por F. Morais Gomes

01
Fev 11

Junto ao coreto,em Colares, Rogério aproveitava o sol de domingo para passear com o pequeno Fábio ,que brincava divertido com um boneco do Homem Aranha. Como todos os domingos, era “dia do pai”, pais divorciados  passeando  filhos no dia ajustado, domingos e quinze dias nas férias, ocasião para convívio, família em part time. Na igreja contígua, alguns fieis assistiam à missa das dez, o sino tocara a convocar os crentes, algumas “tias” a marcar presença antes do body pump no ginásio,depois o mercadinho de Almoçageme.Ateu por teimosia, apesar de baptizado e ir à missa até aos doze, afastara-se da igreja desde novo, apenas comparecendo para os inevitáveis casamentos e funerais, vincando um agnosticismo militante, as riquezas e luxo da Igreja e do Papa e a falta de fé a alimentar discurso contra a hipocrisia farisaica.

Da rua da Sociedade e na sua direcção descia agora o Jorge,amigo de infância, a bica matinal e a leitura da “Bola”, aí estava a sua missa de domingo, antes de correr outras capelas, tintas e brancas:

-Então, Rogério, está aí um dia e peras! Não vais à missa confessar os pecados? Olha que sendo do Sporting era melhor ires, aquilo lá já nem com rezas lá vai!- provocava, benfiquista empedernido.

-Já sabes o que eu penso do assunto, não vale a pena insistires. A religião é a maior mistificação de todos os tempos, vê lá a inquisição, e o luxo do Vaticano. …

-Não sejas assim que um dia ainda te arrependes. Além do mais a missa não faz mal a ninguém, só vai quem quer.

-Agora. A religião só serve para adormecer as pessoas, foram séculos de obscurantismo. E depois a retórica quanto ao sexo. Cada padre, cada safardana! .Até te digo mais: como é que alguém que nunca casou pode celebrar casamentos e  falar de procriação? É a velha história, faz o que eu digo, não faças o que eu faço.

A manhã ia passando,  os fieis da missa das dez dispersavam já , o padre Miguel  cumprimentava  os paroquianos no adro, antes de correr a  encomendar a alma do velho Vicente no cemitério.Depois dum café com o Jorge,Rogério pensativo e sem pressas deambulava no largo fumando um  cigarro e observando as brincadeiras do filho: a sua vida estava a recompor-se com a Mila ,ao almoço levaria o Fábio ao McDonalds para o semanal BigMac com batata palha , pela noite, depois de o levar à mãe ,veria o Sporting na casa do Zé, sem presidente e sem Liedson, perdera interesse, mas lagarto é assim, nasceu para sofrer.

Dos lados da Sociedade descia agora solto um Huski branco, brincalhão, rodopiando no largo, o olhar vivo dos cinco anos do Fábio logo atraído por aquele cão esquimó, e correndo para ele, as crianças e os cães entendem-se sempre. Mila ligava entretanto a saber deles e Rogério afastou-se para ouvir melhor .Já se prestava a desligar quando o ruído brusco de uma travagem quebrou o silêncio no  largo, atraindo o Jorge e outros clientes à porta do café, até o JP ensonado assomou à janela. Rogério, curioso, foi ver o que era,e  a poucos metros deparou com o pequeno Fábio  inconsciente e sangrando com abundância, o Huski excitado ladrando a seu lado, as hortaliças e nabos projectados pela travagem do Ti Barbas espalhados pelo chão.

Lívido ,debruçou-se sobre o filho, o choque fora frontal, sangue na cabeça, fractura exposta na perna esquerda.O  INEM,chamado, hesitava em evacuar o paciente com medo de sequelas e tentava a reanimação no local, as sirenes da ambulância silenciando as badaladas das onze no campanário da igreja. A reanimação tardava, entrara em coma, frisou o médico com preocupação estampada, o choque fora frontal e  a cabeça batera com força na calçada. A mãe do Fábio, chamada,chegava entretanto, abrindo caminho aos gritos e querendo abraçá-lo, mas logo apartada por Rogério,também apreensivo.

O médico receava o pior. A pulsação estava débil, o rosto esbranquiçado, manchas de sangue pintavam os caracóis loiros do pequeno Fábio, Rogério em aflição rodopiava, fazendo figas para que tudo corresse pelo melhor. O padre Miguel, regressado do enterro ,oferecia a sacristia, mas o médico desaconselhava a remoção do paciente. Rogério e Lena, apesar do divórcio recente amparavam-se agora impulsivamente, o amor que um dia frutificara naquele pequeno ser fora o melhor dos seis anos de casamento, o destino  prestava-se agora a apagar avaro essa página das suas vidas.

Rogério, abúlico, frente à igreja, pedia que o temível desenlace não sucedesse, porquê a ele, uma lágrima correu-lhe pela face observada da fresta da sacristia pela velha Genoveva.Com o telemóvel na mão corria a lista de nomes e vendo a quem pedir ajuda, até um curandeiro naquela hora serviria, como é  etéreo fazer planos quando um clique pode abater negrume sobre a existência precária. Ligara ao dr. Sousa, neurocirurgião e amigo da mãe, ao Borges, do hospital de Cascais, todos desligados, tentava já o dr. Nogueira, quando Lena o chamou, excitada,Fábio finalmente dera acordo de si, a mão mexera, meio estremunhado  abrira os olhos perguntando pelo  cão para brincar. O  destino mudava de rumo e  a morte passava ao lado, por esta vez,todos felizes  a evacuar o ferido agora. Rogério serenou o espírito e de carro seguiu atrás da ambulância, o pior parecia ter passado. Antes de ligar a ignição, olhou fixamente o campanário em silêncio, e arrancou, a vida devolvida, o sol  radioso no céu de Fevereiro.

Ao fundo do altar, já a Genoveva colocava flores frescas para o casamento do meio-dia, o rosto em talha do crucificado mais conhecido do mundo parecia sorrir mirando o largo.


publicado por Fernando Morais Gomes às 15:05

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