por F. Morais Gomes

12
Nov 10

Apesar dos entrados de Setembro, a manhã nascera radiosa na Vila Nova da Praia das Maçãs. O Hotel Royal, fronteiro ao areal, acusava alguma agitação, ali estava havia alguns dias em repouso o dr.Afonso Costa, chefe do Partido Democrático e uma das figuras do regime que três anos antes instaurara a República. Desde Fevereiro de 1912, num processo de secessão entre os republicanos, tornara-se líder incontestado. Consolidado o partido, presidia pela primeira vez ao ministério desde Janeiro daquele ano de 1913 , formando o primeiro governo partidário da República, integrado por democráticos e pelos independentes de António Maria da Silva.

Costa, o mata frades, como era conhecido pelos seus inimigos, não era uma figura consensual, o seu vincado anticlericalismo gerara ódios entre os religiosos mais conservadores, era o chefe visível da facção mais radical.Por aqueles dias, fazia uma pausa de vilegiatura. Escolhera o Royal pela posição privilegiada sobre o mar, o cheiro a iodo que entrava pelas janelas pela manhã, o jornal diário na esplanada do Grego, poucos dias, pois a política não dava tréguas, avisara antes de se retirar ao velho presidente Arriaga.

Na manhã desse dia 23 levantara-se cedo, um pequeno-almoço frugal, como era seu hábito, a leitura dos jornais refastelado na cadeira de verga da varanda do Royal. Os hóspedes surpreendidos pela presença inesperada do ilustre veraneante cumprimentavam respeitosamente, muitos porém entre dentes suspirando pelo saudoso rei D.Carlos e pela ordem velha.

No exterior a defesa civil da Praia das Maçãs afecta ao partido democrático montara guarda. Costa tanto era visado pelo clero, como por Paiva Couceiro, até a Carbonária antes aliada agora que o PRP se dividira em partidos o parecia ter como alvo. Sebastião Lima e mais quatro elementos explicitamente armados e colocados nas entradas  do hotel velavam, Sebastião curando junto do presidente do Ministério sobre a sua segurança.Na taberna do Manuel Prego  comentava-se   aquela agitação.

-Só vem atrapalhar o negócio!-comentava o Prego, figura hirsuta e rude, pouco dado a política, entre uma malga de tinto de chão de areia do  ano anterior.O Padre Matias del Campo, num canto, habituado aos políticos da sua Espanha natal e seus humores, assentava com a cabeça, mais inexpressivo e cauteloso, porém.

Pelas dez horas, o sossego da leitura do jornal foi interrompido.

-Sr Doutor, avisam de Sintra que avançam para cá anarquistas armados.É melhor que recolha ao seu quarto, não há tempo de retirar para Lisboa!- Sebastião vinha alterado, notícias de Sintra de elementos do partido avisavam que uma caça ao homem estava em curso, não havia tempo de chamar a Guarda Republicana.

Afonso Costa, habituado a estas andanças, levantou os olhos do jornal e sorriu, já familiarizado:

-Nem uns dias se pode tirar já, meu caro? Vêm à pesca mas vão encontrar mar bravo…-ironizou.Não se preocupem, ando sempre prevenido,não me esqueci ainda do dr.Miguel Bombarda…-e com a mão acariciou o vulto do bolso da casaca onde a pequena pistola repousava.

Em Sintra, grupos de defesa avisados passaram a exercer apertada vigilância, mandando parar os carros e carroças que para a praia se dirigiam e revistando e identificando todas as pessoas. As notícias eram de que os alterados revoltosos em separado tinham entrado em várias estações do comboio com destino a Sintra. Todo o dia, perante a surpresa dos pacatos lavradores aquela agitação de carros entre Sintra e Vila Nova da Praia parecia denunciar um clima de nervosismo, ninguém chegava ao pé do Hotel Royal, sitiado, as informações eram contraditórias.

Miguel Costa Gaião, Jaime Augusto e Alberto Correia, jovens operários, idealistas de sangue quente, três dos que em separado haviam vindo de Lisboa, lograram mesmo aproximar-se do local de Monte Santos, onde havia um controle de estrada. Surpreendidos com um grupo civil armado barrando a estrada de paralelepípedo, acharam por bem  tentar volver ao comboio nas bicicletas que haviam providenciado com um cúmplice.

-Diabo, isto está tudo minado!Jaime Augusto, alfaiate do depósito de fardamentos, o mais velho não contara com a eficiência das informações dos partidários do mata frades, melhor seria deixar para outra ocasião. Voltaram para Sintra, tentando discretamente e sem denunciar que estavam mancomunados apanhar o último comboio para Lisboa. Mas um campónio que alugava burros a visitantes junto à estação, estranhou aqueles forasteiros, roupas humildes, não tinham ar de quem viesse a veraneio ou visitar o Paço. Avisada a Guarda, foram perseguidos ainda na gare de Sintra.

Miguel Costa Gaião foi quem primeiro se apercebeu que dois guardas se dirigiam a si, e avisou os outros

-Corram, vêm ter connosco! -e pôs-se em fuga, na plataforma da estação de Sintra, os outros atónitos logo o seguindo. Puxou da arma, escondida na saca a tiracolo, a bala ainda assobiou junto ao ombro de um guarda. Porém, outros vieram do lado da Estefânea, e o imobilizaram, o Jaime Augusto nem tentou ir mais longe, menos ágil. O Alberto também se entregou de imediato.Presentes no posto policial de Sintra, foram apreendidas várias pistolas automáticas e punhais, e conduzidos à cadeia comarcã, o Royal ficara longe demais.

-Não foi desta, será doutra! -vociferou o Gaião, escoltado por dois guardas a caminho do calabouço.

No dia seguinte, pela manhã, Afonso Costa, com um sorriso irónico, entrou bem disposto na tasca do Prego, onde nada transpirara para lá do alvoroço dos acólitos rondando.

-Bom dia cavalheiros! Belo dia para o mexilhão não acham? -ajustando os óculos, saudou, ar matreiro, levantando a bengala levemente, e foi ao seu passeio matinal, ante o ar boçal e sempre desconfiado do taberneiro.

O primeiro ministério de Afonso Costa ainda durou até  9 de Fevereiro de 1914.Como líder dos democráticos, venceu as eleições de 16 de Novembro de 1913, transformando o Partido Democrático no principal partido do poder da Primeira República e na força dominante de todo o processo político até 1926.Sempre na ponta das baionetas.

O Hotel Royal, esse, ainda subsistiu até 1921, pacato e sobranceiro ao mar, porém, longe das guerrilhas dos terra tenentes de Lisboa.Um incêndio pôs fim a menos de quinze anos de actividade.


publicado por Fernando Morais Gomes às 07:21

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