por F. Morais Gomes

28
Fev 11

Poeirentas e ruidosas, assim achou Lady Jackson aquelas quatro carruagens rebocadas por uma locomotiva, o tal Larmanjat onde desde as portas de Lisboa iria visitar a recomendada vila de Sintra naquele Maio de 1873.A viagem duraria cerca de duas horas, com duas paragens, para descanso e abastecimento de água, 550 reis o bilhete em 1ª classe. O mecanismo assentava numa via constituída por um só carril, ladeado por duas passadeiras de madeira distanciadas alguns centímetros do carril central. Para tornar o conjunto estável, tanto o carril como as passadeiras, estavam pregados a travessas, por meio de cavilhas de ferro. As locomotivas bem como as carruagens e os vagões estavam munidos de rodas centrais e laterais, rodando umas sobre o carril e outras sobre as passadeiras. Ideias de Saldanha, que vira uma coisa parecida em França e a introduzira por cá em 1871.

Catherine, Lady Jackson, viúva do Cavaleiro Sir George Jackson rendera-se recentemente à literatura e vinha em busca da fair Lusitania, Maio o melhor mês, por causa da poeira, havia recomendado em Paris o seu editor. No embarque, em Lisboa, observou os demais viajantes da primeira classe, seis ou sete no total, um inglês, Mr. Galway, botânico de Durham, Cosette Mignon, corista numa revista da R. dos Condes e um acompanhante, mais velho, M.Vendôme, um jovem médico português, Gregório de Almeida, com consultório em Sintra, segundo apurou, e os príncipes Cyrllovitch, Vladimir e Maria, de visita a Portugal, seriam hóspedes em Sintra da condessa d’Edla. Uma carruagem posta à disposição em Lisboa fora dispensada, queriam conhecer Sintra naquela maravilha do progresso. As outras carruagens transportavam os criados, colarejas, e soldados colocados no Paço de Sintra, nem sempre cheias, o medo dos descarrilamentos ainda afastava muito povo temeroso daquela máquina infernal.

Lady Jackson, vistosa viúva, remetida a criada para a 2ª classe socializava com os demais, o cheiro intenso do perfume barato de mademoiselle Cosette arrancou-lhe um sorriso amarelado, classes baixas, pensou, o acompanhante segurava-lhe a mão, mas mais parecia um pai que marido, uma amásia, por certo com um talhante rico. Já o médico português parecia simpático, curso recente, ultimava o consultório, nem sempre os doentes seriam muitos, umas galinhas para canja e couves de Almargem compensariam nos primeiros tempos.

Com os príncipes pouco falou, não falavam nenhuma língua civilizada, uma vénia discreta e pouco mais. O mais falador era Mr.Galway, ia em visita ao wonderful palace do seu conterrâneo, Mr. Cook, agora visconde de Monserrate, a fama dos jardins mais belos que a Babilónia tiraram-no do Surrey, aventurando-se nestes confins da Europa. Era um fala barato, duas malas acastanhadas como bagagem, o nariz avermelhado rematado por umas lunetas redondas caiu nas graças de Lady Catherine.

O countryside era gorgeous, de campos e vinhas, paisanos com barretes montados em burros, as mulheres trabalhando no campo, uma só estrada esburacada entre a capital e aquele resort, agora famoso depois que o Rei-Viúvo e a morganática condessa por lá passavam a maior parte do tempo. Ao fim de uma hora de viagem, faziam a primeira paragem, num sítio poeirento chamado Porcalhota, apeando-se para uma pausa de trinta minutos, Catherine chamou Maude, a criada e tomou um deslavado capilé que aguadeiros vendiam saídos não se sabe de onde, gente dos campos vendia cestos e atoalhados, queijadas e fruta fresca. Os demais também se refrescavam, deambulando pelas imediações, uma árvore frondosa servia de sombra antes da chegada ao destino, mais uma hora de viagem, pela noite Sintra refrescava, felizmente, haviam-lhe dito em Lisboa.

Regressados à carruagem, só M. Vendôme tardava, a comprar fruta a uma colareja, para dessedentar son petit chou perdida naquela casbah poeirenta. Mr. Galway comprara um cesto de vime a um camponês, muito étnico e útil, comentou, transportando-o para o seu lugar. No lugar contíguo ao de Lady Jackson, a princesa Cyrllovitch estava contudo subitamente irritada, pronunciando umas algaraviadas com o marido, este chamava um valete que seguia na 2ª classe, depois de alguma agitação, que atrasou a saída do Larmanjat, sabia-se que a maleta com jóias da princesa desaparecera, particularmente  uma gargantilha de ouro, trazida particularmente para a recepção que D.Fernando e a condessa Elise dariam em sua honra no Chalet da Pena. Não havia polícia próximo, meio caminho entre a capital e Sintra. Mr. Galway, chocado aproximou-se, limpando o suor com um lenço:

-Que coisa horrível! Como é possível que duma carruagem onde só cavalheiros e pessoas de bem viajam aconteça uma coisa destas. Nem em Constantinopla, I say!

Catherine aproximou-se da princesa, Cosette e M. Vendôme ajudavam a reconstituir os passos de todos após a carruagem se ter detido, a não ser que algum larápio tivesse passado da 2ª classe, de cuja porta separadora e passagem interdita o revisor nunca havia saído, só daquele grupo poderia ter saído o ladrão. Intrigada, perguntou ao médico se vira algo, este, macambúzio e enterrado num tratado de farmacopeia nada vira, só queria chegar a Sintra, o burro para o Arraçário ainda levaria um bom par de minutos. Lady Jackson reparou então que Mr. Galway com as pernas tentava encobrir o cesto de vime comprado minutos antes, parecia nervoso.

-Mr. Galway, com medo que lhe roubem a preciosidade egípcia?- ironizou, sagaz.

-Well, eu…, não, não Lady Jackson, foi por certo  lapso dos seus olhos, a claridade do sol destes países do Sul altera a sensibilidade da vista, sabe, eu…

-O senhor roubou as jóias da princesa, n’ést-ce pas?- atalhou M.Vendôme, apontando-lhe a bengala e quase o encurralando contra a janela.

-What?How dare you!- Galway , já avermelhado, ruborizava.

-Un moment!Sou Claude Vendôme, da polícia francesa, messieurs- apresentou-se, tirando o chapéu,- esta é a minha colaboradora, mademoiselle Nadine, e este senhor frente a nós é nada mais nada menos que Walter Pickwick, conhecido ladrão de jóias inglês, desde Paris que lhe vimos no rasto!

Todos pasmaram, até o Dr. Gregório suspendeu a leitura do compêndio,aquilo parecia melhor que teatro da R. dos Condes, pensou. Vendôme pegou no cesto de vime, com tampa, e abrindo-a, entre dois livros sobre flora mediterrânica, lá estavam as jóias. A princesa suspirou enquanto o valete do príncipe Cyrllovitch, vindo da 2ª classe de imediato deteve o larápio com uma arma.

-Mas como pode aperceber-se de tudo, caro senhor?- perguntou o príncipe Vladimir- se saímos todos ao mesmo tempo?

-Aí é que está, Excelência. Quando saímos vi que o senhor Galway  discretamente ficou para trás e num ápice sacou das jóias e lançou-as pela janela para um lado descampado, do lado oposto ao da gare. Uma vez lá fora, comprou o cesto, recolheu as jóias discretamente, e entrou ao mesmo tempo que os outros, com o souvenir na mão, dando a ilusão de sempre ter estado junto com o grupo. Ninguém suspeitaria! Ele já desde Lisboa sabia desta visita a Sintra e é conhecida a riqueza das jóias da princesa, a suposta amizade com monsieur le vicomte du Monserrate afastaria qualquer suspeita sobre si!.

- Mas diga-me, senhor Vendôme, como soube que ele tinha as jóias consigo?- questionou Lady Jackson

-Quando saímos, segui-o, com a desculpa que ia comprar fruta para a Cosette- alias Nadine- vi-o recolher a caixa com as jóias e ainda ter tempo de tomar um capilé de limão junto com os outros, voilá!

-Fruta que não chegou a comprar, pois não, senhor Vendôme?..- Lady Jackson, perspicaz, também desconfiara da identidade do polícia, a dita fruta não chegou à carruagem, ela é que devia estar na polícia, pensou.Vendôme sorriu e encolheu os ombros, ninguém é perfeito.

