Na árvore de Natal de Janas todos os anos desde 1995 aparece sempre pendurado um envelope vermelho, singelo, sem remetente ou destinatário. Tudo começou por causa do tio Álvaro, o velho e espartano solteirão detestava o Natal, não porque não estimasse a família, mas porque sempre tivera aversão ao comércio natalício que para ele massificava emoções e fazia da fraternidade algo a que se acresce lucro e iva. Era contra as compras supérfluas,as comezainas pantagruélicas, o ridículo fato de Pai Natal que o Alfredo vestia logo soltando uns oh! oh! oh! mais próprios de tísico terminal distribuindo o inócuo par de meias com ursinhos ou a agenda embrulhada com fitas cintilantes, confissão desesperada de quem não tinha conseguido pensar em nada mais original para oferecer. Até o tal do pai Natal fora inventado pela Coca-Cola, alegava reticente.
Sabedora daquele feitio torto, naquele Natal Sofia decidiu deixar de lado as peúgas e gravatas às bolas e foi à procura de algo diferente que ele apreciasse, e a ideia surgiu um pouco por acaso: Tiago, o filho de 10 anos, jogava futebol no colégio, e em meados de Dezembro a sua equipa foi disputar uma partida contra outra de Monte Abraão. Em contraste com os equipamentos limpos e de boas marcas da equipa de Tiago, os deles eram usados e sujos, sapatilhas esfarrapadas, o mundo de Lá, cruel e real. Nesse dia levou o tio Álvaro ao jogo do filho, e sentiu claramente a diferença entre os que têm e os que anseiam,outros mundos deste mundo. Os de Monte Abraão perderam o jogo, em silêncio e com o orgulho ferido digeriram a derrota, não eram só as sapatilhas a única coisa esfarrapada por ali.
O tio Álvaro, velho adepto de futebol e do Sporting- nasci para sofrer ,dizia- no fim do jogo encolheu os ombros taciturno:
-Os miúdos da outra equipa têm potencial ,é pena, têm poucas condições, é assim que depois desistem. Apesar de torcer pelo nosso Tiago hoje gostava que tivessem ganho eles! -desabafou, pouco expansivo era contudo um coração de ouro.
Nos anos sessenta Álvaro Camacho fora treinador de equipas juniores no Seixal,a alguns viu mesmo singrar nas divisões intermédias, amigos para o resto da vida. Ainda agora, na mesa do café do Fernando com muitos dos putos já veteranos comentava regularmente as partidas e as carreiras difíceis.
O desabafo inspirou a Sofia uma ideia para um presente de Natal que por certo o levaria a mudar de ideias quanto à hipocrisia da data. Divorciada, dona de um pronto a vestir, alguma folga financeira que permitira a moradia nova no pinhal de Janas, tinha um coração generoso.Dias mais tarde entrou numa loja de desporto, comprou onze pares de sapatilhas e enviou-as à escola de Monte Abraão. Na véspera de Natal, discretamente pendurou na árvore cintilante um envelope vermelho com um bilhete dentro para o tio Álvaro, a oferta aos miúdos era o presente dela para ele. O até ali contrafeito tio ,surpreendido, esboçou um sorriso discreto mas luminoso e naquele ano,depois da ceia, até comeu filhoses e bebeu dois copos de Porto.
Nos anos seguintes,a árvore de Natal passou a contar com o singelo envelope vermelho pelo qual um inesperado grupo de crianças ou pessoas carentes beneficiava, sem o saber, dum tio que recriminava o Natal, virando mesmo tradição: foi um cheque para uma família com um filho paralímpico e sem meios; outro ano a oferta do peru de Natal ao lar de idosos onde morava a Ercília, a velha criada lá de casa, o envelope surpresa passou a ser o momento alto dos Natais em Janas pelo qual o tio Álvaro agora aguardava ,sem grandes demonstrações exteriores de ansiedade mas feliz interiormente. Religiosamente era sempre o último presente a ser aberto e lido na noite de Natal, e com os anos até o Tiago e os irmãos mais novos deixavam de lado os brinquedos e jogos que já sabiam ir receber, à espera do momento em que, qual entrega dos Óscares se revelaria o nome dos contemplados no envelope mistério desse ano.
O tempo foi passando, as crianças crescendo,os brinquedos substituídos por presentes mais adequados, mas o inevitável envelope vermelho nunca perdeu o seu lugar e encanto.
Um dia,um cancro de pulmão fez das suas e o tio Álvaro partiu , levando o homem que detestava o Natal mas involuntariamente fora a causa de vários Natais felizes.
O ano passado, ainda chorosos pela perda do carismático idoso, Sofia e Tiago , já adulto,como sempre enfeitaram a árvore junto a uma lareira onde pontificam os retratos de familiares sorridentes, mortos e vivos, o tio Álvaro em destaque com o seu bigode russo e nariz aquilino.No meio das bolas, das luzes, do velho presépio da avó Chica,de novo um envelope vermelho ao centro.Era Tiago quem agora cúmplice o colocava entreolhando a mãe. Perto da hora do almoço da véspera de Natal, um segundo envelope adornava outra ramagem da árvore, à noite, antes da ceia, mais três se lhe juntavam.Também os irmãos mais novos de Tiago, sem o dizerem, haviam colocado envelopes e sorridentes disfarçavam surpresa, alegando ser coisa do pai Natal.
Á meia noite, depois da ceia e dos presentes, todas à vez foram buscar um envelope e leram a prenda que em memória do tio Álvaro haviam doado: a Joaninha, duas bonecas para o ATL dos meninos da escola de Morelinho; o Sérgio uma bola de futebol para os filhos do Etelvino, desempregado em dificuldades, a beneficiar da ajuda do Banco Alimentar; até o Marquitos na ingenuidade dos seus cinco anos ofereceu um pijama e um desenho daquele vago tio Álvaro, que mal conhecera, com dois meninos a jogar futebol , para o infantário onde andava.
Nos natais da casa de Janas, o espírito de Natal passou a ser o sagrado momento da homenagem àquele velho tio avesso ao consumismo e às aparências, e a ser mais importante o dar que o receber.
É Dezembro de Natal e chove,na rádio toca Rudolph the Red Nosed Reindeer, e fico por aqui que tenho envelopes para ir comprar…