Paciente e sem pressas, Hélder de Bragança empacotava livros e papéis na biblioteca da casa de Verão, o presépio branco das Azenhas ali ao lado, com a velha casa vendida recolhia -se agora ao remanso de Linda-a-Velha. Um neto dado às letras e admirador daquele avô escritor viera ajudar à mudança e clinicamente observava o mundo de mundos empilhados naqueles papeis amarelecidos, “as minhas páginas amarelas”, ironizava o velho escriba, mais de cinquenta anos esgravatando poesia e prosa, o testamento vital duma vida de paixões, medos e fantasmas, de Luz.
Hélder de Bragança, pseudónimo literário de Jorge Soares, arquitecto de formação mas desde cedo dedicado às letras, companheiro de Ramos Rosa e Herberto Hélder nos anos da juventude, armazenava agora o espólio de uma vida vertida em muitas letras, muitas manuscritas, defuntas de passados vários Ainda escrevia, e, sinal dos tempos, a custo aventurava-se no asséptico Word em Arial 12 que tanto o irritava.
-Escrever sem caneta é como escrever com preservativo, João- comentava com o neto, fã daqueles velhos textos e da vasta biblioteca-sarcófago de conhecimentos por descobrir e outros já revelados- a caneta permite-te escrever fazendo amor, pulsar, caminhar ofegante ao encontro da ejaculação das letras, os dedos acompanhando a mente rumo ao orgasmo transpirado!. Escrever é como fazer um electrocardiograma à alma, a emoção a domesticar a razão, mas onde ao contrário da vida, a arritmia liberta e a normalidade mata, lentamente! – teorizava, enquanto num saco enfiava originais do Ramos Rosa, escritos no miradouro da Graça quarenta anos antes, recordava relendo, grande jantarada nesse dia a zurzir no Cesariny.
João, barba negra hirsuta e densa, também ele aventurado nas letras na finitude dos seus vinte e três anos, ouvia e registava, empilhando livros junto à lareira, o Almada, o velho rafeiro cheirando em volta, comida ali só espiritual. Aventurando-se entre a escrita e a música electrónica, com amigos ensaiara já um livro de poesia, edição de autor, " Profanação da Onirotragédia”, roteiro em torno dos sonhos que não recordamos, que sonhámos mas o subconsciente censurou, explicava ao avô, leitor interessado. Pela escrita lutava contra essa censura, pela escrita aventurava-se na mea culpa de viver com máscara, a escrita, inimputável, a desmascarar verdades não confessadas.
-O escritor - ia desfiando o experimentado avô, vasta cabeleira branca em desalinho, resquício de estimação dos loucos anos sessenta exilado em França- é um correio: uma vez vertida a alma no papel- confessionário, envia-a definitivamente ao seu destino, como um origami dos sentidos. Nenhum escritor pode dizer eu quis dizer isto ou aquilo quando quem lê, com o seu olhar pessoal e maculado por uma história de vida pessoal e única aí captar algo diferente. A obra literária, uma vez escrita, parte definitivamente ao seu destino, e quem a capta, como ave solta ou segredo desvendado dá-lhe a leitura que aí encontrar, e só a sua. O receptor lê muitas vezes algo distante do que o autor quis dizer, mas esse é o fascínio da literatura! -teorizava, lembrando o seu livro mais conseguido que só vendera quinhentos exemplares, e o “Ultimato da Alma” que detestara e lhe dera um prémio, ironia do destino. -Contudo nada atenua o facto de que cada escritor é um tirano entrincheirado nas suas verdades. O leitor pode descobrir algo diferente, mas só ele leva para o túmulo o segredo do enigma da palavra escrita!
João entusiasmado com a conversa perorava sobre o assunto, os livros espalhados pela mesa e sofás testemunhavam:
-Hoje o que se lê tem muito a ver com hedonismos, avô, os escritores são vaidosos mas sem coragem de assumir a vaidade, todos escrevem para si mas na prática quando sabem que vão editar, o verdadeiro Eu perde algo de Eu, é o Eu que querem que os outros vejam, não o Eu transparente e nu. Não achas que há nisso uma fraude intelectual, capturando os leitores para os livros a ler e não para os livros verdadeiramente escritos?
Hélder/Jorge tentava-se a responder como Hélder mas a finitude do momento, a alma franca do neto, alter ego e cúmplice, amainou-lhe a resposta, ser escritor é ser polémico, sempre o achara, mas à pergunta do neto, no labirinto de pulsões pensadas ,respondia como Jorge, ortónimo daquele Hélder fingidor, antes fulgente e astral, agora, com a idade, burocrata da palavra:
-Os anos gastam as palavras, João. Quantos sonhos, loucuras, vontades, se escrevem aos vinte anos e relidos aos setenta se revelam lancinantemente estranhos, distantes, glaciares, por vezes levando a pensar:terei eu escrito isto ? Só há um segredo: quando chegares aos setenta anos e o jogo das palavras te for familiar e te convide livre de fantasmas para a Grande Viagem dos Sentidos como quando eras ingénuo escrevinhador em guardanapos de café, aí reencontraste o teu destino e voltaste ao teu ponto de partida!
A conversa pedia já um Jameson sem gelo, João serviu dois copos e interrompendo a arrumação dos caixotes sentavam-se agora no varandim com vista para as Azenhas, o Presépio Branco açoitado pelo mar irado.
Mais tarde, continuando o avô a ensacar anos de letras a caminho duma cave em Linda a Velha, onde famélicos ratos aprenderiam as primeiras letras, João sentou-se frente ao portátil ,ainda envolto naquele cheiro a papel velho, as “páginas amarelas” do avô, e tentou registar pensamentos. Jorge, ainda acabando o Jameson, surgiu-lhe à porta do quarto e sorriu, irónico:
-Como é possível escrever com um ecrã de vidro luminoso e frio por testemunha? – arengou.-A escrita é um pacto cúmplice entre caneta e papel, não um duelo de dedos nervosos esgrimindo contra um electrodoméstico com teclas. O Rabaça tem razão, quem vai ler daqui por cem anos coisas registadas num vidro com néon? Falta alma!- e desceu para a biblioteca já esvaziada, duas caixas levavam agora desenhos de Júlio Pomar, o safardana roubara-lhe a Manuela quando alunos de Belas Artes, nunca lhe perdoara, guardava ainda os esboços a lápis, um livro de Sebastião da Gama ficava para o neto.
Procurava João reter para memória futura os desabafos do avô quando no ecrã do portátil uma irritante mensagem alertava para bateria fraca, deitando por terra o propósito. No piso de baixo, bramindo uma cúmplice caneta fora de moda , Jorge , de novo Hélder de Bragança ,desabafava com um papel o derradeiro texto na casa com vista para o Presépio Branco.