poemas a metro.

Nessa noite um clarete providencial espevitara Bocage, boémio desbocado, estrela dos salões e guerreiro do escárnio, sempre perto da polémica ou do Aljube. De copo cheio, meteu-se com Lereno:

-Então que me diz da adega do conde? Boa uva, soneto inspirado vem a caminho, não? -sarcástico, provocava, três copos já esvaziados.

-O néctar de Baco apenas enviesa os espíritos néscios, sr. Bocage, nunca talentos seguros como o meu! -rematou enfatuado o ditoso génio dos salões.

Nesse ano de 1791 já Bocage fundador da Nova Arcádia se incompatibilizara com vários dos outros membros, era notória a sala dividida entre a corte dos amigos e inimigos de estimação, a muitos votando gargalhadas de desprezo, logo vingativos sonetos acabariam com os infames.Bocage era o assassino da pena, a Lisboa do prostíbulo infiltrada nos salões dos peraltas.

Entre um canapé e mais um branco de Colares vislumbrou na sala a criada de fora, Marília, que corada e lânguida servia os convidados. Logo fixando aqueles seios arrebitados e formoso colo, se lhe colou lascivo.A pretexto de usar os lavabos postou-se na saída para a adega, onde logo Marília iria repor mais litros de verve no copo dos quejandos mestres da palavra, o escol do reino.Na penumbra das pipas, vasilha na mão, mal a sentiu chegar, logo o braço esfomeado lhe agarrou a fina cintura e o traseiro redondo e apetitoso, o sangue aos pulos, a vasilha logo no chão.

Na sala, o conde, pedindo silêncio, chamou Lereno a improvisar encómios para a piedosa e aniversariante esposa, pouco favorecida por Vénus, peruca francesa desenxabida, pó de arroz pastoso, uma mantilha de cambraia a estrear.O imbecil, enfatuado, respirou fundo e papagueou qual dançarino um minuete de elogios tais que a própria condessa questionava se era dela que estavam falando. No final aplaudiu, rosada, e mais vinho correu no salão de Belas, palmas fervorosas. Agostinho Macedo perorava sobre a decência, que as cortesãs recatadas deveriam obedecer a seus maridos, entronizadas no Belo, mas castas e obedientes, enquanto os demais anuíam.

Bocage, entretanto, no escuro da adega e entre guinchinhos ofegantes e os barris do conde de Pombeiro materializava nova elegia no corpo branco de Marília, já esquecida da sala onde se esperava a vasilha.

Voltado à sala, já composto, foi a condessa quem lhe pediu um soneto. Bocage, regressado, respirou fundo, qual forcado antes de enfrentar o toiro, e com o pensamento ainda na carnuda Marília lá desfiou panegírico fervilhante, esbanjando odes àqueles olhos buliçosos e lábios voando, cabelos subtis e luminosos, dedos melindrosos, tudo o que se entendesse e ainda mais, o salão exultava.

O conde, antes embevecido, começou a achar exagerado o tom usado e com tosses secas abreviou a récita, com a condessa já vermelha sacudindo o leque, afogueada. Acabada a poesia, seguiu a festa com a inevitável modinha brasileira do boçal Lereno. Agostinho de Macedo, entretanto, invectivava a pobreza dos Lusíadas, ele faria melhor, enquanto Pina Manique e o conde de Vimioso falavam sobre a nova obra do intendente, a Casa Pia de Lisboa.

Bocage, ainda mal recobrado dos deleites com a bela Marília já de novo escapulia e ardente a procurava.Um sinal com o dedo e a cavalariça do conde era agora leito quente e aconchegado, qual gruta de Belém com ele arcanjo. Amar e poetar, eis a felicidade, pensava Bocage, saltimbanco da vida e bardo do prazer.


publicado por Fernando Morais Gomes às 14:23

24
Nov 10

A carta de Oliveira da Figueira chegara a Moulinsart misteriosa e enigmática.O amigo português de Tintin pedia ao repórter belga que viesse  a Portugal investigar o misterioso roubo de um valioso rubi  na Quinta da Piedade  em Sintra, requeria-se discrição e celeridade.

Chegados a Sintra, Tintin, Milú e o capitão Haddock instalaram-se em casa de Oliveira da Figueira no Largo do Vítor, Milú logo ladrando atrás de Sissi, a gata siamesa que pachorrenta dormitava na soleira da casa.

