Havana transpirava de calor no fim de tarde, o ritmo do danzon invadindo as vielas, velhas de charuto arengando nas calles do Malecón. Mário Rebordão mergulhava num regresso ao passado onde a Sierra Maestra e o Quartel Moncada se vendem como Terra Prometida e o Che é Cristo Redentor no altar da Revolução, a voz de Omara Portuondo soando no velho rádio do Floridita.
Mário viera a Cuba para uma operação à córnea, o dr.Gaspar aconselhara, cinco dias e aproveitava para conhecer. Antigo comunista mas afastado da política, não era sem emoção que peregrinava nos santos lugares onde a Revolução fora prometida como terra do leite e do mel, ainda para mais com águas a vinte nove graus e orgíacos mojitos castigando o corpo na noite do Caribe.Como suspeitava, a revolução não vingara, um povo alegre mas pobre pululava nas ruas, serpenteando em torno dos turistas e dos dólares, prateleiras vazias nas lojas e frágeis balsas para Miami eram os legados do socialismo, à mercê de tubarões na fuga para a liberdade. Mário correu a cidade, bela mas em ruínas, e comprou Cohibas e Havana Club, T-Shirts do Che , músicas do Che, livros do Che, o Che D. Sebastião dos trópicos , espectro dum socialismo que há-de vir, o patriarca Fidel ainda sentinela, cadáver. Dengosas mulheres da vida desafiavam turistas na praça da catedral, corpos escaldantes por cinco euros, sida não incluída, as trovoadas tropicais açoitando o mar e despertando agitados cardumes de peixes na calmaria de Ancón.
No Hotel Nacional conheceu Silvino Baião, construtor das Lameiras, pedreiro de gravata, política não era com ele, mas as gajas, meu amigo, às paletes, à noite pior que metro apinhado, socialismo sim, mais de pele e suor, Cuba é Cuba, perorava ufano do alto do Cohiba .Silvino era o típico novo-rico, fanfarrão e agora arruinado. Negócio em Montelavar, exportara mármore para a Líbia e Jordânia nos anos bons,agora com a crise queimava os cartuxos enquanto o cartão de crédito deixasse, à mulher dissera vir negociar um terreno, bom preço, quem sabe, aposta para o futuro, bom clima e mão de obra barata, e gajas, gajas…Mário, solicitador em Lisboa , menos dado a exuberâncias, tolerava-lhe as boçalidades, mas fazia por evitá-lo, no hotel,sempre pronto a colar-se, patrício tuga , caixas de charutos com fartura, que só se vive uma vez. A operação seria daí a três dias, e havia que passar o tempo, na terra onde o tempo não passou. Ainda se aventurou na noite do Tropicana, mas achou turístico, melhor a simpatia dos pequenos bares na zona velha, miúdos pedindo lembranças atraídos pelo dólar e pelo euro. Um placard no centro de Havana proclamava, seguro.”En todo el mundo, un million de niños morre de hambre.Ningún es cubano”.
Na noite antes da operação deteve-se num bar de colmo na Marina Hemingway, tempestade tropical a aproximar-se, a água quente como caldo até refrescaria, num palco improvisado três cegos com óculos escuros cantavam os hinos da revolução, anunciando os amanhãs que cantam a três dólares, solo monedas, compañeros, non tarjetas. O som familiar das canções que galvanizado entoara em festas do Avante e nos comícios de anos já passados, tornaram-no nostálgico, deu consigo de punho no ar, há muito esquecera esse gesto, agora recuperado.Três mojitos e seguia já embalado para os amanhãs que cantam com “tu, querida presencia, Comandante Che Guevara”, camisas coloridas prometendo revoluções imediatas, como a tempestade aproximando-se sobre o mar das Caraíbas. No fim, chapéu circulando e lá caíam três dólares para a revolução, cegos mas dignos e com talento, pensava, afagando a córnea enferma que ali o levara, um dia podia ser ele, pensou, entregando cinco dólares, os cegos tacteando, gratos ao generoso gringo.
No dia da operação num humilde mas asseado hospital,as virtudes do sistema de saúde, pobreza mas competência, nem tudo era mau, reconhecia, meia hora e um penso a carimbar a viagem, dois dias depois o regresso a Portugal. Nessa noite ficou pelo hotel, comida ligeira e água mineral, na televisão do quarto um filme de propaganda emulava a campanha do açúcar e as conquistas do socialismo, a CNN tinha interferências. No dia seguinte, ainda se cruzou com o Silvino no lobby, de calções às riscas e havaianas às cores, a caminho da piscina com bar, o pacho no olho declinava o convite para um copo, desculpou-se, no dia seguinte voltariam no mesmo voo, maçada acrescida.À noite, mais repousado e em onda de despedida, saiu a jantar num paladar, comida caseira em casa simples e chã. O taxista recomendou-lhe um, fora da cidade, lagosta grelhada na chapa e apanhada na hora, vantagem de país tropical. Lá chegado, duas velhas desdentadas punham a mesa num alpendre, três jovens grelhavam lagostas e trauteavam canções do rock cubano, generosos copos de rum cobrindo já a mesa de vime. Mário aproximou-se a cumprimentar e sem óculos escuros nem camisas estampadas, lá estavam os três cegos da marina, vendo perfeitamente e cantando, “hasta la victoria, siempre”.
Nada como Cuba e a Revolução para até cegos voltarem a ver, milagre do socialismo real a três dólares por cabeça.