Em Sintra, onde D. Fernando e a condessa d’Edla esperavam os príncipes, Galway,aliás Pickwick, foi conduzido à cadeia comarcã, mais tarde seria transferido para Lisboa e depois Paris, escoltado por Vendôme e Nadine. Lady Jackson, passadas as peripécias, lá se deleitou com a verde Sintra e seus pitorescos vales. Mais tarde deixaria as suas impressões num livro, o seu editor entregaria a um tal Camilo Castelo Branco a tradução da versão portuguesa. Gregório de Almeida veio a ser um dos mais respeitados médicos de Sintra, pai dos pobres e filantropo. O Larmanjat, esse, ainda durou doze anos, logo substituído pelo caminho de ferro, rasgando a planície e dolente parando em gares onde empoeirados viajantes se saciavam com capilé de limão e comprando coloridos cestos de vime.


publicado por Fernando Morais Gomes às 05:46

27
Fev 11

Na escarpa da Ulgueira, paredes meias com a Azóia, ululante em noite de Inverno, António e Mafalda Barroso acendiam a lareira a aconchegar a sala do “Promontório”, seu pequeno hotel no litoral , atlântico e fustigante, as luzes do farol da Roca pestanejando ao longe. A televisão anunciava o assassínio essa tarde, em Colares, de Mário Esteves, funcionário dos Correios, o criminoso estava a monte, a polícia montara caça ao homem. Apesar de ser época baixa, quatro hóspedes acolhiam-se na crepitante lareira, um licor de poejo reconfortava António  no salão aquecido. A noite prometia borrasca, chuva e ondas de sete metros, o vento de nortada aconselhando uma bebida junto ao lume e uma fatia do bolo de chocolate que Mafalda tão bem fazia. Os clientes, chegados essa tarde, já o mau tempo se aproximava, eram um coronel  solteirão, Castro Gonzaga,  em busca de sossego, Jorge,finalista de Arquitectura, e a doutora Áurea Soveral, uma juíza aposentada, atraída pela beleza das arribas alcantiladas. O boletim meteorológico aconselhava precauções, ventos ciclónicos para a noite, o jantar seria às oito, para que querendo, recolhessem cedo, Áurea desafiava o coronel para um bridge depois, acompanhado por uma reconfortante bebida.

A noite era pois para um serão de província, cinco numa casa, quase isolada, vinho e cartas no remanso, escutando as bátegas enfurecidas.Passava já das onze quando inesperada, em noite de temporal, a campainha tocou, um indivíduo de gabardina, encharcado, pedia para falar com os donos da pensão, coisa urgente.Era o inspector Toscano, da Polícia Judiciária, trazia notícias preocupantes: o  assassino de Mário Esteves, o tal que a  televisão noticiara , andava a monte na zona, era preciso atalhar que não se escondesse ali ou molestasse algum hóspede, um bloco notas no local do crime mencionava o nome “Promontório”.O inspector bebeu uma poncha quente, que António lhe ofereceu, e acolheu-se por momentos à lareira, a secar, os demais jogavam cartas e só Jorge , alheado, lia um romance, sentado  numa cadeira de baloiço, não se apercebendo da conversa, tirara uns dias para ler e descansar, o médico sugerira.

Um relâmpago , logo um trovão tonitruante, e a luz eléctrica faltou na casa batida pela chuva. Dez minutos levou ainda António a acender as velas de um candelabro, a partida de bridge entretanto interrompida. Só minutos depois a luz foi reposta, mortiça, com a trovoada cada vez mais próxima no breu da Ulgueira. António serviu  Porto, para acalmar, mas logo um grito de Mafalda denunciou o corpo estendido no chão de Áurea Soveral ,os gritos quase abafando o trovão seguinte, que com a força abriu uma janela, fazendo voar o baralho de cartas e quebrando um copo em cima da  mesa. O inspector ,que  se prestava a interrogar os presentes antes da luz falhar,tomou conta da ocorrência e examinou a falecida. Estrangulada, apurou. O assassino estava entre eles, e fora rápido.Toscano recolheu indícios, tentou comunicar com a Polícia mas a rede estava em baixo, em noite de tempestade, estavam isolados e, pior, em perigo.O coronel Gonzaga, intrigado, interpelou o inspector:

-Diga-me, senhor inspector,  porque motivo o assassino desse tal Mário Esteves haveria de vir para aqui?

-Lembra-se de um caso há uns anos, em Sintra, um rapaz que foi violado pelo pai e irmão adoptivo, veio nos jornais? O Mário era o pai adoptivo, temos razão para crer que o assassino seja o rapaz, um tal José Pimentel,e ande atrás das pessoas  ligadas à sua adopção para lhes fazer o mesmo que já fez ao pai. Vingança, sabe…

-Então, mas o que é que a dra Áurea tem a ver com isto?- atalhou o coronel.

-Ela foi a juíza que na altura entregou o jovem ao Mário e à mulher. Daí a referência ao Promontório no  bloco notas, o assassino sabia que ela estaria cá estes dias.

-Então se o móbil para a morte da doutora foi esse, é porque um dos presentes é o assassino,o rapaz que foi violentado!- deduziu o até ali silencioso Jorge, apreensivo, ar doente,a notícia da morte de Mário Esteves que escutava pela primeira vez, deixara-o transtornado.António, enquanto Jorge falava, reconhecia entretanto o jovem, já o havia visto em em cafés de Sintra,bem lhe parecia ser aquela cara familiar:

-Você não é parente do Mário Esteves, Jorge?E pela idade, poderia até ser esse filho adoptivo...-lançou, desconfiado.

Jorge ficou surpreendido pela ligação, e  um pouco assustado:

-Não, António, sou efectivamente  filho do Mário Esteves, o meu nome é Jorge, Jorge Esteves, mas sou  seu filho biológico Era  adolescente quando ocorreu esse caso,para mais de dez anos, se soubessem como estou arrependido, dessa insanidade. Tive um internamento psiquiátrico, inclusive. O meu pai era alcoólico, saiu tudo fora do controle emocional, e  agora está morto! E virando-se para Toscano, que ouvia atento cada palavra, sondou-o:

-Acha que o assassino é um dos presentes, inspector?

-É, tenho a certeza agora!- respondeu o inspector Toscano, puxando duma arma e apontando-a para Jorge -estás a olhar para ele, canalha! Não te lembras de mim, maninho?O pobre órfão que adoptaram para saciar a vossa lascívia nojenta?

O polícia era afinal o rapaz violado anos antes, a juíza negligente e o padrasto alcoólico já estavam, faltava o irmão, há muitos anos o não via, acabava de se denunciar. O estratagema de se passar por polícia pegara, a providencial falta da luz um momento precioso para, depois do velho tarado,se livrar da negligente juíza que o entregara a pais sem estofo moral.

Lá fora os relâmpagos não paravam, no chão da sala ao corpo inerte da velha juíza juntar-se-ia agora nova vítima, a justiça em funcionamento. O tempo passara, mas não esquecera, marcado no corpo.Mafalda,  em pânico escondeu-se atrás do aparador, Jorge, descoberto,ficou branco como a cal da parede a olhar o falso inspector. Já a arma ia fazer nova vítima, quando José Pimentel sentiu atrás da nuca um objecto frio encostado. Toscano virou-se e deparou,surpreso, com  o coronel Gonzaga, que armado com uma pistola, o  mandava  pousar a arma:

-Tenha calma, José. Compreendo a sua raiva, mas não acha que duas mortes já são demais?- e sacando da carteira, identificou-se -Baltazar Martins, Policia Judiciária. Mafalda julgava endoidecer, o polícia não era da polícia, o coronel também não era coronel.

Duas horas mais tarde, já a tempestade amainara, a polícia finalmente chegou, a retirar o corpo e levar o assassino, entretanto mantido em vigilância. Jorge, ao cruzar-se na porta com o traumatizado irmão ainda balbuciou um pedido de perdão, ele olhou-o em silêncio, o desprezo fulminante chispando dos olhos. António e Mafalda, extenuados, finalmente iriam dormir, depois da molhada noite na pachorrenta Ulgueira,o  Promontório sossegava, depois da tempestade,silencioso e sem clientes para o brandy.Mafalda, extenuada e  junto à lareira,guardando o baralho de cartas, ainda confusa,interrogou o marido, que reacendia o lume:

-António, diz-me uma coisa. Tu chamas-te mesmo António, não chamas?


publicado por Fernando Morais Gomes às 00:16

26
Fev 11

O Rei, abúlico, olhou ao longe a megera, e não pôde deixar de suspirar, como pudera casar com aquele trambolho de maus fígados, mãe dos seus nove filhos dos quais alguns só de nome. Anã, ossuda, uma espádua mais alta  que a outra, olhos miúdos, marca de bexigas, o nariz avermelhado, assim era Sua Majestade Carlota Joaquina Teresa Cayetana de Borbón y Borbón para desgraça sua rainha de Portugal. Trazia os cabelos sujos e revoltos, cordões de pérolas e pedras preciosas pendiam dos cabelos gordurosos como cobras. A melhor forma de segurar a impetuosa esposa era oferecendo sapatos, era obcecada por sapatos, vermelhos de preferência, não se esquecia da dentada na orelha que ela lhe dera na noite de núpcias e de que ainda hoje tinha sinais visíveis. Naquele dia tinha de a informar que por ter recusado jurar a nova Constituição, as Cortes haviam decidido deportá-la para a Quinta do Ramalhão, em Sintra. Ao invés de protestar, rejubilou, maior liberdade teria longe do boçal marido e dos imprestáveis jacobinos que o manobravam como mula.

