por F. Morais Gomes

03
Fev 11

Sintra, Centro de Emprego 7h40m.A fila a tomar forma,procissão  renovada,suplente da vida, primeira senhas não primeiras escolhas,mais dois chegando,estreita oportunidade,fila estreita.Curso acabado, estágios gratuitos, licenciatura em estágios pela frente, Rita,mais duas,um som no auricular,a acordar:

Sou da geração sem remuneração

e não me incomoda esta condição.

Que parva que eu sou!

7h50m.Doze,quinze,dezasseis,Alberto,despedido,licenciados, sem licença ainda, faz frio, há que esperar, primeiros na fila,não  na escolha,arrefece.

Porque isto está mal e vai continuar,

já é uma sorte eu poder estagiar.

Que parva que eu sou!

8h00m-Abrem-se as portas, candidatos sobreviventes avançam para os  sobreviventes  escutando candidatos, primeiro emprego segundo andar, subsídio, vai acabar, vaga em Arruda, alguém quer? A fila avança,a vida não avança.

E fico a pensar

que mundo tão parvo

onde para ser escravo é preciso estudar.

8h50m-Zombies na sala, impresso na mão, e porque não levantados do chão? Surdina em silêncio, não se ouvem mas estão,sorriso adiado, filho por fazer,um prego ao jantar,a reforma da mãe,ah! mas liberdade. Facebook, cinquenta comentários,protesto em download,enredados na rede.

Sou da geração ‘casinha dos pais’,

se já tenho tudo, pra quê querer mais?

Que parva que eu sou

9h20m.A fila a dissipar fora, a engrossar dentro, fora da vista menor o tormento,dali para o café, o sofá em casa, de novo café, de novo sofá, duas semanas e novo regresso,carimbo novo, passaporte para o  limbo, novas oportunidades, será a oportunidade?. A sala em coma e a música sem auricular agora, invasora, desafiadora, a sala amorfa do centro do desemprego pareceu mexer, que fazer?

Filhos, maridos, estou sempre a adiar

e ainda me falta o carro pagar

Que parva que eu sou!

9h40m. Despachados finalmente, tudo como dantes, quartel em Abrantes, regressar, lutar, desistir, fugir? Amanhã,tarde para ter um passado, demasiado cedo para desistir do futuro. No casting do emprego a espera por uma operação triunfo.

E fico a pensar,

que mundo tão parvo

onde para ser escravo é preciso estudar.

Sou da geração ‘vou queixar-me pra quê?’

alguem bem pior do que eu na TV.

Que parva que eu sou!

Sou da geração ‘eu já não posso mais!’

que esta situação dura há tempo demais

E parva não sou!

Sintra, 7h 40m,Centro de Emprego, nenhum emprego no centro. Novo dia, monotonia nova,frio chegará a aquecer?

 


publicado por Fernando Morais Gomes às 10:17

S.Pedro de Penaferrim, 1882.Naquela tarde de 12 de Setembro o Verão ia-se esgotando em derradeiras résteas de sol sobre a esplanada térrea da antiga gafaria, logo o vento açoitante pela noite varreria S. Eufémia e o Arrabalde. Acometido de doença pulmonar, Rodrigues Sampaio, antigo Presidente do Ministério, definhava moribundo na sua casa de Sintra.Os médicos, cépticos, faziam o que podiam, mas a febre e o delírio apossavam-se  já do doente, pneumonia adinâmica vaticinara o dr.Telles.

A rondar os setenta e cinco anos, o “Sampaio da Revolução” como amigos e detractores o conheciam, mantivera até ali o vigor rebelde de homem de causas. Jornalista mortífero, maçon empenhado, amante dos prazeres da mesa, fora um liberal encartado, apesar de destinado aos altares. Porém  tempos  duros e exigentes foram aqueles que chamado a chefiar o governo  dum país ingovernável suportara meses antes, zurzido de todos os quadrantes, como aliás fizera aos seus adversários com a  pena verrinosa, e a palavra  afiada,  Gomes Leal e  Bordalo Pinheiro sempre cáusticos e sem perder pitada.

A recaída justificava apreensão, até a cabidela da Aldegundes o enjoava, pantagruélico voraz que chegara a devorar um leitão, teima com um conselheiro do Tribunal de Contas, nem os inseparáveis jornais conseguia já ler, febril e entrapado em  pachos de álcool. De Lisboa, o Rei  posto a par enviava o secretário a desejar melhoras, melhor fora se ficasse por lá, os ares de Sintra em Setembro estimulam males dos ossos e são propensos a febres, comentara o monarca, mais adepto de Cascais e do mar, no iate Amélia.

Apesar da vida de picardias, fora generoso e magnânimo, aos filhos da velha Antónia calçara quando mancebos foram chamados a servir  nas fileiras, o Soveral abrira o negócio com financiamento seu. Nenhum agora se acercava a saber novas, com o fim perto, mais fácil se tornava perorar póstumas homenagens quando o cadáver frio e quebrantado jazesse nos Prazeres, promovido a  patriota inigualável e insubstituível.

Ouvido o dr.Telles a Aldegundes correu a chamar o padre Raimundo, o jacobino tardio e seminarista de berço, bandeado para a a causa de D. Pedro por aversão à facínora miguelista pedia os sacramentos O velho pároco, para cima dos noventa, ungia agora com os santos óleos o servo que Deus chamava antes de si, tribuno loquaz e teimoso, na cama-tumba de dossel azul, Rodrigues Sampaio arfava e tossia, consumido pela febre derradeira.

Nessa noite, num raro momento de tranquilidade - os moribundos melhoram sempre à noite - chamou por Fernanda, afilhada a quem órfã recolhera, que triste e discreta acariciava agora o protector de muitos anos na hora do desenlace. Sampaio, febril, pegou-lhe a mão, tensa e aflita e reviu as batalhas por ideais consumidos na feira das vaidades, a juventude em que puro idealista acreditara numa pátria sem servos e acabara Par dum Reino cadaveroso de ignaros em busca de mando, cão-barão sem rumo que não o rotativo poder fútil e efémero.

Rodrigues Sampaio tivera o seu ciclo. Poder, contra o Poder, rebelde, reverente, alheio, integrado, compassos de vida em transições esperançosas, espectro do século como o espectro do jornal a que um dia dera o nome. Os dias do fim reportavam para um passado pleno mas controverso. Quisera reformar a escola mas poucos  tinham acesso às letras, a patuleia nos campos apenas trocara amos do antigo para um novo regime que do Chiado não passava. Sossegadas que foram as armas que puseram irmãos contra irmãos e que, tribuno, combatera pela pena e palavra, morria sem que o país mudasse, sucumbido aos trens do Fontes e aos monopólios de tardios baronetes à sombra da Carta regenerada.

A noite enluarada trazia agora um silêncio expectante, o silêncio que antecede a borrasca, a lamparina no quarto apagando-se lentamente, como a vida também se apagava, nas quintas lá fora cães latiam premonitórios, a febre a virar delírio, o corpo possuído e prestes a desistir.

Antes que a suprema manhã chegasse, Rodrigues Sampaio partiu, discreto e sem despedidas, cúmplice do século e dos seus tombos, o país no desnorte, peão no xadrez interrompido, cartola e bengala a caminho da Luz. Era Setembro e era treze.


publicado por Fernando Morais Gomes às 05:46

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