-Pois ainda bem que veio, meu caro.A minha amiga, a marquesa do Louriçal está muito preocupada, pois o rubi é valiosíssimo, veio para  Portugal pelas mãos de um seu familiar que aqui se instalou no tempo de Junot,há duzentos anos .Mas ela é muito avessa à imprensa e deseja discrição.E lembrei-me de si!

-Compreendo.Podemos começar por visitar o local então!.

-Havemos de encontrar os iconoclastas, com mil milhões de macacos!-rugiu estimulado o capitão Haddock, mirando um quadro de Burnett na parede.

No dia seguinte, serra acima lá foram até à Quinta da Piedade pela estrada de Monserrate no jipe cheio de tralha de Oliveira da Figueira, agora negociante de antiguidades orientais, deixara-se de viagens pelo mundo.

A Quinta, rodeada de frondosas árvores, era um pequeno paraíso, vista deslumbrante, a Pena em fundo.O rubi desaparecera de um cofre de parede atrás dum retrato de Napoleão. Nem sinais de arrombamento, tinha sido aberto por quem conhecia a combinação. Na biblioteca, a marquesa num cadeirão, o segundo marido, vinte anos menos, ao lado, contou a história da jóia desaparecida.

- Meus senhores, em 1802, um ladrão de nome Marcel, roubou em Paris, 82 rubis orientais raríssimos, entre eles um com 24 quilates. Em 1807 Marcel foi preso na Bastilha e condenado à morte, mas a troco duma fuga consentida que o salvou da guilhotina deu a um antepassado meu esse rubi, o qual desde então se tem mantido na nossa família-foi contando, a marquesa tinha ascendência francesa e um trisavô fora director da famosa prisão de Paris, o tal a quem Marcel dera o rubi a troco de o deixar escapar.

Tintin pediu para ver a casa, e saber quem a ela tinha acesso.

-Comigo vive o meu marido, René, o mordomo, o Perestrelo, e a cozinheira, a Marília. Mas há dias dei uma recepção, vamos ter um recital aqui em Sintra e fez-se uma homenagem à famosa cantora lírica Castafiore- recordou, o marido em pé ofereceu whisky, só Haddock aceitou.

-Castafiore? A Castafiore está em Portugal? -perguntou surpreso o capitão Haddock

-Sim, está em Seteais, vai actuar nos jardins amanhã á noite, junto com o José Carreras.

Tintin deu uma volta pela quinta. Junto a uma trepadeira, dois vultos agachados pareciam mirar algo.

-Boa tarde! -atirou

Os intrusos, sobressaltados, na pressa de se levantarem chocaram um com o outro.Eram os detectives Dupont e Dupond.

-Vocês aqui? Que fazem estes peripatéticos idiossincráticos aqui ?-vociferou o capitão,sempre embirrara com eles e o seu bigodinho retorcido.

-Não se assuste, caro capitão. Estamos a investigar para uma companhia de seguros!- explicou Dupont, tirando o chapéu em cumprimento.

-Sim, há um seguro de cinco milhões de euros, sabia? -logo acrescentou Dupond, seguro de desvendar uma novidade.

-E já descobriram algo? -interrogou Tintin.

-Quase, quase.Vêm esta coisa no chão? - e Dupond, apontou um detrito acastanhado no chão, junto à trepadeira-É o resto dum charuto cubano, um Monte Cristo nº 5, dos puros! -e com um lenço pegou o vestígio, ar ufano, Sherlock Holmes não faria melhor.

Juntos foram ter com a marquesa: se tinha reparado em algum convidado na recepção fumando charuto. Recordava-se efectivamente, um amigo do comendador Berardo fumava, o cheiro intenso recordava-lhe o personagem, um armador grego, pensava, a negócios em Viana do Castelo, ela detestava o cheiro de charuto.

-Mas espere, o meu mordomo, o Perestrelo deve saber o nome, havia uma lista de convidados.

O velho Perestrelo, fleumático, buscou numa gaveta a lista da festa. Grego ou parecido, havia um Giorgios Papadopoulos, de Salónica, um careca de bigode escuro e monóculo no olho direito, lembrava-se de com Berardo discutirem a nova exposição do Tate Modern.