-Pois que se danem!- foi a sua resposta, D. João VI transpirava, receando-lhe as fúrias, a missiva estava transmitida, voltaria para o seu Palácio da Bemposta, ela rumaria ao seu trono de Sintra.

Carlota Joaquina chamou as açafatas e aprontou o exílio. Mais perto estaria de Marialva, vizinho em S. Pedro, e do esbelto e viril João, o caseiro por quem nutria insaciável apetite, falta de homem a sério, aquele grotesco rei no papel mas indigente na cama, apenas obcecado com comida e missas cantadas em Mafra.

João dos Santos, já para mais de quarenta, há alguns anos era visita frequente dos aposentos reais do Ramalhão, apenas interrompido durante os anos em que a Família Real estivera no Brasil. Favorito da Rainha, que o recompensava com mercês, fora pela primeira vez seduzido para mais de vinte anos antes, quando podava rosas nos jardins do Ramalhão. Um vulto de mulher e uma mão sibilina pelas costas apertando-lhe o sexo viril e logo contra a coluna dum vão nas traseiras satisfez a insaciável figura régia, feia e desenxabida mas ardente e carnívora, os seios grossos alvos apesar de tudo apetecíveis, mercês para si e para a sua família logo asseguradas. A ainda princesa, sabia ser ele o pai do príncipe D. Miguel, pois para mais de dois anos que não era visitada pelo rei, atacado por gonorreia, os físicos não conseguiam resolver, a honra e o Estado enviesavam o segredo, iria com ela para o túmulo. Carlota ficara obcecada por sexo, as sombras e enxergas do Ramalhão, silenciosas, haveriam de guardar privados vícios atrás de públicas virtudes apregoadas: João Santos, Pedro, o marquês de Marialva, o coronel Medeiros, de Lanceiros, se em política era absolutista, na alcova do Ramalhão era absoluta.

Poucos dias depois de se instalar em Sintra, o príncipe D. Miguel, a cavalo desde Lisboa, foi visitar a mãe. No pátio, João, criado, pai clandestino, cumprimentou o seu senhor, Carlota duma janela assistia e mordia o lábio com um dente, cariado por sinal, nunca aquele segredo se haveria de revelar, só ela e o encornado rei sabiam, morreria com eles. Miguel cumprimentou o serviçal, atencioso, sempre lhe agradaram os modos simples mas modestos. Era um jovem elegante, politicamente empurrado pela mãe e pelos políticos mais conservadores, também ele tradicionalista e sem grande ânimo para o poder:

-Então, João dos Santos, os seus animais? Continua a criar aqueles porcos tão gostosos?

-Faz-se o que se pode, Majestade. Ainda bem que está de volta, tantos anos no Brasil, já desesperava de o voltar a ver. E no trono, agora que o infante seu irmão ficou rei dos brasileiros…

-Veremos, veremos- gracejou o príncipe, ao longe, Carlota apreciava como os narizes dos dois eram semelhantes, saíra ao pai, o seu Miguel.

Carlota e Miguel tramavam contra a Constituição, o que conseguiram  em Maio de 1823, quando os seus partidários impuseram a dissolução das Cortes depois dos sucessos de   Vila Franca. Foi levantado o desterro da rainha e D. João foi buscá-la ao Ramalhão, conduzindo-a ao paço da Bemposta. Nesse dia, também o rei se cruzou no pátio com João dos Santos, a quem virou a cara. O caseiro, não percebia o desdém do rei, mas calculava, amante da rainha ignorava se ele sabia ou não, só as ameaças de escândalo que ela fizera o mantinham ainda ao serviço para seu bel-prazer, pelo rei já teria sido enforcado.

Pouco tempo, porém, durou a harmonia entre os esposos, porque a rainha mudou a sua residência para Queluz.

Aí, sempre rodeada do séquito de aias espanholas, entre cascatas, jets d’eau e odoríferas plantas, sempre intrigando, de quando em quando João dos Santos vinha renovar as flores e árvores no jardim. E  sorria, astuto, sempre que ocupado nas suas podas e  com as plantas nas estufas de vez em quando uma flamejante urtiga o surpreendia  envolvendo pelas costas.


publicado por Fernando Morais Gomes às 04:14

25
Fev 11

Tomada Al-Ushbuna (*Lisboa), após dezassete semanas de cerco, os habitantes de Xentra (*Sintra) fizeram oferta da guarnição do seu castelo e entregaram-se ao rei. Rendidas pois todas as fortalezas que nas redondezas estavam ligadas à cidade, foi celebrado Afonso Henriques como novo rei,  e abateu-se o pavor sobre os mouros aos quais ia chegando a notícia destes acontecimentos, tendo  sobrevindo entre eles a peste, pelas aldeias e praças, pelas casas em ruínas jaziam cadáveres à mercê das feras e aves e assustados campónios.

Afonso Henriques, chegado o Natal de 1147 achou por bem tomar posse do castelo de Sintra, tendo-se posto a caminho acompanhado de uma guarnição, que incluía Henry Glanvill e Simon de Dover, dois dos cruzados que participaram na tomada de Lisboa. Pêro Pais, seu porta-bandeira, e entendido na língua dos mouros acompanhava, como tradutor.

Logo nas imediações da vila, Xentra, assim a designavam, algumas madrassas antes dedicadas à exaltação da fatah estavam agora abandonadas à passagem dos novos senhores, infiéis da Cruz agora conquistadores. Uma delas, explicara Pêro Pais, fora mesmo o eremitério de  Ibn Becre Mauani Al-Shintari , eremita da serra da Lua e venerado lutador contra o conde Henrique, seu pai. Desse local controlavam a judiaria de S.Martinho. Na medina, antes agitada de mercadores reinava agora o silêncio, todos em casa com receio de chacina, e pilhagem, privilégio dos vencedores.

Afonso Henriques mirou o castelo, enevoado naquela manhã de Dezembro, e com a comitiva subiu a sinuosa serra, uma escolta adiantada garantia contra alguma cimitarra traiçoeira que se atravessasse ao caminho. Até aí dependente da dinastia aftássida reinante em Badajoz, de origem berbere, Xentra era um ponto elevado, dali se dominando o mar e os campos até Lisboa e Palmela. Eram umas boas centenas de metros acima da medina até à porta de entrada, chamavam os mouros ao local qala’â calaferrim, por estar num planalto, segundo o incansável Pêro, a Henry Glanvill recordava-lhe a Bretanha natal. Contudo, em vez de ruidosos habitantes ou soldados aguerridos, apenas um silêncio, cortante com o vento e perturbador, como se de uma cidade fantasma se tratasse.Afonso Henriques e seus homens entraram, de espada em riste, apenas algumas construções e uma égua solitária junto a um poço. A um canto, sentados, dois mouros idosos, um magro e grisalho, outro com uma vara de vime, cego, sentado num tapete junto à égua. O magro dirigiu-se ao novo senhor, meneando a cabeça:

-Salam’aleq, Ibn Enrik- saudou, dirijindo-se à comitiva dos cavaleiros do manto branco.

-Quem és e onde está a guarnição deste alcácer?- interrogou  na língua dos mouros ,Pêro Pais, a mando do rei. Onde estão os refik, guardiães da rábida de Xentra?

-Nada sei, nobres cavaleiros. Sou Ahmed,apenas me disseram que entregasse a chave ao conquistador de Al-Ushbuna, e assim faço- e estendeu uma chave em bronze, símbolo do castelo mouro que já anteriormente se havia rendido.

