por F. Morais Gomes

04
Dez 10

Tudo a postos na Quinta do Relógio. Manuel Pinto da Fonseca, rico aventureiro alcunhado o Monte Cristo, antigo traficante de escravos, oferecia uma recepção para apresentar à sociedade a sua delicada filha Carlota, dezoito pueris e esperançosas primaveras. Compareciam o Príncipe Real D.Afonso, a condessa d’Edla, o conde de Sucena, Chaves Mazziotti, donzelas casadoiras e jovens garbosos, quiçá o pretendente que se procurava. Era Primavera e 1893.

Carlota, tímida, criada por uma mãe religiosa e duas tias solteironas pouco convívio tinha para lá das aulas  com miss Lisa, a preceptora inglesa e as idas à missa em S.Martinho pelo que o pai achava que era altura de providenciar um genro de boas famílias e com fortuna adequada.

Tudo fora cuidadosamente arrumado, salões, móveis, jardins, criadas trabalhando denodadamente no vestido e no penteado da sua menina, que acompanhavam desde o berço e agora mulherzinha era apresentada à sociedade, tomara ser para elas a cintilante festa que se preparava.

Pelas oito horas chegou a primeira carruagem, com Lucrécia, prima de Carlota. As duas, muito amigas, costumavam trocar confidências nas tardes de lavores nos jardins do Relógio. Logo outras carruagens foram chegando e pelas oito e meia os músicos iniciaram a função com  uma  valsa aquecendo o salão.

Sózinho chegou também entretanto o moço mais cobiçado  da noite, Miguel de Sousa Holstein, filho da Duquesa de Palmela, cadete de cavalaria e herdeiro duma fortuna de família que a Regeneração havia acarinhado com desvelo.Pinto da Fonseca logo o obsequiou, correndo a apresentar a doce Carlota, que ruborescida, tímidamente o cumprimentou com uma pequena vénia.

Passado algum tempo, com o salão cheio, criados de libré serviam acepipes, no jardim luminárias e balões  incensavam o dinheiro do velho negreiro, agora dedicado a outros negócios com o Brasil, têxteis e madeiras exóticas. Miguel pediu Carlota para uma dança e logo perante olhares ora invejosos ora satisfeitos rodopiaram ao som do Danúbio Azul, toda a sala  os acompanhando chegada a inebriante Marcha Radetsky.

Enquanto isto, lá fora, um restolhar vagaroso e dissimulado quase imperceptível quebrava o silêncio junto a uma vedação da propriedade. José, o cocheiro da condessa d’Edla que dormitava na carruagem esperando, ouviu vagamente algo mas não deu importância, seria alguma lebre ou um dos gatos da casa, Carlota adorava-os e tinha três.

Depois de muito dançarem, os convidados, sobretudo os mais novos, espalharam-se pelos jardins da quinta, oportunidade para trocas de olhares mais insinuantes e uma possível e envergonhada troca de beijos. Lucrécia mais afoita e descarada  provocava um tenente de Lanceiros já meio avermelhado e fixo no proeminente decote, enquanto Miguel e Carlota passeavam falando do tempo e de Sintra naquela noite primaveril e generosa. A certa altura, esta, desculpando-se, pediu para se ausentar a retocar a pintura no toucador do quarto.Miguel, cavalheiro, retornou ao salão.

No quarto soprava uma leve e desconfortável brisa nocturna vinda da janela entreaberta, a estouvada da Ermelinda esquecera-se de fechar, pensou. Já ajustava o fecho das portadas quando uma mão lhe abafou a boca a outra encostando-lhe uma faca de mato rente à jugular. De coração aos pulos, um intruso voltou-a para si e com um dedo ordenou silêncio.

-Quem é você, o que quer? -perguntou Carlota, assustada, voz trémula.

-Silêncio, ou a festa vai virar velório! -ameaçou um negro, calvo, roupa suja e sapatos esburacados -Se não queres morrer ou alguém da tua família chama aqui o teu pai já. E nada de ideias, ou será pior para todos!

Perdida, Carlota assomou ao corredor que do piso superior debruçava sobre o festivo salão. Pinto da Fonseca conversava com Miguel e  ao sinal duma pálida Carlota pedindo-lhe que subisse desculpou-se e foi ao encontro dela.