-Monócolo? Grego? Está tudo explicado! –interrompeu Tintin,fazendo luz-O nome não é esse, mas sim Rastapapoulos.É um famoso ladrão internacional , pensava que tinha morrido num naufrágio em Djibuti há 3 anos, foi noticiado na imprensa.Afinal safou-se!

-E onde o poderemos encontrar? -questionou René,interessado.

-Segundo o Berardo, está na Penha Longa, querido, parte esta semana-esclareceu a marquesa, recordada.

Logo se dirigiram para o hotel no carro de Oliveira da Figueira,com sorte ainda o encontrariam.

Lá estava Rastapapoulos, relaxado, bebendo um bloody mary no clube de golfe, sorridente contemplava o green. Vendo-os chegar,  reconheceu aquelas figuras familiares de outras peripécias e correu a esconder-se num lavabo. Mas já Tintin lhe atalhava o passo, enquanto o capitão Haddock o imobilizava pelo pescoço numa zona isolada do relvado.

-Alto aí tratante ditirâmbico, esdrúxulo ladrão de jóias! -gritou, enquanto lhe torcia o braço, Dupond e Dupont, na peugada algemaram-no, presa grossa, afinal o falso morto estava vivo e bem vivo.

-Eu não fiz nada! O que me querem? – gritou ofegante,esbracejando

-Confessa onde guardaste o rubi, miserável escatológico! -ameaçou o capitão.

-Que rubi? Apenas vim jogar golfe, não sei de nada!

-O rubi que roubaste em Sintra, confessa!

-Foi o marido da marquesa que me pediu que lhe simulasse um assalto, não o queria vender mas ia dá-lo como roubado para receber o seguro!

Ainda tais palavras não estavam concluídas quando pela esquerda, René, revólver em punho, punha fim à cena.

-Parecia um plano perfeito, mas você é um amador, Rastapapoulos.É pena que nunca se vá saber que estava vivo depois de estar morto.C’ést la vie!

Preparava-se para atirar quando Milú saltando sobre ele o abocanhou na perna, caindo com a dor, soltando um disparo para o ar desgovernado.Logo Tintin e o capitão o imobilizaram enquanto os Dupont seguravam o enraivecido Rastapapoulos.

Presos os ladrões, rubi no cofre, todos no dia seguinte admiravam a Castafiore, rouxinol estridente nos jardins de Seteais, cantando a Norma de Bellini. Todos? Todos não. O capitão Haddock já meio zonzo saboreava um bourbon num salão do Hotel, já a Pena eram dois e os Dupont quatro.

publicado por Fernando Morais Gomes às 22:39

23
Nov 10

Dublin,20 de Novembro.Chovia copiosamente quando Gerry e Liam cruzaram a O’Connell Bridge em Dublin acabada a reunião no Banco da Irlanda. Economistas seniores, acabavam de negociar com o Eurogrupo e o FMI o bailout que iria possibilitar uma folga financeira ao desgastado governo de Brian Cowen. Uma Guiness no Gogarty´s vinha mesmo a calhar, cerveja e chuva são casamento diário em Dublin.

Gerry iria agora tentar convencer os parceiros europeus a contribuir para o esforço de encaixar uns milhões de euros nos falidos bancos locais à custa dos tax payers, que não deixariam de se lamentar emborcando litros de Guiness ao som dos Chieftains ou Dubliners. Como economistas chefes no Banco da Irlanda iriam fazer o périplo pelas capitais a explicar o plano de resgate. Liam íria a Espanha e Portugal, Gerry rumaria a Bruxelas ao encontro de Jean Claude Junker.

Lisboa, 21 de Novembro.Dia chuvoso igualmente, Liam O’Leary chegava ao Ministério das Finanças no Terreiro do Paço, o chefe de gabinete, Pacheco Carneiro, aguardava-o, cumprimentos da praxe, assessores sorridentes.

-Pois é assim: o meu governo gostaria de contar com o contributo do governo português neste pacote de medidas.Dele depende a estabilidade do euro, you know…

Carneiro sorriu, já sabia ao que vinham, a Standard &Poors acabava de baixar o rating da Irlanda para A-, Portugal oscilava.

-Pois não nos negaremos, a solidariedade entre parceiros fez-se foi para isso mesmo-aduziu.E quanto seria o montante em causa?

-A dividir por vinte sete é pouca coisa, mil milhões de euros, peanuts!

