por F. Morais Gomes

03
Nov 10

Lisboa, 14 de Março de 1821,manhã primaveril. Na Quinta de S.João dos Bem Casados a condessa da Anadia D.Maria Joana de Sá Menezes apadrinhava a exibição que Eugene Robertson, físico inglês de visita a Portugal com seu filho Stephen, promoviam a uma geringonça movida a fogo e que se elevava nos ares, sortilégio da ciência, diziam uns, mais iluminados, desafio a Deus, temiam outros.

Robertson já não era novato nestas andanças, fizera o mesmo em Viena e Londres, e entre nós , tendo caído nas boas graças da condessa, logo se prontificou a exibir o brinquedo. A quinta, na Pontinha, era larga e arejada, as condições de vento favoreciam a função, desde que a Passarola de Gusmão levitara uns míseros metros não se voltara a ver nada igual. Músicos da Guarda Real da Polícia, que se achavam no recinto tocavam sonatas exaltando o momento.

A Condessa fizera diversos convites, Lisboa provinciana, avessa às Luzes, contemporizava com o pragmatismo britânico, cadeiras haviam sido colocadas nos jardins como se um número de circo fosse ocorrer. Tudo começou pelo enchimento da máquina logo pela manhã. Depois, Robertson, galante, foi ter com a sua anfitriã e entregou-lhe um pequeno globo, pedindo-lhe que o soltasse. Divertida, D.Maria Joana pegou no pequeno artefacto, que ostentava as armas reais, e largando-o, logo este se elevou no sentido noroeste ensaiando em miniatura a trajectória que o verdadeiro balão tomaria.

Este, vinte e um pés de diâmetro, já  estava cheio e pronto a largar. Porém, para entreter os espectadores até à partida, lançou Robertson alguns pequenos aeróstatos, tendo o último o feitio de um  peixe.

Stephen acercou-se do pai e pediu-lhe a mercê de conduzir sozinho o aparelho, prova de maioridade , cumplicidade com o anafado gigante de vime e pano.Eugene assentou e o filho precipitando-se para o balão aerostático  elevou-se sobre aqueles mirones, lançando-lhes por cima  pequenos papeis com versos escritos. Baixou depois disto, e marcando os grãos do termómetro e do barómetro que levava e as horas do seu relógio voltou a subir e desdobrou uma bandeira dando vivas ao Senhor D.João VI, que  lá no refúgio dos trópicos  teria o espírito mais concentrado por certo em algum galo de cabidela ou caldo com toucinho e carne. Logo choveram mais papelinhos com versos, cada um pegando o seu, estrelas caindo daquele cesto balofo e desengonçado, ciência e lazer de braço dado.

Finalmente partiram os dois, deixando Lisboa-Lilliput e os convidados ao longe formigando inofensivos nos jardins da condessa. Lisboa era mais deslumbrante de cima, Tejo imenso e Sintra em guarda. À passagem pelo lugar de Benfica esboçaram uma pequena aproximação ao solo logo abordados por camponeses que miravam incrédulos aquela nau voadora, talvez os franceses de novo, e se benziam e fugiam a esconder nos casebres, tementes daquele vulto inchado e expelindo fogo.

O jovem Robertson estava ufano, pilotando aquela nave de que era Deus, buscando anjos nas nuvens vizinhas, rodeado de atordoadas gaivotas e rolas estranhando aquela ave rara nunca vista dali até à lezíria do Tejo. O mar estava já à vista, vasto e plácido, Eugene abriu o registo do balão para subir o gás e ensaiou a descida, com vento adverso logrando tocar terra cinco horas depois da largada, para lá de Sintra, num campo lavrado perto de Galamares.

Aí o vento cavava o vale, o rio das Maçãs corria qual regato amansado, camponeses lavravam a terra, mas a besta balofa recusava-se a tocar terra firme.

Alguns frades do Convento dos Capuchos voltavam ao eremitério a pé, descalços, baraço de corda prendendo as míseras vestes. Frei Carlos da Conceição, primeiro surpreso depois vislumbrando os dois janotas com ar estrangeiro agarrou o periclitante cesto de vime ajudado por três mancebos descalços que perto juntavam pasto para as vacas.Ao fim de alguns minutos a fera amansou e o balão desmaiou deixando sair aqueles arcanjos do céu com sotaque do paraíso. Explicada a temerária experiência, logo foram levados até Sintra como generais romanos laureados, não em quadrigas, mas em junta de bois.

Nos dias seguintes, a Gazeta de Lisboa não falava de outra coisa, da nova passarola, vencedora dos ares, e daqueles destemidos ícaros de casaca, vendendo-se ode e retrato do valente aeronauta inglês a cento e sessenta réis (cento e vinte sem retrato)e prometendo-se nova proeza para o mês Dezembro na quinta do visconde da Baía.

Meses depois entrava D.João a barra do Tejo. Quinze anos antes, assustado regente partira, agora rei constitucional voltava.

Sinédrio hostil, Carlota indefectível, a cidade exaurida, triste sina. Por entre as nuvens negras na colina do castelo de S.Jorge, um colorido balão transportando os intrépidos Robertson sulcava brioso os céus de Lisboa.

publicado por Fernando Morais Gomes às 00:13

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