Afonso Henriques e os demais apearam-se, perto da mesquita de Fátima , agora silenciosa, o rei acercou-se da muralha e apontou uma povoação ao longe,para o lado do mar, perguntando como se chamava:

- Al-Mesjide(*),a terra da mesquita. (*Almoçageme)- respondeu o sarraceno.

A ausência de mouros  no castelo intrigou o rei, que após inspecção ao local descobriu disfarçada perto da  torre albarrã uma entrada. Aí os dois mouros ficaram assustados, tentando desviar a atenção. Afonso percebeu que lhe escondiam algo e mandou afastar a vegetação, com espadas. Era um túnel, o mouro cego parecia apreensivo. Precedido de dois cavaleiros e com os mouros sob coação de um escudeiro, entraram, munidos de archotes. A montanha parecia oca, e o caminho enorme. Fora por ali que os mouros haviam sumido, mais de uma légua a andar saindo junto a um rio e depois de um povoado designado Al-Gueirum (*Algueirão). A serra era perfurada e cheia de túneis, escavada para fugas estratégicas e mesmo até entrada de reforços, Afonso Henriques gabou a ciência dos homens de Mafoma.

Voltando ao alcácer , um caminho lateral a meio parecia desviar para uma escadaria. Aí o mouro cego, de nome Muhamad, pediu que não avançassem:

-Senhor de Al-Ushbuna, detém-te, misericordioso, ante os sagrados lugares!

-Sagrados? Só Nosso Senhor Jesus Cristo é sagrado, infiel. Sigam-me!

Ante uma algaraviada dos mouros velhos, Afonso, Pêro e Henry adentraram-se no estranho local. O mouro grisalho explicou então:

- Aqui estão os sagrados despojos do mullah de Xentra. Mas não se pode entrar, sob pena de graves maldições: hordas de demónios djins guardam o templo de ak-sherim, onde se chega pelo sura-loka, depois de 44 degraus. Ao fundo há um lago e depois…- Aí o mouro calou-se, como se uma grave revelação o deitasse a perder, perdido já estava na mão daqueles ocupantes estrangeiros.

-Depois?....-Afonso Henriques sugestionou, mas preferiu não saber, havia que lidar com os mouros para lhe arrotearem as terras, conquistada Xentra trinta cavaleiros instalariam a sua autoridade régia a partir do Arrabalde. Voltou ao castelo e rumou para Palmela, a tomar posse de novo castelo também já rendido depois da queda de Lisboa.

O túnel do castelo mouro fechou-se então. Em zona interdita,depois do lago, ficava a catedral universal do mundo de Badagas, onde  Soleiman Ha Shari, filho dum vali de Xentra  duzentos anos antes edificara um altar  junto ao túmulo de seu pai, o sábio Soleiman. Na pedra, uma inscrição há muito oculta: Allah há beri (*Realização de Deus).Era o secreto e sagrado templo dos mouros de Sintra.

Os Senhores da Cruz poupavam os Cavaleiros do Crescente, e estes lentamente nos dias a seguir retornavam ao castelo pelos túneis da Montanha Oca, a Medina pacificada ,de novo colorida e ruidosa, mouros e cavaleiros para sempre partilhando o Monte da Lua.

publicado por Fernando Morais Gomes às 10:22

24
Fev 11

Alemanha,29 de Abril de 1945.No bunker  de Berlim surgia uma nota confidencial: "O Reichsführer SS Himmler estabeleceu negociações com o Alto-Comando anglo-americano".Os efectivos soviéticos já se encontravam na Alexanderplatz e uma chuva de granadas começava a cair sobre o abrigo secreto de Adolfo Hitler. Pela uma da tarde, este, no estertor final, realizava o casamento com Eva Braun, tendo como testemunhas Goebbels e Bormann. A cerimónia terminou com um brinde aos novos cônjuges que minutos depois se retiraram para os seus aposentos, onde Gertrude Junge, a secretária lhe anotou o testamento. Doze anos de paranóia caminhavam paulatinamente para o fim.

Os soviéticos já estavam perto do abrigo onde os soldados que o defendiam do lado de fora disparavam furiosamente. No testamento, Hitler ditou “não quero cair em mãos do inimigo, que quer oferecer um novo espectáculo com o único objectivo de divertir as massas histéricas. Consequentemente, decidi ficar em Berlim e escolher, voluntariamente, a morte, no momento em que considere que a posição do Führer e a da Chancelaria não possam ser mantidas por muito tempo. Morro com a alegria no coração, consciente dos imensas realizações do nosso povo e da contribuição incomparável que a juventude que leva o meu nome deu à História” .Cumprimentou, um a um, todos os seus assistentes e almoçou com as duas secretárias e o cozinheiro. Depois, despediu-se dos outros e acompanhado por Eva Braun, dirigiu-se para o quarto, para o desfecho planeado. Uma vez fechada a porta, por uma passagem secreta Otto Gunche fê-los atravessar um corredor que dava acesso a um hospital próximo e dai os levou, disfarçados de médico e enfermeira, numa ambulância, para fora de Berlim.

 No bunker, eram três e quarenta e cinco quando no quarto se escutou um disparo, posto o que Bormann entrou no aposento acompanhado pelo criado, Linge. Um corpo, morto, estava inerte numa cadeira, um outro, de mulher, estendido num divã, a seu lado duas pistolas, uma Walter PPK, e outra menor que Hitler sempre trazia no bolso, do corpo feminino exalava um forte cheiro a cianeto.

Bormann voltou à sala onde se encontravam Goebbels, Burgdorf e outros e anunciou, solene e hirto:"O Führer está morto." Em seguida, os cadáveres foram rapidamente envolvidos em mantas e levados para fora do abrigo onde foram regados com gasolina e ateado o fogo em seguida. Hitler e uma época acabavam de desaparecer, deixando a Alemanha derrotada e nas mãos dos ocupantes.

Portugal, 7 de Maio de 1945. Berlim fumegava, destruída, os russos vitoriosos controlavam já a cidade depois da rendição total. Longe dali, no extremo ocidental da Europa, alheio a tudo, Joaquim Gregório, banheiro da Praia da Adraga, no litoral de Sintra, recolhia mexilhões para uma patuscada na taberna do Zé Patrocínio. Mar encrespado, apesar de dia claro, nada como a praia pela manhã, ainda sete horas não eram e o dia raiava, primaveril. Ao fundo, uma traineira dirigia-se para o porto da Ericeira, dolente e rodeada de gaivotas. Um vulto negro e compacto pareceu surgir junto da traineira, emergindo do mar, a idade entorpecia-lhe já a vista, era ilusão de óptica, por certo, foi até à taberna emborcar um tinto retemperador.

Junto à traineira, e longe dos olhares, um submergível vinha agora à superfície, um U-BOOT tipo XXI alemão, a suástica do Reich não deixava dúvidas. Depois de aberta a escotilha e de na traineira estranhos pescadores de gabardine e chapéu baixarem uma escada, um homem e uma mulher saíam do submarino entrando de imediato na traineira. Ele aparentava cinquenta anos, magro, cabelo cortado rente, ela algo mais nova, assustada e seguindo-o obediente. Pelo comportamento dos homens da gabardine seria alguém importante, a PIDE encarregara aqueles inspectores de uma missão secreta, de recepção a importantes dignitários alemães fugidos da guerra, nada mais se adiantando, a neutralidade do país não podia arriscar notícias de envolvimento com o Eixo.

Dali a traineira rumou a Cascais, não sem que o comandante do submarino fizesse a saudação nazi, dizendo para o homem que nunca abriu a boca  “Até sempre, mein Führer!”.As instruções eram de, após deixar o casal na costa portuguesa, acordada com o governo local, desembarcarem perto de Leixões e afundar o submergível, desmobilizando depois da Marinha alemã, cada um a um novo destino.

Com discrição, o casal foi alojado numa casa na Malveira da Serra, de longe guardada por agentes da polícia internacional de Portugal, embarcando em Agosto seguinte sob identidade holandesa e passaportes fornecidos por Lisboa num vapor com destino a Buenos Aires. Na Malveira, apenas constava serem refugiados judeus em trânsito para a América, era o que se dizia na vizinhança, nunca saíram da casa enquanto lá permaneceram.