Carneiro esboçou um riso amarelo, logo acompanhado pelos caninos assessores. Despedidas formais, correu ao encontro do Ministro das Finanças. Teixeira dos Santos focado num laptop varria a lista de despesas  do orçamento a ver onde poderia cortar mais.

-Entre, entre Carneiro.Olhe, achei aqui mais uma rubrica para cortar:os passes sociais .Afinal a maior parte anda só a a passear, se ficarem em casa poupa-se mais. Alem disso, menos passageiros são menos carros em circulação, menos dióxido de carbono, é bom para a pegada ecológica. Depois dizemos que é para investir nas renováveis!- soltou uma gargalhada -Vai um café?

-Obrigado senhor ministro.Já foi a reunião com os irlandeses, vai custar-nos mil milhões.

-Mil milhões? Oh diabo! E eram eles os tigres celtas! E que lhes disse?

-Que sim ,se demos à Grécia, também não podemos falhar agora.O senhor primeiro ministro já disse o mesmo aos jornais.

Teixeira dos Santos ligou para S.Bento:

-Sim…Sim…Ok, sim percebo.Porreiro pá!

Finda a chamada ligou para os secretários de Estado, reunião de emergência.

-Meus senhores, temos de encaixar mais mil milhões na receita. Sugestões?

Os secretários coçaram a cabeça, com os olhos varriam o orçamento aprovado apenas uma semana antes. O do Orçamento aventou:

-Senhor ministro, podemos aumentar o IMI em 0,5%,aqui vamos buscar 200 milhões, acabar com os apoios às propinas nas universidades, mais 100, aumentar os transportes ,mais 100, só aqui já vão 400…

-Vá, vá esforcem-se lá, que amanhã quero estar em Bruxelas já com um sim categórico. Se julgam que Portugal é uma Irlanda qualquer vão ver, aquelas esponjas cantarolantes.O que precisavam agora era dum caldeirão no fim do arco-íris - e soltou uma risada, milhões ou tostões são apenas zeros à direita.

-Também temos a hipótese de cancelar o TGV…-sugeriu a medo o secretário do Tesouro.

-Ah não, isso não! -insurgiu-se o ministro.Não podemos hipotecar o progresso do país, aí nunca!- calando-se logo o cinzento secretário, óculos desajeitados

Duas horas depois, ar grave e pesaroso, anunciava-se aos media o esforço patriótico para salvar a Irlanda: mais 0,5% em todos os impostos sobre as pessoas singulares,  nas empresas e bancos não, para não perder competitividade, as verbas da acção social escolar congeladas, comparticipações nas farmácias para doentes terminais suprimidas, afinal se são terminais também já não precisam, é um peso, que patrioticamente morram baratos.

23 de Novembro, 15h.Em Bruxelas, Teixeira dos Santos e o homólogo irlandês bebiam um pint de Guiness no intervalo do Ecofin.

-Santos, vocês portugueses são uns parceiros fabulosos.Se fosse na Irlanda o governo tinha caído logo.Como é que vocês conseguem?-questionou o colega agora em apuros.

-Sabe, os portugueses gostam muito de ser prestáveis.Por exemplo, ninguém queria gastar com a cimeira da NATO, nós caprichámos, não somos nenhuns pelintras. Já viu que os mercados pensam: se podem gastar 10 milhões na cimeira então estão firmes, o rating sobe logo, viu?- e piscou o olho para o irlandês –Além do mais os portugueses já estão habituados a dever há muitos anos, se fosse doutra forma até estranhavam.Temos de falar mais, vocês ainda vão aprender muito connosco!.E lá seguiram ,de braço dado.

Dia 30, 18h.O voo 757 da American Airlines chega a Lisboa, os cinco elementos da delegação para a Europa do Fundo Monetário Internacional desembarcam sorridentes, na pasta uma cópia do orçamento português cheia de cortes a vermelho.Vai uma Guiness?


publicado por Fernando Morais Gomes às 14:33

22
Nov 10
Tarde de Outono.Uma cigana romena insistindo no Borda d’Água fotocopiado, uma esmola, lacrimejante, alguns turistas outonais comendo tostas mistas na esplanada do Tirol. Ana vinha da loja chinesa, ameaçava chover e um providencial chapéu de três euros que duraria para aí dois dias era necessário. Á porta do supermercado, sentado no chão, um pedinte, cabelos fartos, sujo, roupas em farrapos, vestidas sobre outras já em tiras. Cerca de vinte anos, porte altivo, cabeça levantada, poucos escutavam as palavras que pronunciava baixinho, não raro barafustando com alguém imaginário. Um rafeiro impassível ao lado, um chapéu onde algumas moedas de cêntimo denunciavam um dia pouco proveitoso. Os mendigos em Sintra são familiares, ao serviço à mesma hora que os funcionários dos bancos ou o comércio, parte da fauna urbana, incómodo postal ilustrado da vida real.

