por F. Morais Gomes

20
Nov 10

O cavalo internava-se na mata, lento restolhar, a terra húmida, mãe, fértil, penhascos sentinelas daquele Éden verdejante. O cheiro inebriante da floresta entorpecia os sentidos, lento se deixava absorver qual bálsamo da alma e revigorante para o corpo.

Carlos Carvalho, mais de trinta anos regente florestal da serra de Sintra observava as suas plantas e árvores, sentinela  do génesis, jardineiro da Vida, troteando pela vasta propriedade, um cisne encantado deslizando pela água cristalina do lago, qual príncipe esperando a hora de desfazer o encanto. Os anos passaram, as pequenas araucárias eram agora vetustas e portentosas, muitas chuvas e muitos invernos, e sempre miraculosamente despertas do letárgico  adormecimento em cada primavera redentora. No Éden de Carvalho, “o Carvalho da Pena” como os agradecidos patrícios o tratavam, a flora atingia o clímax fecundo, criptomérias do Japão, fetos da Nova Zelândia, cedros do Líbano, araucárias do Brasil, tuias da América do Norte , a mais valiosa herança do velho rei D.Fernando.

Carvalho recebeu o legado e tratou-o como seu, pai extremoso, enfermeiro atempado, vigilante diligente do paraíso, antes jovem jardim de rosas e camélias, agora garbosa floresta de vetustos carvalhos, como ele, o Carvalho, incontornável, rosto de tímida criança atrás do vasto bigode, a trote, lento e introspectivo.

Sentia a ampulheta do tempo a chegar ao fim e cada diário passeio era agora uma despedida, um olhar individual, sabia todas as idades daquelas protegidas, que lhe retribuíam ,agradecidas, cores para todas as estações, milagre anual do renascimento em triunfo de verde e êxtase de clorofila. Cada abate que fortuito se impusesse era uma punhalada assassina, quase a pedir perdão, outra árvore ou planta nova logo despontaria no seu lugar.

Caminhava e lembrava a velha condessa, como à beira da morte lhe jurara cuidar do Éden, logo estaria a juntar-se-lhe, o eucaliptus obliqua, que qual lacre em poema de amor ela e D. Fernando plantaram no dia do casamento crescia, garboso, porte real, diariamente o olhava como se fora a primeira vez.

Naquela tarde de Novembro viria visitá-lo o velho amigo e neto da condessa Mário Azevedo Gomes, como ele cúmplice da serra, hortelão de milagres, sempre zelando para que o verde manto protector não sucumbisse às labaredas do inferno que por vezes os verões traziam a Sintra, negras cinzas com que mão humana muitas vezes ameaçava o Jardim. Azevedo Gomes, estudioso, aliara os vastos conhecimentos silvícolas à experiência aturada de Carlos Carvalho, descrevendo a serra de Sintra em detalhe. Colaborador da Seara Nova, politicamente opositor do regime da época, fizera a monografia do parque, conhecimento lido e conhecimento sabido em frutífera união.

Encontraram-se na Fonte dos Passarinhos, fim duma manhã de Outono, sol tímido e melancólicas sombras. Era um momento muitas vezes repetido, a renovada romagem aos canteiros e condutas de água, os conselhos sobre cortes e podas, sugestões para repor espécies endémicas ou repelir as infestantes. O dinheiro não abundava e Carvalho com poucos mas generosos jardineiros tomava como seu um património que entidades responsáveis pouco acarinhavam.

-Sabe, senhor engenheiro-lamentava o Carvalho da Pena-sinto-me a ficar sem forças.Não sei o que vai ser isto depois.O Ministério…

Antes que concluísse o avisado Azevedo Gomes atalhou:

-Ora, ora, Carvalho, hão-de as araucárias crescer mais dois metros e ainda você há-de estar aí para as curvas.Quando a semente é boa a árvore é rija!

O Carvalho da Pena fixou os olhos mortiços no eucaliptus obliqua e profetizou, misterioso:

-Quando o meu fim chegar, gostava que fosse assim, de pé! -e abriu os braços como querendo envolver a vetusta árvore e com ela toda uma vida de memórias, anos a trote, à chuva e ao sol, nas encostas plenas de fetos ou nas casas de guardas velando pelo “seu” parque.

Azevedo Gomes pôs-lhe a mão no ombro e abraçados seguiram pelo caminho de pedra. Uma pequena araucária tombada, trinta centímetros, ameaçava morrer, as mãos mágicas do velho jardineiro logo atento acondicionaram a terra, um regador oportuno renovou aquela promessa de vida em  luxuriante habitat.

-Carvalho, creia-me, se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos.Este não é o Parque da Pena.É o Parque do Carvalho da Pena!

Carvalho sorriu, pensativo, despediram-se. Não mais tornariam a ver-se, Carlos de Oliveira Carvalho, administrador florestal do Parque da Pena desde 1911, morreu algum tempo depois, em 1940.

A araucária conta para cima de trinta metros, pujante.

 

publicado por Fernando Morais Gomes às 18:49

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