Rio Gallegos, Argentina, Setembro de 1964. Entre consternação geral, gaúchos a cavalo escoltavam o funeral de Marcus Schoof, fazendeiro de origem holandesa há quase vinte anos radicado na Patagónia e um dos maiores proprietários locais, uma fazenda com um milhão de hectares e a melhor carne da Argentina. Muitos outros europeus, sobretudo alemães e austríacos radicados na província compareciam ao enterro. A viúva, a senhora Eva seguia atrás, numa charrette, vários dos presentes, amigos de Schoof esticavam o braço saudando em sinal de respeito. Pablo, que fora feitor da fazenda nos últimos anos lamentava com Juanita a morte do patrão, vítima de sífilis, dizia-se à boca pequena, comentando a estranha colecção de dentes de ouro que guardava num cofre, algo bizarra, mas de onde se dizia provir muito do rendimento com que adquirira a propriedade em 1945 ao chegar de Portugal. Junto a Eva, uma velha amiga dos tempos da Europa, uma senhora que fazia filmes, segundo Juanita, Leni Riefensthal, inconsolável já lhe confidenciara como quando novo e na terra dele o siñor Schoof fora um grande orador em prol de grandes causas e grande amigo dos pobres.


publicado por Fernando Morais Gomes às 09:16

23
Fev 11

Macau, 1557.A carta de D. Francisco Barreto era seca e carregava o peso da autoridade régia: Luís Vaz de Camões, Provedor dos Defuntos e Ausentes da cidade, acusado de irregularidades no exercício das funções deveria abandonar o posto de imediato, mais uma peripécia na já atribulada vida do azarado andarilho e poeta. Na verdade, jocosas redondilhas que publicara em Goa e que o governador não vira com bons olhos levavam agora ao seu afastamento, desamparado e sem dinheiro para sobreviver. Carreira para Lisboa só depois da monção, a alternativa,sobreviver numa gruta em Patane, o tempo vazio consumido a escrever em delirante entrega a história dos lusos, que quanto mais o perseguiam mais ele celebrava em verso, anos engrossando páginas manuscritas, soldado do Império pelo mundo repartido.

Certa manhã, inopinadamente, soldados do Governador acercaram-se da mísera gruta e ordenaram-lhe que os acompanhasse, o capitão do Nau da Prata queria falar-lhe.

O Nau da Prata fazia a carreira anual entre a China e Goa, Francisco Martins, seu capitão-mor carregado de valiosas fazendas detivera-se em Macau para embarque de mercadorias e da guarnição que renderia a de Goa semanas depois. Miseravelmente vestido, só com os papéis que conseguira salvar da gruta, foi levado a bordo à presença do capitão:

-Sois Luis Vaz de Camões, até agora Provedor dos Defuntos e Ausentes desta cidade?

-Sim, malfadadamente sou essa pessoa,  que me quereis?

-Tenho ordens de vos levar prisioneiro. E a ferros, ordens expressas.

-E tanta galanteria deve-se a quê, dar-me-eis a mercê de saber?

-Ignoro. Porém, se não criardes problemas poderei permitir que usufruais de liberdade a bordo.Com restrições. Olhando os papéis amarrotados que transportava questionou:

-E isso, que é? Despachos da Provedoria dos Ausentes?

-Não…-respondeu, irónico - tontarias de um português cativo…- aqueles versos, a que já dera vários nomes, agora tituladas Os Lusíadas, gatafunhos ilegíveis, não continham segredo algum, Francisco Martins deixou seguir.

A parafernália das fazendas misturava-se com o cordame e os boçais tripulantes, muitos embarcados em Macau, outros cativos. Camões encostou-se a um canto, contemplando mais um destino perdido, a sua vida de novo repartida nos barcos e enxergas do Império. Absorto no rio das Pérolas, levou tempo a perceber que não longe de si uma jovem nativa o fitava, sorriso pequeno e dócil, sentada sob uma arca com peças de seda, sozinha.

-Estais triste senhor?- perguntou-lhe a medo, sempre o sorriso frágil na pequena cara arredondada.

-A tristeza é minha dilecta companheira e a dor o meu destino.Com tais cativas musas levarei este mar de lágrimas. E vós, quem sois, jovem donzela?

-Não me reconheceis de Patane?

-Acaso pude viver em Patane sem nunca meus olhos terem ficado cativos de tão graciosa presença?...

-Muitas eram as que eram prisioneiras de vossos olhos, senhor…

-E porque nome responde tão bela flor-de-lótus-?

Camões, cativo mas incorrigível galanteador esquecia já a nau onde o haviam aprisionado para se prender agora a outros ferros que um qualquer deus do Olimpo lhe punha à frente.

-Sou Tin-Na-Men, de Patane, e viajo para Goa nesta nau.

-Tin-Na- Men…A Porta do Paraíso. Outro nome não caberia melhor em tão graciosa figura…-galanteou, beijando-lhe a mão.

Tin-Na-Men na verdade embarcara para seguir aquele azarado homem que de longe contemplava em Patane, por vezes falando e esbracejando sozinho, sempre enamorado,todas as mais belas, todas sonetos eternos e redondilhas espontâneas, elas não entendiam mas  sorriam,  cedendo à paixão do incauto aventureiro.

Uma semana passou, do Mekong ao Indico, Tin-Na-Men e Luís Vaz  envolveram-se felizes novo destino se abria para o desgraçado ex-provedor dos ausentes. O capitão-mor, de longe observava, não sem um sorriso complacente, apesar de  prisioneiro até simpatizara com o desajeitado, para mais sem um olho, perdido em combate,  irmão de armas. Goa, novo exílio era agora amenizada com a pérola de jade que deuses protectores lhe enviavam.

À terceira semana, Zeus no Olimpo decidiu mudar o rumo da viagem, as águas tornaram-se revoltas e piratas das Molucas cercaram a embarcação, mas foram repelidos, Luís Vaz ajudou. Porém, os ventos e a agitação das ondas fragilizaram o Nau da Prata. Francisco Martins mandou baixar as velas, preocupado, mas após forte borrasca, começaram a abrir fendas pelas picas e delgados da popa, descosendo-se  em vários lados e cuspindo a estopa e o calafetado. Em desespero, mandou aliviar-se a carga, fazendas e açafrão arremessados borda fora, os canhões rolando num baile perigoso, a quilha desgastada pelas muitas monções e baixos de água  em praias do Índico.No Olimpo,  Eolos soprava sobre a nau castigador.

Em desespero, o capitão-mor mandou então embarcar as mulheres num batel, uma ilha não muito longe, os homens nadariam contra o mar furioso.

No momento do embarque, Luís e Tin-Na-Men entrelaçaram as mãos, haveriam de se salvar , celebrar o seu  amor em Goa. Camões com os seus poucos pertences  foi dos últimos a saltar na águas tépida e madrasta,os versos  garatujados dentro da camisa. O pequeno batel com Tin-Na-Men e as demais mulheres, depois de desgovernado serpentear alguns minutos foi contudo impiedosamente engolido pelas ondas. A mãozinha frágil submergindo aflita foi a última visão de Luís Vaz, náufrago da vida e órfão do amor.

Em Goa a via sacra da sua desditosa vida prosseguiu, um fugaz amor lhe fora dado e roubado de forma avara pelo destino, Tin-Na-Men, a sua Dinamene ,virara princesa do mar profundo, pérola retornando à concha, pequena e alva. Solitário sobrevivente do amor  numa praia deserta daquela Goa sem sentido, a pena lacrimejante do infeliz apaixonado escrevia saudade nas areias brancas e finas:

Alma minha gentil, que te partiste

Tão cedo, desta vida, descontente

Repousa lá no Céu eternamente

E viva eu cá na terra sempre triste.

Roga a Deus, que teus anos encurtou,

Que tão cedo de cá me leve a ver-te

Quão cedo de meus olhos te levou


publicado por Fernando Morais Gomes às 14:01

22
Fev 11

Praia da Aguda, 12 de Janeiro. Um corpo fora encontrado esfaqueado no coração, sem sinal de faca ou punhal,o chão tingido de sangue. Exalava um odor forte, no ombro, uma lança tatuada, louro, mais de sessenta anos,aspecto de estrangeiro. Fernando Monteiro, inspector da Policia Judiciária contemplava o cenário, enquanto fotos eram tiradas, no local deserto apenas os agentes da GNR e a brigada dos Homicídios. Parecia ter sido torturado até à morte, sem carteira,a única pista era a lança tatuada no ombro.

Passados uns dias, a inspectora Judite, sua coordenadora, chamou-o, de urgência. Novo homicídio, desta feita um padre, na igreja de Rio de Mouro, o sacristão estava em estado de choque. Numa cura de desintoxicação alcoólica, tivera uma recaída e não resistira a beber o vinho da missa antes de fechar a igreja, quando deu com o padre tombado  sobre o altar , uma marca de punhal no coração.  No ombro, desnudado, igualmente uma lança tatuada.