Este era um mendigo novo, nunca havia sido visto por ali, sinal dos tempos, algum desempregado caído na rua, novos pobres a necessidade apertando, sem casa para morar uma rua para viver, um cigarro de enrolar sempre na boca, olhar alheio.

Ana mirou-o, movida pela novidade deixou os cinquenta cêntimos do troco do guarda-chuva no prato, assim não a importunaria se porventura continuasse por ali nos dias seguintes.Com um aceno de cabeça, silencioso, agradeceu, o cão dormitando ao lado.

Uns dias mais tarde, Ana levou o pequeno Tiago ao dentista, traquina brincava com o mp4, donde se soltava uma Lady Gaga estridente, parou na Urca a comprar laranjas. O pequeno Tiago, cinco anos rabinos, ouvindo um carro sonoro publicitando um circo na Portela correu atrás da música, palhaços e leões ao findar da rua.Na curva da Desidério Cambournac um carro seguia na peugada, embate inevitável.

O grito de Ana, uma travagem brusca, a mão providencial e súbita do mendigo evitava o pior,o cão ladrando na porta do supermercado.Ana em transe correu a abraçar o filho, os mirones do costume logo cercando o lugar. O mendigo, em silêncio, voltava para o posto, na pressa deixara os poucos cêntimos dentro do chapéu à mercê de mesmo esses serem furtados.

Ana correu para ele, agradeceu, modesto disse que não era nada.Pegou em cinquenta euros, surpreendentemente não aceitou.Voltou para casa, emoções fortes a assentar.

No dia seguinte, o cão dolente ao lado, lá estava ele. Cumprimentou-o, agora familiar, ensaiou uma conversa:

-Então o que é que lhe aconteceu? Desempregado?

O mendigo hesitou na resposta.

-Coisas da vida!...- e enrolou mais um cigarro,moda recente fugindo ao preço do tabaco.

-Se puder ajudar alguma coisa, diga, nunca será suficiente, acredite!-respondeu, sincera, agradecida.

Com a continuação lá foi deixando cair algo sobre ele: chamava-se Sebastião, tinha saído de casa seis anos antes,emprego em Londres.Uma hepatite B obrigara-o a voltar, perdera o contacto com a família a quem nunca avisara duma partida súbita e impensada,o dinheiro acabara. Tivera de recorrer à rua, o cão abandonado por única companhia.

Ana interessou-se, pediu-lhe informações. Pelo Google descobriu nomes, um pai autor de artigos sobre agricultura forneceu uma pista, logo um telefone, o trabalho de detective excitava-a. O pai, aposentado, estava no Alentejo, a mãe morrera.

Alguns dias mais tarde rolavam no Toyota de Ana pela estrada rumo a sul, Sebastião tenso, Tiago atrás brincando com o cão.

Na porta dum monte, azul e branco caiado, uma figura alta e alva esperava. Sebastião, olhos baixos, ensaiou um olhar, remorso contido.

O pai, engenheiro reformado, gente de posses, agora viúvo, do filho perdera o contacto. A visão de quem julgava perdido para sempre, e quase pródigo e envelhecido voltava, comoveram o idoso pai. Depois de hesitações, abraçaram-se, em silêncio, Ana feliz ao longe, o pequeno Tiago correndo atrás dum galo, o cão da trela velha ladrando contente.

Sebastião mora agora com o pai em Arronches, plantaram um novo olival, regadio farto, perseverança, apesar da crise, Teresa, professora local debaixo de olho.

