Poeirentas e ruidosas, assim achou Lady Jackson aquelas quatro carruagens rebocadas por uma locomotiva, o tal Larmanjat onde desde as portas de Lisboa iria visitar a recomendada vila de Sintra naquele Maio de 1873.A viagem duraria cerca de duas horas, com duas paragens, para descanso e abastecimento de água, 550 reis o bilhete em 1ª classe. O mecanismo assentava numa via constituída por um só carril, ladeado por duas passadeiras de madeira distanciadas alguns centímetros do carril central. Para tornar o conjunto estável, tanto o carril como as passadeiras, estavam pregados a travessas, por meio de cavilhas de ferro. As locomotivas bem como as carruagens e os vagões estavam munidos de rodas centrais e laterais, rodando umas sobre o carril e outras sobre as passadeiras. Ideias de Saldanha, que vira uma coisa parecida em França e a introduzira por cá em 1871.
Catherine, Lady Jackson, viúva do Cavaleiro Sir George Jackson rendera-se recentemente à literatura e vinha em busca da fair Lusitania, Maio o melhor mês, por causa da poeira, havia recomendado em Paris o seu editor. No embarque, em Lisboa, observou os demais viajantes da primeira classe, seis ou sete no total, um inglês, Mr. Galway, botânico de Durham, Cosette Mignon, corista numa revista da R. dos Condes e um acompanhante, mais velho, M.Vendôme, um jovem médico português, Gregório de Almeida, com consultório em Sintra, segundo apurou, e os príncipes Cyrllovitch, Vladimir e Maria, de visita a Portugal, seriam hóspedes em Sintra da condessa d’Edla. Uma carruagem posta à disposição em Lisboa fora dispensada, queriam conhecer Sintra naquela maravilha do progresso. As outras carruagens transportavam os criados, colarejas, e soldados colocados no Paço de Sintra, nem sempre cheias, o medo dos descarrilamentos ainda afastava muito povo temeroso daquela máquina infernal.
Lady Jackson, vistosa viúva, remetida a criada para a 2ª classe socializava com os demais, o cheiro intenso do perfume barato de mademoiselle Cosette arrancou-lhe um sorriso amarelado, classes baixas, pensou, o acompanhante segurava-lhe a mão, mas mais parecia um pai que marido, uma amásia, por certo com um talhante rico. Já o médico português parecia simpático, curso recente, ultimava o consultório, nem sempre os doentes seriam muitos, umas galinhas para canja e couves de Almargem compensariam nos primeiros tempos.
Com os príncipes pouco falou, não falavam nenhuma língua civilizada, uma vénia discreta e pouco mais. O mais falador era Mr.Galway, ia em visita ao wonderful palace do seu conterrâneo, Mr. Cook, agora visconde de Monserrate, a fama dos jardins mais belos que a Babilónia tiraram-no do Surrey, aventurando-se nestes confins da Europa. Era um fala barato, duas malas acastanhadas como bagagem, o nariz avermelhado rematado por umas lunetas redondas caiu nas graças de Lady Catherine.
O countryside era gorgeous, de campos e vinhas, paisanos com barretes montados em burros, as mulheres trabalhando no campo, uma só estrada esburacada entre a capital e aquele resort, agora famoso depois que o Rei-Viúvo e a morganática condessa por lá passavam a maior parte do tempo. Ao fim de uma hora de viagem, faziam a primeira paragem, num sítio poeirento chamado Porcalhota, apeando-se para uma pausa de trinta minutos, Catherine chamou Maude, a criada e tomou um deslavado capilé que aguadeiros vendiam saídos não se sabe de onde, gente dos campos vendia cestos e atoalhados, queijadas e fruta fresca. Os demais também se refrescavam, deambulando pelas imediações, uma árvore frondosa servia de sombra antes da chegada ao destino, mais uma hora de viagem, pela noite Sintra refrescava, felizmente, haviam-lhe dito em Lisboa.
Regressados à carruagem, só M. Vendôme tardava, a comprar fruta a uma colareja, para dessedentar son petit chou perdida naquela casbah poeirenta. Mr. Galway comprara um cesto de vime a um camponês, muito étnico e útil, comentou, transportando-o para o seu lugar. No lugar contíguo ao de Lady Jackson, a princesa Cyrllovitch estava contudo subitamente irritada, pronunciando umas algaraviadas com o marido, este chamava um valete que seguia na 2ª classe, depois de alguma agitação, que atrasou a saída do Larmanjat, sabia-se que a maleta com jóias da princesa desaparecera, particularmente uma gargantilha de ouro, trazida particularmente para a recepção que D.Fernando e a condessa Elise dariam em sua honra no Chalet da Pena. Não havia polícia próximo, meio caminho entre a capital e Sintra. Mr. Galway, chocado aproximou-se, limpando o suor com um lenço:
-Que coisa horrível! Como é possível que duma carruagem onde só cavalheiros e pessoas de bem viajam aconteça uma coisa destas. Nem em Constantinopla, I say!
