por F. Morais Gomes

02
Nov 10

Envolvo no grosso jaquetão, chapéu enterrado até ás orelhas desafiando o invernoso Dezembro, D.Fernando saía das Necessidades, ar cansado, o rosto deformado pela doença que o atrofiava. Elise não quisera ir mas nem o frio nem as dores o demoveram de ir a S. Carlos  ver “Os Huguenotes”, de Meyerbeer. Aquela maldita moléstia distorcia-lhe a visão, o belo e garboso pretendente que Lisboa recebera em 1836 noivo da saudosa D.Maria sofria agora aos sessenta e nove anos a natural erosão da idade agravada pela doença. Também em S.Carlos estivera com Maria, em S.Carlos se apaixonara de Elise, frágil figura enfiada nas roupas de pagem no “Baile de Máscaras”. Enviara   então um bilhete ao Fraschini para que lha apresentasse, aí tudo começara.

-Para S.Carlos, Majestade?- perguntou o cocheiro,reverente.

-Não, ainda não…-respondeu, hesitante-Vamos primeiro pelo Rossio, preciso apanhar ar, vai andando até eu dizer, ainda falta uma hora...…

D.Fernando de Saxe-Coburgo estava nessa noite particularmente melancólico. Lembrava o filho Pedro, sua alma gémea, precocemente colhido pela morte, a corte que nunca aceitara a sua bela Elise, mesmo fazendo-a condessa d’Edla, com camarote separado em S.Carlos e odiada pela nora, a arrogante Maria Pia chingando Luís com as suas fúrias latinas.Havia regressado da Alemanha recentemente, com Elise visitara a filha Antónia  em Sigmaringen e na véspera voltara a falar com Serpa Pimentel, a retocar o seu testamento. Já o havia feito várias vezes mas nova alteração lhe surgiu. Tudo como se um lento adeus estivesse em curso na sua vida.

Lisboa esvaziava-se de gente naquela noite fria de Inverno, a récita não iria esgotar, as tradicionais e reprovadoras tosses de S.Carlos seriam menos por certo. O elenco era razoável, o tenor que fazia de Raoul um jovem promissor, o libretto era em torno da noite de S.Bartolomeu e os amores de Valentine e Raoul. Como Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Daphne e Chloé.E Fernando e Elise, pensou.

Elise. Antes de sair das Necessidades tinham tomado chá na biblioteca. Tinha passado o dia sempre cansado, ofegante, olhava e via sombras desfocadas, mirando-a junto à bergére e apenas lhe recortando tenuemente o vulto. Uma mão quente e macia devolvia-lhe a familiaridade feminina da companheira de mais de vinte anos, flirtando-a primeiro, dando-lhe o seu nome depois, contra tudo e contra todos.

-Fernando, não devia sair nesse estado! - ,advertiu, maternal. As noites estão frias e…

-Mas a música é quente, Elise. Só a música me aquece por estes dias….

E fechando os olhos relembrava as noites de S.Carlos, os saraus na Pena, Paris, o San Carlo de Nápoles, os grandes palcos da Europa do  seu tempo. Arfando, no  cadeirão , simulou um gesto, qual  barítono  preparando-se para cantar uma ária sem chegar a iniciá-la, as mãos dançando no vácuo, olhar frágil e enrugado.

-Elise, diga-me, meu anjo, têm vindo flores da estufa da Pena?

-Todos os dias. Apesar de ser Inverno , todos os dias vem um estafeta com plantas da feteira para os arranjos aqui do palácio.

Sorriu. De todas as obras a que deitara mão nenhuma como aquela lhe dera tanto prazer. O Eschwege e o Cifka eram homens de gosto, mas ele idealizara aquele paraíso sala a sala, pintura a pintura aquele  ninho tão similar à Gotha natal, ali  foi feliz com o seu Graal mais valioso: Elise. Agora pouco lá ia, a viagem cansava-o, os invernos eram húmidos e  Kessler desaconselhava ,um resfriado podia agravar a saúde já frágil.

-Deve estar lindo, o jardim….-pensou.E lembrou o eucalipto que no dia do seu casamento haviam plantado na Pena, marco de amor e  símbolo da aliança de  duas almas que tardiamente se encontravam. Ele já viúvo, estrangeiro num país mergulhado em querelas, dedicado aos seus quadros e suas partituras, ela jovem promessa no mundo lírico, que um dia predestinadamente o “Lusitânia” fizera aportar a Lisboa.

Tossindo, pediu um chá. Elise insistiu que se fosse deitar. Sentia-se  nauseado, dores no rosto, como se uma tenaz lhe apertasse a cabeça. Que não, já há dois meses pensara ir ver esta récita. Levantando-se saiu na berlinda, cearia depois com ela.

S.Carlos deslumbrava com os seus dourados, serafins, mísulas e  veludos. D.Fernando ocupou o seu camarote particular, longe do da família real, absorto ,ignorou os cortesãos que reverentes o saudavam da plateia, e mergulhou no libretto. A representação foi um sucesso, sete minutos de palmas e chamadas ao palco, noite cheia afinal de contas.

Ao sair do camarote frágilizado pela falta de visão, tropeçou nos degraus e caiu desamparado, batendo violentamente com a cara na parede fronteira. Em coma o levaram já para as Necessidades, onde se finou passava das duas da manhã.

Ainda no teatro, antes que ausente ficasse, viu uma valquíria deitando-lhe a mão, outra tocando harpa, e sentiu-se levitar, um violoncelo etéreo chorava solitário. Agarrou a mão da valquíria, e ainda murmurou, sorrindo:

-Elise…..


publicado por Fernando Morais Gomes às 08:39

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