Ana voltou para o emprego no banco, diário café no Tirol, laranjas doces na Urca. Novo mendigo, sem cão, ocupa agora a porta do supermercado, a romena do Borda d’Água ainda lá,pessoas absortas acima e abaixo. Detrás da vida muitas vidas há.


publicado por Fernando Morais Gomes às 18:20

publicado por Fernando Morais Gomes às 18:12

21
Nov 10

Faria Machado correu ofegante para o gabinete no Quai Louis XVIII:

-Sr cônsul,  a fila está cada vez maior! Que fazemos?- o assustado funcionário do consulado de Bordéus passara quatro anos de calma, apesar da guerra, mas nunca vira nada parecido.

Aristides Sousa Mendes assomou à janela, mais de vinte pessoas formavam fila em busca de um visto para Portugal. Alguns com vestes de rabino, peias pelos ombros, yeddish, crianças com mães de ar apreensivo e assustado.

Era o dia 21 de Junho de 1940. Oito dias antes o exército alemão entrara em Paris e o Reich privara de nacionalidade pessoas de origem hebraica, ciganos e nacionais de estados ocupados, subitamente apátridas e sem papéis. Notícias vndas da Alemanha faziam temer o pior, Portugal, país neutral, era um inesperado porto de abrigo.Lisboa primeiro, depois se veria.

Sousa Mendes tinha instruções rigorosas, a circular 14 do Ministério dos Negócios Estrangeiros: nada de vistos sem consulta prévia a indivíduos de nacionalidade em litígio, apátridas, portadores de passaportes Nansen e russos, bem como a judeus expulsos dos países de origem.Porém, Portugal começara a ser visto como salvação desde que circulara que o cônsul concedera (à revelia do governo de Lisboa) um visto a Arnold Winitzer, judeu austríaco prestes a ser internado num campo de detenção francês. Mais dois ou três casos, repreendidos por Lisboa se sucederam, Sousa Mendes pisava o risco mas ganhava fama.

Taciturno, passeava no gabinete, pensando naquela gente em transe, entre um destino infausto e à distância de um mero carimbo, apanhados numa guerra que não percebiam, famílias inteiras respeitáveis e honradas, subitamente párias e perseguidos, era absurdo e desumano.No seu intimo, estava determinado:

-Faria Machado, chame o Vieira Braga e mande entrar por ordem de chegada. Venha para aqui e traga o selo branco! -resoluto, decidiu, não se é Homem sem humanidade.

Um aliviado sorriso atravessou a fila desesperada mal as portas se abriram, todos querendo passar à frente. Sousa Mendes fazia a triagem, assinava, Faria Machado, obediente mas preocupado ia apondo o selo branco. Havia que garantir um livre-trânsito em Espanha, geralmente fácil para passageiros em mero trânsito, o consulado de Bordéus era a redentora fronteira entre a Vida e a Morte.

Norah Kempinski, violinista da Orquestra de Viena e a mãe arrastando duas malas cartonadas com bom aspecto, sinal de uma vida até ali estável e de conforto, surgiram-lhe nesse dia, com ar pungente e quase suplicante. Olharam-se, silenciosos e cúmplices. Sousa Mendes fitou-as, cortês, leu e rubricou, a mão hirta mas salvadora, Norah em silêncio, no momento de assinar, colou a sua mão na dele, redentora e milagrosa. Pegou na mala e com a mãe desapareceu na esquina do Quai Louis XVIII, direita à gare de Bordéus, dezenas de portadores de passaportes Nansen, novos apátridas, aguardavam aquele Sud Express da Vida, cada minuto a mais nesse país descido aos infernos era uma eternidade e um risco.

Nos dias seguintes a fila agigantou-se de deserdados, Portugal, país que vagamente conheciam era agora p Eldorado de paz onde todos queriam chegar. Lisboa soube pelos ingleses do reboliço em Bordéus,o embaixador em Madrid,mandado por Salazar, foi mesmo a Hendaia travar o ímpeto temerário de Aristides, o Salvador. Quatro mil assinaturas haviam já livrado do inferno outros tantos inocentes, só culpados de estar vivos no sítio e hora erradas, ao som milagroso do matraquear dum selo branco marchavam em direcção ao Sul e ao Sol.

Lisboa fechou os olhos à entrada dos refugiados, a imagem de país acolhedor nem desagradava de todo, contudo a autoridade do Estado não podia perdoar, predador, o poder da disciplina caiu sobre o amotinado de Bordéus. Em Outubro, depois de suspenso, um ano de inactividade com metade do vencimento.Depois, aposentado, sem meios de subsistência, também ele refugiado agora  sem visto para a dignidade e  um selo branco para a miséria.