-O padre é de origem belga, Janus Vertessen, e ao que parece foi ordenado aos trinta e três anos, pouco se sabe da sua vida, estava em Portugal há vinte anos- informou a inspectora, consultando as suas notas.-Não há outras testemunhas.

-E tem ligação com o crime da Praia da Aguda?

-Uma mulher do Linhó fez queixa de que um estrangeiro desapareceu sem pagar-lhe a renda  do quarto, já é uma pista!Além de que parece coisa de serial killer: duas tatuagens iguais, duas mortes com arma cortante.

-Bem, vamos ate lá.-rematou o inspector Monteiro.

A senhoria da casa informou que o tal inquilino era estrangeiro e  desaparecera há mais de dois meses, tinha sido recomendado por um amigo. Nos pertences, ainda no quarto, roupas, um relógio, e um livro de arqueologia  escrito pela vítima da Aguda ainda por identificar.Era um tal  Jasper Vertessen, de Gand, Bélgica, arqueólogo.

-Sabe onde podemos encontrar a pessoa que o recomendou?

-Sim, vive perto de Galamares,não longe de Colares.

Lá chegados, com a D.Cidália, a dona da casa, apareceu um homem de quarenta anos, grisalho.

-É o sr. João Afonso, creio? Policia Judiciária.Pode dizer-nos como conheceu o sr.Vertessen, a quem arranjou alojamento ?

-_Bem, na verdade eu não o conhecia pessoalmente. Apenas atendi ao pedido de um amigo, o António Rebocho, que é funcionário do tribunal e também sacristão na igreja de Rio de Mouro. Disse-me que o Jasper era irmão do padre que agora apareceu morto e foi ele quem o trouxe, indiquei-lhe a casa da Cidália para ficar.

-E porque não disse nada à polícia quando soube que o padre apareceu morto?

-O António disse-me que não era preciso, ele próprio diria ao padre, estava com ele todos os dias.

-Mas afinal o que aconteceu ao sr.Jasper, Afonso?- perguntou a dona da casa alugada

-Está morto.Estes senhores devem saber mais que eu, já estiveram junto ao corpo.

O sacristão, um tipo obeso e de nariz avermelhado, estava em casa, a beber, como se já esperasse a chegada dos polícias:

-_Vieram  prender-me?

_Porquê,existe algum motivo para isso?

_Não, não…

_Então diga-nos tudo o que sabe sobre o padre Vertessen e o irmão dele.

-A única coisa que sei é que a pessoa que mora nesta morada me pediu que quando vocês aparecessem lhes entregasse isto.–respondeu, sacando de um papel numa gaveta.

Era uma morada em Sintra. Lá chegados, uma velha casa no Arrabalde, encontraram a porta semiaberta e entraram, uma casa escurecida e cheia de antiguidades, parecia desabitada.

-Boa tarde, meus senhores - disse uma voz com sotaque francês, sentada numa cadeira de baloiço na penumbra - chegaram mais depressa do que eu previa, fiquem à vontade. Era um homem de uns setenta anos, cabelo branco e voz rouca, vestia um roupão de seda azul.

-Quem é o senhor? É claro que pode se reservar a falar somente no tribunal - esclareceu a inspectora.

Não se preocupem,não haverá tribunal- disse ele sentando-se de novo- estou muito velho e doente, e os meus dias estão a acabar, por isso acho melhor contar-lhes tudo, assim não morre comigo.

Servindo-se de um cognac começou a falar:

-O meu nome é George Perkins, sou americano e tal como os dois que morreram faço parte da Irmandade da Lança- e, levantando-se, sem pressas, abriu o roupão deixando à mostra uma tatuagem,  igual à do padre e do irmão, uma lança, tatuada no ombro.

- Éramos doze, como os apóstolos - continuou - Nos anos sessenta um grupo de pessoas em que eu e os Vertessen nos incluíamos, descobriu num velho antiquário em Florença a lança com que Jesus Cristo foi trespassado por um soldado na cruz . O Jasper era arqueólogo e atestou a veracidade, vestígios de sangue coalhado analisados permitiram tirar a conclusão. E o grupo, fez juramento de guardar a relíquia em segredo, tendo-a mantido em minha casa em Capri muitos anos. Mas o Jasper e o Janus traíram-nos e roubaram-na, fugindo depois.

-Estou a ver- reparou a inspectora, o velho sorvia mais um gole de cognac.

-Mas nós prometemos recuperar a lança e puni-los pelo seu acto. Só que os anos passaram, os outros foram morrendo e só restei eu.Finalmente localizei o Janus aqui em Portugal, estava em Itália quando o vi na televisão atrás do Papa quando ele  cá veio  o ano passado. Janus tornara-se padre entretanto, o safardana, e o Jasper, depois de enviuvar veio para cá  para estar mais perto do irmão. O resto já os senhores sabem, uma lança fez o seu trabalho! -rematou, terminando a bebida.

-E o sacristão, tem alguma ligação com o caso?- sondou a inspectora Judite.

-Não, é um pobre diabo, pedi-lhe apenas para vos entregar a morada a troco duma caixa de vinho alentejano, é tudo.

-Então e já agora,a lança, foi recuperada?- questionou Monteiro.

Winny fez silêncio uns segundos, sorriso enigmático e encolher de ombros. Levado sob detenção, o seu estado de saúde levou o juiz a mantê-lo em prisão domiciliária. Como ele previra, não chegou a haver julgamento, um mês mais tarde um tumor maligno no fígado ceifava o último sobrevivente da Irmandade da Lança.

Enquanto isso, em Boston, Massachussets….

publicado por Fernando Morais Gomes às 10:12

21
Fev 11

No café do Esteves, entre duas minis e uma chamuça, congeminava-se sobre a associação que se pretendia constituir, Carla e Diniz, finalistas de Comunicação Social tinham um projecto multimédia, havia que organizar, procurar fundos e parcerias, o Diogo faria um site, o Facebook facilitaria contactos. Filomeno, antigo revisor do Diário Popular aconselhava, experiência de outros tempos. O nome estava ainda em génese, mas seria sem fins lucrativos e produtora de eventos, sede provisória na garagem do Rodrigo, em Massamá. Entre os fundadores, a Mena, cantora de jazz, curso de teatro na ESTC; o Peres, adepto da permacultura; o Nicolau, poeta e letrista rapper e a Vanessa, webdesigner, filha do Esteves do café. Naquele dia discutiam-se os objectivos:

-Pessoal, isto tem de ser uma coisa diferente, é preciso estimular o livre pensamento, a ruptura,fugir das programações das câmaras, viradas para o show-off e a reprodução de modelos estafados, só para os ecrãs. Já viram que  vai a eventos se limita a absorver sem espírito crítico? Onde é que está a mudança mental? É como o cão do Pavlov, acena-se com o osso e o cão saliva- comentou o Peres, enrolando um cigarro e pedindo mais uma mini.-O problema está em mudar de osso!

-As pessoas estão adormecidas, amigo,isto com a crise as prioridades são outras...- atalhou o Filomeno, veterano, passara pelo GAC nos anos setenta, guru venerado entre a malta nova. – para fazer qualquer coisa diferente é preciso apostar nas vantagens criativas, e sobretudo, convencer quem tem o poder de decisão a criar nichos, apoiar com espaços criativos. Já viram o dinheiro que vai para as obras em telhados de sítios que só metem  pessoas de vez em quando para uns almoços?E os sítios abandonados que há por aí, bem podiam ser usados por grupos de pessoal, tipo "associações residentes, fizeram isso em Inglaterra...E potenciar a ligação entre os criadores e os agentes económicos.

O Nicolau, mais descontraído, ensaiava um rap, contorcendo o corpo junto ao balcão:

“-A malta -não -tem espaço- o espaço- não- tem-malta –o-que-poderei-eu- fazer-para os gajos convencer- o dinheiro- já não é- há é-que –berrar- bué!-é-preciso dar a volta!- revolta!-revolta!”- ia improvisando, mais tarde ensaiaria com o Mingas

Ao balcão, o Adriano do talho, com um olho no Esteves e outro na conversa, fazia um aparte irónico:

-Se fossem mas era tomar banho…. Isto è malta que quer é viver à sombra da bananeira, amigo Esteves, cantem mas é um fadinho, ou coisas que o povo goste!- comentava em aparte, mais um rissol para o caminho.