Ainda risonho entrava nos aposentos logo o rosto se alterou ao deparar com Carlota tolhida numa cadeira de palhinha dourada e ao lado em pé o negro, ameaçador, uma mão no ombro da refém e a outra  segurando a faca rente.

-Mas que é isto? Quem és tu, canalha? Larga já a minha filha, ou mando açoitar-te, escaruma!

Apesar de abolida a escravatura, Pinto da Fonseca conservava os modos de senhor da casa grande que durante anos lhe porfiara a fortuna nos campos de algodão na Baía. Embora não mantivesse já qualquer criado ou escravo negro, aquela imagem transportava-o para a fazenda em Itabuna onde na sanzala chegara a alojar mais de quatrocentos escravos.

-Lembras-te da Jociara lá na fazenda a quem mandaste açoitar quando te disse que trazia um filho teu há trinta anos, branco velho?

-O que tens tu a ver com isso? Acaso tenho de dar satisfações a um preto como tu? Larga já a minha filha ou acabas enforcado! Eu mesmo me encarregarei disso!

-Eu sou o filho da Jociara. E sabes o que lhe sucedeu? Com tanto açoite  que lhe mandaste dar morreu no momento em que eu nascia lá no quilombo.És tu quem vai pagar agora!

O velho traficante empalideceu, olhou o negro e logo a filha e ficou abúlico.

-Pai, isso é verdade? Este moço é seu filho? Não me minta, peço-lhe…-Carlota sentia-se num pesadelo mas ao mesmo tempo ganhava serenidade e uma súbita simpatia pelo seu sequestrador. Voltava a interpelar o pai quando a porta do quarto  se abriu a pontapé e Miguel de  pistola na mão ordenou ao negro que largasse Carlota. Este, entre a raiva e o desalento, largou a faca e forçado a ajoelhar logo foi imobilizado pelo jovem cadete, que desconfiado com a cara pálida de Carlota chamando o pai, o seguira e tudo escutara no corredor.Fonseca aproveitando a mudança nos acontecimentos já se apressava a esbofeteá-lo quando a mão de Carlota o agarrou:

-Espere meu pai! Se este homem é seu filho é também meu irmão.E a sua raiva parece-me justa!

Miguel, ele próprio abolicionista e liberal, mantendo o preso imobilizado com a pistola concordou com um movimento da cabeça, sem contudo querer hostilizar o velho negreiro enquanto o negro espantado com a atitude de quem seria de esperar vingança mantinha silêncio, expectante.

-Proponho uma coisa: vamos arranjar-lhe um quarto para ficar e pela manhã se cuidará que se arranje uma reparação- e virando-se para ele colocou-lhe a mão no ombro, qual desculpa que o velho pai nunca pediria. Fonseca em silêncio  e remorso rendia-se àquela frágil jovem que assim tomava o pulso dos acontecimentos no seu baile de debutante.

Acalmado o negro, de nome Coriolano, Miguel  levou-o a comer uma sopa na cozinha e providenciou aposentos, não na ala dos criados mas dos hóspedes. Carlota e o pai voltaram à festa e sem que os convidados se tivessem apercebido acabaram  discretamente aquela inesperada noite, já Lucrécia alheada do salão se enrolava com o ofegante tenente atrás dum eucalipto.

Dias depois, Coriolano, ódio mais apaziguado, foi convidado para caseiro duma propriedade da casa Palmela, familiar de Miguel, casa própria para sempre e vencimento fixo mais uma parte do que a terra desse. Miguel depois de três felizes meses cortejando Carlota, pediu a mão desta ao envergonhado sogro que quebrado pelos anos abençoou os dois e movido por Carlota acabou também pedindo perdão ao filho que abandonara. E todos redimidos se juntaram de novo para a boda na Quinta do Relógio na qual  Lucrécia exibia já  seis meses de esperanças dum filho do capitão, seu marido….

publicado por Fernando Morais Gomes às 14:02

Dezembro 2010
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4

5
6
7
8
9

12
13
17

19
22

26
30
31


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

subscrever feeds
mais sobre mim
pesquisar
 
blogs SAPO