Pensava Henrique Sousa Prego repousar uma temporada em Sintra, terra de seu pai e seu tio, depois de cinco anos como intendente da Marinha em S. Salvador da Baía quando nova e especial missão lhe foi destinada: a Família Real partia para o Brasil em 29 de Novembro de 1807, Sousa Prego, oficial experiente, ficava encarregue da retaguarda da esquadra ao comando da Medusa.
Na frente, o navio almirante Príncipe Real, com a rainha D.Maria o assustado príncipe regente e os infantes Pedro e Miguel, D.Carlota seguia no Afonso de Albuquerque com as quatro filhas.Com a pressa da partida não se haviam feito reparações na embarcação, pouco fiável para uma viagem de quatro mil milhas, a ideia de voltar para aquele ermo de macacos e palmeiras frustrara-lhe as delícias da sombra dos Pisões. Passada a barra, juntou-se-lhes a esquadra britânica de escolta, quatro vasos, com o HMS Hibernia comandado por sir Sidney Smith à cabeça. Lisboa atónita ficava órfã e desamparada entregue a facínoras franceses que logo a pilharam.
No barco de Sousa Prego seguiam vários dos mais de dez mil dignitários retirantes, entre eles o ministro dos Negócios Estrangeiros António de Araújo, um dos que mais insistir na retirada para o Brasil. Pedante, pusilânime, achava que devia seguir no navio-almirante e desde cedo se mostrou ressabiado com Sousa Prego, toda a viagem levantando recriminações e questionando a competência deste , afinal de contas proveniente duma família da pequena aristocracia de Sintra. Pateticamente tomava tisanas no convés, servido por um criado mulato sempre intercalando as conversas com expressões em francês, país onde fora embaixador.
Nos primeiros dias ventos fortes pareciam querer trazer a frota de volta a Portugal, as velas tiveram de ser amarradas, o convés ia pejado de enjoados marialvas e senhoras só com a roupa que traziam no corpo, uma corja de lambe-botas, pensava, a corte de Lisboa era coisa a que como homem do mar era avesso e agora ali estavam todos, mais de dez mil, trinta e seis velas de ratos assustados a caminho do desconhecido.
Só depois o tempo amainou a caminho da Madeira onde nevoeiros espessos e borrifos de água se tornaram opressivos, o marquês dos Arcos vomitando na proa, a caixa de rapé derrapando borda fora. As apreensões de Sousa Prego faziam sentido: cordames envelhecidos, viagem mal planeada, parecia uma frágil jangada de cortesãos com cabeleiras e vestes douradas e matronas de saia de roda,estas alvo lascivo dos marujos desdentados cobiçando aquelas fidalgas carregadas de pó de arroz, bem diferentes das rameiras da Ribeira das Naus.
Uma noite, alguns dias de viagem eram já decorridos, o mastro principal do Medusa partiu-se e Sousa Prego acordado às pressas deparou-se com o navio à deriva em pleno oceano. Alguns dias demorou a reparação, o resto da frota distanciou-se por essa altura. António Araújo recriminava:
-Sr Comandante, em bastante mau estado trás este navio. Se não fossem os criados de José Egídio, que traziam fio para uma peça de tecido, não teríamos tido com que coser as velas. Dommage!
Sousa Prego ignorou os remoques, paciente para com o tartufo. Finalmente, reparado no que pôde, retomaram a rota. A comitiva estava já dividida em dois grupos, um dirigindo-se a noroeste, o outro mais perto da ilha de Santiago, em Cabo Verde, e assim foi daí em diante.
Outros contratempos surgiram entretanto: a água doce rareava, uma praga de piolhos obrigara as damas a rapar o cabelo, desesperadas e humilhadas, as caras cabeleiras vindas de Paris borda fora. Até o comandante teve de se desfazer da sua, deixando a descoberto a figura esguia e morena que desde a largada atraía os olhares provocadores de D.Luísa de Menezes, filha do marquês de Lavradio.
António Araújo ruminava com o Desembargador do Paço:
-O Príncipe Regente tem de ter muita atenção com o Sousa Coutinho, já em Mafra se postou para Ministro do Reino, é um ambicioso!...-relatava, simulando preocupação com D.João VI, a quem abominava os modos boçais e a insegurança alarve. Muitos o querem perder, Excelência!
Passado o pânico da fuga, intrigava-se agora à sombra dos mastros sobre as posições que tomariam na Colónia e o convés do Medusa substituía os salões de Queluz na congeminação dos novos postos que todos achavam vir a ter direito no Brasil.
À sexta semana entravam já na zona das calmarias.Com a costa de Pernambuco a algumas milhas, Sousa Prego perdeu o controle da rota, ficando quase um mês à deriva, para fúria de António Araújo que temia que a chegada do Príncipe Regente, e sobretudo do conde de Linhares que tudo faria por benesse ou nomeação, ofuscando-o, o tratante, ali retido naquela barcaça tresandando a peixe.
Tinham passado onze semanas desde a saída de Lisboa quando finalmente o Medusa aportou a Recife, a 8 de Março de 1808.D.João desembarcara já em Salvador, onde ninguém o esperava, a Colónia desconhecia a sua chegada.O rei de Portugal era uma imagem quase irreal, distante, como podia aquele ser balofo e de sarro nos dentes, a quem a natureza não bafejara em beleza, ser o senhor supremo do vasto império português?
Sousa Prego só mais tarde se juntou à Corte no Rio de Janeiro. O atraso produzira resultados: António Araújo, como suspeitara, já tinha sido substituído pelo Conde de Linhares, Rodrigo de Sousa Coutinho. A Corte de Lisboa descia aos trópicos e à sombra do Pão de Açúcar tornava-se a primeira monarquia a sul do Equador, o Reino definhando entre ingleses e franceses, D. João, abúlico, saboreando frutos tropicais e galinhas do campo.
O comandante do Medusa apenas voltou à Europa nove anos depois, para escoltar a futura imperatriz Leopoldina ao Brasil , para casar com o príncipe D. Pedro ,e já vice-almirante. Depois do regresso da família real,em 1822, foi o último capitão general dos Açores e activo apoiante da causa miguelista.Um português autêntico num tempo de mudanças.