Norah Kempinski e a mãe chegaram a Lisboa em Julho.Joaquim Morais, comerciante na Baixa, coração solidário, conheceu-as numa sala  do Governo Civil, plena de refugiados, assustadas numa sala de espera. Uma filha da idade de Norah levou-o a fixar-se naquele ser frágil e perdido, inteirado da situação, ofereceu-se para as alojar, uma vida feita de dificuldades  dera-lhe a noção de quanto as pessoas contam nos momentos.

Por cá ficaram seis meses.Numa casa em Galamares, perto de Sintra, passaram com os novos e inesperados amigos em serena paz e longe da guerra aquele Verão de 1940. Não fosse o racionamento do açúcar nada deixava transparecer um mundo em conflito, os filmes de Leitão de Barros e a épica Exposição do Mundo Português exaltavam um país brando e tranquilo que o dr. Salazar sabiamente poupara a uma guerra distante.Foram meses para cicatrizar, a mulher e filha de Joaquim uma nova e inesperada família. Mais tarde, um vapor levou-as para a almejada América, uma agência judaica garantia assistência.Passada a Estátua da Liberdade, finalmente um futuro, do  lado de lá do Atlântico.

A guerra acabou e os anos passaram. Sousa Mendes, caído em desgraça, morreu na miséria, em 1953.Norah fez uma carreira de sucesso na Filarmónica de Boston, todos os quatro anos vinha visitar a família portuguesa para  uns dias à sombra da ameixoeira em Galamares. Fugira à Shoah e a um destino tenebroso, o  violino vibrante e as cordas em fúria choravam lancinantes pela sordidez dos injustos. Mas exaltava também os bons e gentios,  agora rostos distantes, sorridentes,  já mortos,por eles ainda mais  gritava virtuoso o inquieto violino em  muitas salas e concertos, também ela encontrara o  american dream.

Em 1975, avó e já retirada, pela primeira vez visitou Israel com os netos, essa pátria distante do êxodo e da  Terra Prometida, ainda chegara  pensar lá viver depois da guerra, desafiada por amigos do Ìrgun. Antes, passou  duas semanas em  Galamares com Amália, a filha de Joaquim Morais e os filhos desta. O “pai” Joaquim falecera já, mas um anel de estimação ficara em legado para aquela assustada Norah que um dia o destino pusera no Governo Civil de Lisboa e a quem se afeiçoou como se do seu sangue fosse. Foi a última vez em Portugal.

Em Jerusalém, entre um turbilhão de emoções, no Yad Vashem, altar da memória, buscou o  Jardim dos Gentios. Ruas de alfarrobeiras alinhadas, muitas flores frescas e sempre renovadas, em cada árvore uma placa identificando nomes,  homens bons  que desinteressadamente e sem preconceito haviam salvo vidas do holocausto, sem eles certamente perdidas num tempo de intolerância.Com os olhos correu os nomes: Wahlenberg, Schindler, muitos mais.Frente a uma alfarrobeira açoitada pelo vento, o nome desejado. Deteve-se, lágrimas na face, arrepio na espinha. Era ali.Sorrindo e chorando ao mesmo tempo depositou uma rosa branca,  lírios ainda viçosos denunciavam outras romagens recentes. Aristides Sousa Mendes, o homem do sorriso que com uma simples assinatura trinta e cinco anos antes a resgatara dum destino amargo, para a eternidade ali estava recordado.

A humanidade não é um estado a que se ascenda. É uma dignidade que se conquista.


publicado por Fernando Morais Gomes às 14:05

20
Nov 10

O cavalo internava-se na mata, lento restolhar, a terra húmida, mãe, fértil, penhascos sentinelas daquele Éden verdejante. O cheiro inebriante da floresta entorpecia os sentidos, lento se deixava absorver qual bálsamo da alma e revigorante para o corpo.

