por F. Morais Gomes

04
Nov 10

Julho de 1966.Mais um Verão na casa de Galamares, três horas desde Lisboa com a mobília atrás, o carocha preto rolava pela estrada de paralelepípedo rente aos pomares rasgados pelo eléctrico aberto, de onde por vezes furtivamente miúdos apanhavam nêsperas pendurados no estribo. A escola acabara, as férias prometiam novas aventuras, enguias no rio, teatros na garagem, a velha Amália, caseira e amiga da família já havia aberto as janelas para tirar a humidade

O Verão chegava previsível para as famílias da capital a banhos e  com toldo alugado ao mês na praia.No café  do Alcino, voltavam  as habituais tertúlias, enquanto os mais novos deambulavam entre os jogos de matraquilhos ao “perde paga” e as músicas da moda seleccionadas na jukebox que trazia a modernidade possível a Galamares para gáudio dos mais novos.

Ao Alcino, magro, óculos grossos, jeito para o negócio, nada lhe escapava. Além da pensão à época que explorava nas restantes divisões do café, vendia bebidas no bar do cineteatro em dia de cinema ambulante, e nesse ano de Mundial de futebol apostara na compra duma televisão, das primeiras em Galamares, onde a troco de módicos dez tostões se podia ver ao vivo a magia dos 5-3 do Pantera Negra contra a Coreia e toda a epopeia daqueles magriços que assim infligiam novas Aljubarrotas, rematando, mágicos, com o pé que lhes vinha mais à mão. A ligação à Eurovisão nem sempre era fácil, mas como milagre lá surgia, palmas de alívio.

Galamares era um pequeno mundo.O salão, cinema ambulante de fim de semana, cinco escudos dois filmes, Cinema Paraíso ritualizado na sala escura com a épica abertura dos filmes Castello Lopes, convidando ao silêncio sepulcral que antecedia a magia do Technicolor.Lá se viu o Spartacus, o Ben-Hur, os 12 Indomáveis Patifes, o Cantiflas ou o Fernandel; As nozes douradas da Leopoldina, triunfo do açúcar e receita secreta as bolachas de manteiga com buraco ao meio, finas e  únicas.Tudo corria sem pressas,apanhando pirilampos à noite, apanhando pequeno pássaros, sazonais vítimas de predadores de calções alternando entre  a fisga certeira  ou o visco traiçoeiro.E eram  os rajás de pau, os palinos, a colecção de cromos. Um microcosmos pululante, de senhores doutores e seus meninos, homens do campo, veraneantes, transformava um lugarejo à beira da estrada numa miríade de pensões e quartos alugados, a apanhar ares de Galamares, os médicos aconselhavam, uma fauna de artistas e escritores invadindo a mansidão do local, José Gomes Ferreira escrevinhando no Alcino, Rui Grácio, Mário Dionísio e Barahona Fernandes, em casas proprias ou nas seis pensões improvisadas, águas quentes e frias a desfrutar dos “ares” transformados  em receita médica.

Porém, não havia Verão sem o Xaimix. Xaimix,o Homem Cérebro Electrónico, ilusionista, trapezista, artista andarilho, com os seus truques com cartas e moedas que brotavam das orelhas perante o  espanto de miúdos em tempo de tv a preto e branco e dum canal só.
Todos os anos, a esplanada do Alcino se animava de avós e netos, doutores e caseiros, para ver o grande Xaimix, Houdini daquele pequeno mundo de sonhos e ilusões, boquiabertos perante o desfiar dos truques, acompanhados pela virtuosa harmónica bocal do homem dos sete instrumentos, todos tentando adivinhar onde estava a marosca, e pedindo sempre novo número.

Várias luas e sóis passaram, a sépia virou cor, as televisões   rectangulares e os toldos ao mês mudaram para Sul. Um dia chegou um tempo novo, madrugada dita redentora, e as árvores viram novos personagens, novos sons, cartazes nas paredes, caseiros que agora também se sentavam na mesa dos “senhores de Lisboa”, renovando a  magia todos os anos.De novo a brisa leve vinda do mar oceano sopra sobre a velha casa cheia de mundos idos e outros ainda por vir, a esplanada do Alcino resistindo, velha senhora de muitos mortos e muitos vivos.

O Xaimix envelheceu sem abandonar a ribalta e continuou, agora com os filhos dos miúdos de outrora, os pais ainda intrigados com  os truques, se a carta estava marcada ou o partenaire comprado. Era um personagem de Fellini, Merlin daquele pequeno mundo, fugindo da cor cinza no vasto palco que para ele a vida foi.

Morreu há poucos anos. Não mais vai haver telepatia, lenços atados ou harmónica de boca. Deixou como desejo ser enterrado com o seu fato de mágico, artista na vida como na morte, preparando o espectáculo para os serafins na nuvem alta onde a harmónica continua a soar. E o mundo continuou, a serra sentinela, o eléctrico dolente estrada abaixo, o som da harmónica de boca sumindo ao longe.


publicado por Fernando Morais Gomes às 20:41

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