-E depois é sempre a mesma coisa, só dificuldades! Se se organiza uma festa para angariação de fundos, vem a GNR e fecha, multas para cima do pessoal, há sempre uns anónimos a chamar por causa do ruído ou da licença. Na rua, nem pensar, os bancos não apoiam  a cultura, é mais fácil dar um milhão ao Mourinho…-rematava o Diniz. – Portugal está muito mal frequentado...

Geração recibo verde, outros nem verde, tentavam dar a volta, a princípio parecera fácil, mas eram só dificuldades, apesar da  associação na hora, até para o telemóvel era preciso fundo de maneio, a Câmara alegava cortes orçamentais, o centro de emprego, que antes apoiara estágios remunerados cortava-se agora.

-Então e a hipótese dum espaço no Museu Berardo? Aquilo agora está meio parado…- ainda sugeriu o Diniz-Aqui há tempos li que em Helsínquia  apoiavam uma espécie de laboratórios de eventos, tipo cluster, porque não uma coisa parecida, com tanto edifício industrial em ruínas, uma pintura e electricidade e já era um ponto de partida...

-Já tentámos, mas é tudo para alugar- atalhou o Filomeno, já lá estivera- sabem como é, no money, no funny.

A noite ia chegando, as minis acumulando, só a página do Facebook avançava. Amigos prometiam um concerto de recolha de fundos,colunas emprestadas, umas grades à consignação, havia que tentar, o Filomeno tinha um amigo no LXFactory que emprestaria os audiovisuais, a Mena e a Vanessa poriam à venda artesanato e uma sangria de frutos silvestres, fizera sucesso em Óbidos uma vez.

-Sintra está morto, rapazes- lá interviu o Esteves, a filha no grupo criava-lhe a obrigação de opinar- Quem tem dinheiro, quer é ir a sítios para ver e ser visto,coisas que desviem a cabeça dos problemas, um leitão em Negrais, futebol- elencava, conformado- o que vocês fazem, vão ver  vai ser sempre para os mesmos dez, e é se não se chatearem uns com os outros até lá!- aconselhou, repondo o balcão com guardanapos, o grupo na mesa do canto googlando no portátil.Na televisão em frente anunciava-se  um casting para um programa de novos talentos.

-Olhem, estão a ver?- rematou o Diniz- o único caminho que se oferece  é este, o do sucesso sem trabalho para  cinco minutos de fama. O resto está minado. O pessoal não está anestesiado, está é a entrar em coma .Mas como dizia o outro, só é derrotado quem desiste de lutar!

O Filomeno, velho compagnon de route de muitas utopias concordava, repescando triunfal uma velha máxima dos seus tempos de anarca:

-É assim mesmo!O medo de ser livre provoca o orgulho de ser escravo!- rematou, seguido dum brinde geral com as minis,no portátil lá foram construindo o site, na net ao menos haveriam de existir. Geração Deolinda, ou ainda não?


 

 

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publicado por Fernando Morais Gomes às 09:26

20
Fev 11

Reprovado em Direito no segundo ano, em Março Artur Baleizão fora incorporado em Santarém. Cavalaria, o ramo onde é uma besta por cima e outra por baixo, dizia o avô, veterano da I Guerra. A viagem desde o Alentejo até nem era longa, mas a perspectiva de África mais tarde não o deixava tranquilo. O pai já falara com o capitão Maia, também ele de Castelo de Vide, mas o envio para o Ultramar  finda a recruta era ainda incerta, as coisas estavam acesas na Guiné desde que o general Spínola saíra de governador e editara um livro que deixara todos nervosos. Na véspera da incorporação tinha havido incidentes nas Caldas, nunca se percebera o quê, mas para ele, jovem miliciano, que nem os atacadores aprendera  a  laçar, com espinha bífida e óculos graduados,  estava como papagaio em capoeira de galinhas, solha frita às quintas-feiras e o  alucinado do Carvalho a ressonar e  fazendo camas à espanhola na caserna.

Nessa quarta-feira a ordem de recolher foi às nove, como habitual, antes escrevera a Mariana que o aguardasse  em Lisboa no fim-de-semana para irem ao teatro, talvez um copo no Jamaica com o Tiago e a Ângela depois.Na quinta de manhã haveria instrução de tiro e sapadores, ainda lhe doíam as pernas do cooper da véspera, vida estúpida para quem não queria seguir carreira, de farda parecia um pinto calçudo, alvo de gozo no comboio.Não conseguiu dormir logo, na messe dos oficiais havia barulho ainda,copos pela certa, o Passos, instruendo como ele estava de serviço, esperaria por ele para um cigarro na caserna, só a luz de presença estava ligada ainda. Aí pelas onze e meia o segundo-comandante, furibundo, atravessou a parada, estaria a fazer a folha a algum, por certo, Cavalaria não é mole, e Santarém era a elite. Parte dos milicianos seguiria para o contingente NATO, Tancos ou Santa Margarida, outros para África, Nambuangongo apesar da pouca informação parecera  coisa séria.

Pela uma, o Passos tardava, uma algazarra soou na parada, o tenente Barbeitos, a gritar na  porta da caserna e a mandar formar em dez minutos. Nova praxe aos maçaricos, pensou, enfadado.

Todos formados, foi então comunicado que sairiam para uma missão urgente, em Lisboa, os comandantes de esquadrão todos em consonância, o comandante e o segundo ausentes, porém. Recruta não discute, Lisboa ida e volta na mesma noite, mais uma praxe a caminho.Ordem de equipar o M-64,G-3 municiada, duas rações de combate por homem, até parecia  uma guerra a sério, pensou, lembrando a guerra do Solnado, várias vezes aquele folclore lhe parecera obsoleto e teatral, havia que aguentar,antes Lisboa que Bissau.

No meio do reboliço, descortinou o capitão Maia, seu patrício, de camuflado, agitado no gabinete do oficial de dia, falando com dois graduados. Depois de ordenar sentido, falou às tropas na parada:

-Homens! Se bem que ainda não tenham a recruta completa, a vossa destreza vai ser posta à prova! Temos uma missão a cumprir esta noite: ir a Lisboa e controlar o acesso a vários locais, Banco de Portugal, Rádio Marconi e Terreiro do Paço entre outros. Esta missão visa  demitir o governo que tarda em arranjar soluções para os problemas inadiáveis do nosso país! Quem estiver contra dê um passo atrás!

O que parecia mais uma praxe  era afinal coisa séria, um golpe militar, que fazer? Por um lado, a política pastosa que o atirara para a tropa causava-lhe repulsa, mas e se falhassem, mal tinha feito instrução de tiro, o presídio de Elvas poderia ser o fim certo para a excursão nocturna. Ninguém deu passos atrás.

Um oficial correu entretanto a falar ao ouvido do capitão Maia:

-Está tudo em marcha, a senha foi confirmada via Romeo, tudo Oscar Kilo!

-Óptimo!- e saltando para um Chaimite,  avançou para a primeira das viaturas já alinhadas,direito à porta de armas, passava das duas da manhã, nessa noite não haveria camas à espanhola.

Um esquadrão com dez viaturas blindadas e outro com cento e sessenta homens, doze viaturas, duas ambulâncias e um jipe saía amotinado a caminho de Lisboa. Tudo era confuso mas estimulante, Artur e Passos cochichavam, no Chaimite,com sorte nessa noite ainda tomariam um copo em Lisboa.

A entrada na cidade foi pelas cinco e meia, um polícia no Campo Grande olhou a coluna mas não ligou, manobras por certo, não houvera nenhum alerta. O Passos e o esquadrão dele foram para o Banco de Portugal, Artur e o grupo do capitão Maia posicionaram-se no Terreiro do Paço, passavam já carrinhas com fruta e legumes na direcção do Cais de Sodré. Salgueiro Maia, sem grande oposição até então, contactou um misterioso Posto de Comando, dando conta da situação:

-"Informo que ocupamos Toledo (T.Paço), Bruxelas (Banco de Portugal) e Viena (Rádio Marconi). Diga se escuta!

-Afirmativo!- ecoou uma voz metalizada do outro lado.-Papa Charlie no controlo!

As coisas pareciam correr bem, sem reacção, até um comandante da PSP veio oferecer ajuda, descongestionando o trânsito. Com o amanhecer passavam os primeiros carros, o 28 para a Graça cruzara já a praça, surpreso com o aparato militar. Artur aproveitou para se dirigir ao capitão Maia:

-Meu capitão, vamos dar cabo do Marcelo e do Tomás, não vamos?