Carlos Carvalho, mais de trinta anos regente florestal da serra de Sintra observava as suas plantas e árvores, sentinela  do génesis, jardineiro da Vida, troteando pela vasta propriedade, um cisne encantado deslizando pela água cristalina do lago, qual príncipe esperando a hora de desfazer o encanto. Os anos passaram, as pequenas araucárias eram agora vetustas e portentosas, muitas chuvas e muitos invernos, e sempre miraculosamente despertas do letárgico  adormecimento em cada primavera redentora. No Éden de Carvalho, “o Carvalho da Pena” como os agradecidos patrícios o tratavam, a flora atingia o clímax fecundo, criptomérias do Japão, fetos da Nova Zelândia, cedros do Líbano, araucárias do Brasil, tuias da América do Norte , a mais valiosa herança do velho rei D.Fernando.

Carvalho recebeu o legado e tratou-o como seu, pai extremoso, enfermeiro atempado, vigilante diligente do paraíso, antes jovem jardim de rosas e camélias, agora garbosa floresta de vetustos carvalhos, como ele, o Carvalho, incontornável, rosto de tímida criança atrás do vasto bigode, a trote, lento e introspectivo.

Sentia a ampulheta do tempo a chegar ao fim e cada diário passeio era agora uma despedida, um olhar individual, sabia todas as idades daquelas protegidas, que lhe retribuíam ,agradecidas, cores para todas as estações, milagre anual do renascimento em triunfo de verde e êxtase de clorofila. Cada abate que fortuito se impusesse era uma punhalada assassina, quase a pedir perdão, outra árvore ou planta nova logo despontaria no seu lugar.

Caminhava e lembrava a velha condessa, como à beira da morte lhe jurara cuidar do Éden, logo estaria a juntar-se-lhe, o eucaliptus obliqua, que qual lacre em poema de amor ela e D. Fernando plantaram no dia do casamento crescia, garboso, porte real, diariamente o olhava como se fora a primeira vez.

Naquela tarde de Novembro viria visitá-lo o velho amigo e neto da condessa Mário Azevedo Gomes, como ele cúmplice da serra, hortelão de milagres, sempre zelando para que o verde manto protector não sucumbisse às labaredas do inferno que por vezes os verões traziam a Sintra, negras cinzas com que mão humana muitas vezes ameaçava o Jardim. Azevedo Gomes, estudioso, aliara os vastos conhecimentos silvícolas à experiência aturada de Carlos Carvalho, descrevendo a serra de Sintra em detalhe. Colaborador da Seara Nova, politicamente opositor do regime da época, fizera a monografia do parque, conhecimento lido e conhecimento sabido em frutífera união.

Encontraram-se na Fonte dos Passarinhos, fim duma manhã de Outono, sol tímido e melancólicas sombras. Era um momento muitas vezes repetido, a renovada romagem aos canteiros e condutas de água, os conselhos sobre cortes e podas, sugestões para repor espécies endémicas ou repelir as infestantes. O dinheiro não abundava e Carvalho com poucos mas generosos jardineiros tomava como seu um património que entidades responsáveis pouco acarinhavam.

-Sabe, senhor engenheiro-lamentava o Carvalho da Pena-sinto-me a ficar sem forças.Não sei o que vai ser isto depois.O Ministério…

Antes que concluísse o avisado Azevedo Gomes atalhou:

-Ora, ora, Carvalho, hão-de as araucárias crescer mais dois metros e ainda você há-de estar aí para as curvas.Quando a semente é boa a árvore é rija!

O Carvalho da Pena fixou os olhos mortiços no eucaliptus obliqua e profetizou, misterioso:

-Quando o meu fim chegar, gostava que fosse assim, de pé! -e abriu os braços como querendo envolver a vetusta árvore e com ela toda uma vida de memórias, anos a trote, à chuva e ao sol, nas encostas plenas de fetos ou nas casas de guardas velando pelo “seu” parque.

Azevedo Gomes pôs-lhe a mão no ombro e abraçados seguiram pelo caminho de pedra. Uma pequena araucária tombada, trinta centímetros, ameaçava morrer, as mãos mágicas do velho jardineiro logo atento acondicionaram a terra, um regador oportuno renovou aquela promessa de vida em  luxuriante habitat.

-Carvalho, creia-me, se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos.Este não é o Parque da Pena.É o Parque do Carvalho da Pena!

Carvalho sorriu, pensativo, despediram-se. Não mais tornariam a ver-se, Carlos de Oliveira Carvalho, administrador florestal do Parque da Pena desde 1911, morreu algum tempo depois, em 1940.

A araucária conta para cima de trinta metros, pujante.

 

publicado por Fernando Morais Gomes às 18:49

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