Catherine aproximou-se da princesa, Cosette e M. Vendôme ajudavam a reconstituir os passos de todos após a carruagem se ter detido, a não ser que algum larápio tivesse passado da 2ª classe, de cuja porta separadora e passagem interdita o revisor nunca havia saído, só daquele grupo poderia ter saído o ladrão. Intrigada, perguntou ao médico se vira algo, este, macambúzio e enterrado num tratado de farmacopeia nada vira, só queria chegar a Sintra, o burro para o Arraçário ainda levaria um bom par de minutos. Lady Jackson reparou então que Mr. Galway com as pernas tentava encobrir o cesto de vime comprado minutos antes, parecia nervoso.
-Mr. Galway, com medo que lhe roubem a preciosidade egípcia?- ironizou, sagaz.
-Well, eu…, não, não Lady Jackson, foi por certo lapso dos seus olhos, a claridade do sol destes países do Sul altera a sensibilidade da vista, sabe, eu…
-O senhor roubou as jóias da princesa, n’ést-ce pas?- atalhou M.Vendôme, apontando-lhe a bengala e quase o encurralando contra a janela.
-What?How dare you!- Galway , já avermelhado, ruborizava.
-Un moment!Sou Claude Vendôme, da polícia francesa, messieurs- apresentou-se, tirando o chapéu,- esta é a minha colaboradora, mademoiselle Nadine, e este senhor frente a nós é nada mais nada menos que Walter Pickwick, conhecido ladrão de jóias inglês, desde Paris que lhe vimos no rasto!
Todos pasmaram, até o Dr. Gregório suspendeu a leitura do compêndio,aquilo parecia melhor que teatro da R. dos Condes, pensou. Vendôme pegou no cesto de vime, com tampa, e abrindo-a, entre dois livros sobre flora mediterrânica, lá estavam as jóias. A princesa suspirou enquanto o valete do príncipe Cyrllovitch, vindo da 2ª classe de imediato deteve o larápio com uma arma.
-Mas como pode aperceber-se de tudo, caro senhor?- perguntou o príncipe Vladimir- se saímos todos ao mesmo tempo?
-Aí é que está, Excelência. Quando saímos vi que o senhor Galway discretamente ficou para trás e num ápice sacou das jóias e lançou-as pela janela para um lado descampado, do lado oposto ao da gare. Uma vez lá fora, comprou o cesto, recolheu as jóias discretamente, e entrou ao mesmo tempo que os outros, com o souvenir na mão, dando a ilusão de sempre ter estado junto com o grupo. Ninguém suspeitaria! Ele já desde Lisboa sabia desta visita a Sintra e é conhecida a riqueza das jóias da princesa, a suposta amizade com monsieur le vicomte du Monserrate afastaria qualquer suspeita sobre si!.
- Mas diga-me, senhor Vendôme, como soube que ele tinha as jóias consigo?- questionou Lady Jackson
-Quando saímos, segui-o, com a desculpa que ia comprar fruta para a Cosette- alias Nadine- vi-o recolher a caixa com as jóias e ainda ter tempo de tomar um capilé de limão junto com os outros, voilá!
-Fruta que não chegou a comprar, pois não, senhor Vendôme?..- Lady Jackson, perspicaz, também desconfiara da identidade do polícia, a dita fruta não chegou à carruagem, ela é que devia estar na polícia, pensou.Vendôme sorriu e encolheu os ombros, ninguém é perfeito.
Em Sintra, onde D. Fernando e a condessa d’Edla esperavam os príncipes, Galway,aliás Pickwick, foi conduzido à cadeia comarcã, mais tarde seria transferido para Lisboa e depois Paris, escoltado por Vendôme e Nadine. Lady Jackson, passadas as peripécias, lá se deleitou com a verde Sintra e seus pitorescos vales. Mais tarde deixaria as suas impressões num livro, o seu editor entregaria a um tal Camilo Castelo Branco a tradução da versão portuguesa. Gregório de Almeida veio a ser um dos mais respeitados médicos de Sintra, pai dos pobres e filantropo. O Larmanjat, esse, ainda durou doze anos, logo substituído pelo caminho de ferro, rasgando a planície e dolente parando em gares onde empoeirados viajantes se saciavam com capilé de limão e comprando coloridos cestos de vime.