-Podes escrever, Artur, temos de pensar nos nossos filhos e em Portugal! Esta é a nossa hora!- sorriu, pondo-lhe a mão no ombro. Apesar de sereno, o ar era cansado, aparentemente nenhuma coluna mais viria para ali, doze blindados com recrutas maçaricos  contra um  Império que parecia não dar resposta.

Já chegando funcionários dos ministérios, alguns poucos oficiais afectos ao governo surgiram então a desafiar  os  homens, chegando a aquecer o ambiente com a gritaria do major  Ferrand de Almeida, em cima dum blindado, a recusa dos seus homens em atacar os camaradas de Santarém fez passar os Panhard da coluna dele para o lado destes. Artur regozijava agora, a farda verde  de que fizera chacota tornava-se agora símbolo de galhardia, verde-esperança, não mais verde-feijão.

Pelo meio-dia, à medida que notícias de outros locais da cidade chegavam, as pessoas invadiam as ruas, apesar dos apelos na rádio,com um frémito na espinha viu a Mariana a acenar de lágrimas nos olhos,perto da R. do Arsenal, o copo no Jamaica no sábado chegaria por certo mais cedo, recruta-herói em saída nocturna de quinta-feira. Um beijo soprado de longe era o selo do sucesso.

Alucinantemente os acontecimentos sucederam-se, as pessoas a sair às ruas, saudando e oferecendo cigarros, a deslocação da coluna para o  Largo do Carmo , aclamada, o abraço ao Passos e aos camaradas do esquadrão , uma florista no Rossio a oferecer-lhe um cravo, logo guardado para Mariana.

Passaram muitos anos, o orgasmo colectivo daquela quinta-feira em que falhou a instrução de tiro, mudou o país de forma avassaladora e definitiva. Ainda hoje, advogado em Castelo de Vide, não passa um dia que Artur não deixe uma flor campestre na soleira da casa onde o capitão Maia nasceu, largando uma melancólica lágrima ao lembrar da madrugada chuvosa em que um punhado de jovens recrutas saíu da caserna à pressa para um encontro marcado com a História.

 

 

 

 


publicado por Fernando Morais Gomes às 02:40

19
Fev 11

Pedro Alcobia era um dilecto filho de Sintra. Pároco de Colares em 2013 e bispo em 2017 em 2021 ascendera a cardeal-patriarca de Lisboa, com página no Facebook e homilias no You Tube, a Igreja em download ao clique de um rato. Controverso, defendia que Deus é mãe e não pai, convicto que não se devia combater os cataclismos, vontade divina que poder algum deveria deter. Crente nas alterações climáticas como sinal do fim dos tempos , intransigente com o celibato e o preservativo, publicara mesmo um livro atacando o antigo Papa Ratzinger,que apesar de doutrinador rigoroso cometera o pecado de cedência perante a opinião pública agnóstica e massificada.

Estava pois à medida do Vaticano. Avesso aos políticos portugueses, as suas homilias  na Sé eram gongórico pedaço de retórica, elogiado assiduamente pelo Osservatore Romano e em Lisboa muito atacadas pelo Partido Radical, que reunia os antigos comunistas e bloquistas, fundidos em 2016, sob a liderança de Ana Drago.

Foi assim que em 2022, depois do falecimento de João XXIV, o ruandês Joseph Kizomba, vitimado pelo HIV, o seu nome começou a circular nos corredores da Cúria como papabile, o cardeal Pescatore, de Milão, apostava mesmo nele em SMS  e mails mandados aos membros do Colégio Cardinalício que lhe respondiam com enigmáticos smileys.

Passadas as exéquias por Kizomba, começaram as reuniões conspiratórias, os chineses queriam um Papa asiático, os americanos apostavam em  John Scottdale, cardeal do Texas e administrador do Banco do Vaticano, com ele o rating da Santa Sé subira, Deus ajudava  valorizando as cotações do Nasdaq, principal fonte de receita da Cúria. Europeus e latinos preferiam o português, paladino da pureza dos princípios e punidor dos desvios claudicantes.

No dia da abertura do conclave o cardeal Alcobia levantou-se às sete, orou e leu os mails, antigos paroquianos  do Mucifal enviavam incentivos a que o seu pastor se sentasse na cadeira de Pedro. De seguida, juntou-se aos demais eleitores na missa Pro Eligendo Papa, em S. Pedro, para depois em procissão se dirigirem à Capela Sistina, e dar início à eleição, o Espírito Santo iluminaria cada cardeal.

Alcobia interiormente ambicionava o lugar. Místico, queria devolver Deus a um mundo profano, assolado pelo hedonismo e secularizado. Adepto da selecção natural, para si o deus da paz também o era da guerra ao ateísmo e aos inimigos da Igreja, descrentes que   conduziam o mundo global a partir de Pequim, a potência mundial desde que a União Europeia acabara em 2020. Já na Capela Sistina, olhou Deus criando o mundo no azul celeste do fresco de Miguel Ângelo, e viu-se a si no topo, anel do Pescador no dedo, a Nova Cruzada salvífica e mundial em embrião. Todos já sentados, o camerlengo, solene, proferiu o ritual Extra omnes. Era o momento para que todos os estranhos abandonassem a Capela Sistina. Vítor Godinho, o secretário do cardeal, aguardaria no gabinete, Alcobia dera instruções.

Depois dos rituais, votaram primeiro os cardeais mais idosos, depois os demais. O primeiro escrutínio deu 45 votos para o cardeal de Xangai, 35 para o de Lisboa, 7 para o de Palermo. O chinês sorria, o lobby asiático funcionava, pensou, rezando e simulando humildade perante o resultado. Como não foi concludente, os votos foram queimados, era negro o primeiro fumo na Capela Sistina. Nas três votações seguintes, o mesmo, o primeiro dia terminou sem que Roma conhecesse o novo Papa. Nesse período, entretanto, misteriosas e apocalípticas mensagens surgiram nos aposentos dos cardeais eleitores, referindo “ É Pedro o herdeiro de Pedro, Peregrino da Cruzada”.

No quarto dia, em silêncio, repetiram-se os procedimentos. Já havendo conversado entre si sob pseudónimo no Facebook,os cardeais decidiam finalmente. Lidos os votos, Pedro Mendes Alcobia, antigo padre de Colares e Cardeal-Patriarca de Lisboa recolhia os dois terços necessários, o Espírito Santo iluminara os corações dos eleitores, Alcobia, de olhos cerrados, sorria, perante o sorriso amarelo  do cardeal chinês. O Cardeal Diácono foi até ele e perguntou-lhe, solene:

- Reverendo Cardeal, aceitas a tua eleição canónica como Sumo Pontífice?

- Aceito, em nome do Senhor- respondeu, depois de segundos simulando indecisão e sacrifício.

- Como queres que te chamemos?

-Pedro. Pedro II.- anunciou, sem hesitações.

A escolha do nome provocou um arrepio na sala, seguido do silencioso acto de obediência, com os cardeais prostrando-se e osculando-lhe o pé direito. Fumo branco saía agora da chaminé, para gáudio dos fiéis em S. Pedro. Meia hora depois, o filho de um desenhador da Câmara de Sintra e de uma operadora de call-center tornava-se o 268º Chefe da Igreja Católica e Vigário de Cristo na Terra. Em S. Pedro, apinhado de gente, urbi et orbi o cardeal de Varsóvia proclamava o novo Papa:

-Annuntio vobis gaudium magnum: Habemus Papam!Eminentissimum ac Reverendissimum Dominum Petrus, Sanctæ Romanæ Ecclesiæ Cardinalem qui sibi nomen imposuit Petrus Secundo.

Pedro Alcobia olhou a multidão e abençoou-a, solene, uma trovoada súbita e molhada tombou tonitruante dos céus de Roma. Em Colares, onde a multidão eufórica se juntara frente à Adega Regional, Virgílio Penaguião, blogger de temas esotéricos, interrompendo o post sobre os plátanos  e aumentando o volume da televisão correu apreensivo a buscar um livro na estante da sala. Uma antiga profecia atribuída a S.Malaquias, bispo irlandês do século doze,falava de Petrus Romanus,o último dos Papas, que iria "alimentar suas ovelhas em muitas tribulações" e no "dia da perseguição final ".

Enquanto em Roma debaixo de borrasca diluviana Pedro Alcobia era aclamado pela multidão,  os telejornais  em emissões especiais  noticiavam o lançamento selectivo de mísseis balísticos a partir de Pyongyang , um destruíra já o USS Obama, porta-aviões americano estacionado em águas das Filipinas. Os dias da ressurreição estavam a começar.


publicado por Fernando Morais Gomes às 11:26

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