O guia conduzia os últimos visitantes pela Sala dos Veados, na Pena.Rogério discretamente deixava-se ficar para trás, simulando atenção a um baixo- relevo incrustado num corredor.
Rogério, trinta anos, empregado nos correios, tinha um defeito. Era um colecionador obstinado. Selos, envelopes, notas, moedas, fotos, músicas, tudo tinha devidamente catalogado e inventariado, tudo pelo prazer de juntar. Da cleptomania, evoluíra para uma espécie de esquizofrenia, a certa altura o colecionismo de passatempo passara a ser uma obsessão. Aos 18 anos já era perito em História de Arte, dissertava sobre estilos, o manuelino, o gótico, literatura alemã ou cultura árabe, viajara pela Europa onde conhecera todos os grandes museus e palácios do mundo, o Hermitage, o Louvre, o Guggenheim.
Desta vez o seu alvo era um conjunto de pratos da Companhia das Índias adquirido por D. Fernando II e que se encontrava na Sala Árabe do Palácio da Pena, vitifricados, recobertos de esmalte incolor e transparente, com desenhos representando paisagens da China ao tempo da dinastia Tang.
Estava frio, ameaçava chover a qualquer instante. Depois de discretamente se ter infiltrado na sala, já os visitantes do dia tinham saído, luvas colocadas, memorizou o plano previamente estudado e assim que as portas se fecharam, deixando-o no interior, em bicos de pés avançou até ao salão. De acordo com o reconhecimento que fizera em anterior visita não havia videovigilância ou alarme, em silêncio, penetrou no salão apenas iluminado pela luz exterior. Um vigilante, na zona da bilheteira, lia um jornal desportivo, bocejando.
Em visitas prévias tirara fotografias á sala e aos pratos, qual vulgar e insuspeito turista, e em casa treinara com uma sacola os timings e procedimentos, inclusive às escuras, para se habituar a orientar no interior. Já antes furtara um valioso cálice de prata do Museu de Arte Antiga em Lisboa, nunca fora descoberto o ladrão. Assim que se sentiu em segurança, acendeu uma pequena lanterna de bolso e aproximou-se das peças.
A denominada “Sala Árabe”, pintada por Paolo Pizzi, estava ricamente adornada com cadeiras indianas, consolas de ébano, os ditos pratos Companhia das Índias, e encimada por um vistoso lustre. Rogério retirou um saco de pano almofadado especialmente comprado para o efeito, colocou os pratos no saco e este dentro de uma mochila. Um resmalhar de passos quebrou o silêncio, tosse seca, o vigilante passava ronda, escondeu-se atrás dum reposteiro, a respiração sustida.
Afastado o sonolento guarda, do bolso retirou um retrato do rei D.Fernando, deixou-o no lugar dos pratos, com farda de oficial, ainda jovem . De seguida sacou da mochila uns ténis três números acima dos que calçava, um de cada cor, guardou os que trazia e saindo por uma janela pé ante pé, saiu do palácio às arrecuas, sumindo pelo caminho florestal. Cem metros à frente abandonou um ténis, o esquerdo, amarelo, caminhando descalço de um pé até junto de uma bicicleta dissimulada. Já perto do Chalé da Condessa, em obras, calçou os ténis que usava de início, largando o outro, de cor branca.
Guardado o valioso despojo na casa da Vila, a juntar à vasta colecção, trocou de roupa e foi tomar um copo ao Dois ao Quadrado, rotina diária, ninguém suspeitando, as luzes da Pena já ligadas.
Os pratos eram o trato acordado com Werner, um alemão, ar hippie, quarenta anos, que com ele trocaria um raro selo alemão do século XIX, o tal que lhe faltava numa vasta colecção que lhe atulhava a casa .A bem dizer não seria um ladrão mas um colecionador, cleptómano incorrigível, nada se perdia, apenas mudava de mãos.
Só no dia seguinte o alerta foi dado, a Judiciária baralhada com as pistas suscitadas pelos diferentes ténis, um percurso ziguezagueante, nada de impressões digitais. E a foto sóbria de D.Fernando no lugar dos pratos. O inspector André, da PJ mirava a foto, impressa a partir de computador. No verso, um recado enigmático “Em arte, procurar não significa nada. O que importa é encontrar”