por F. Morais Gomes

10
Fev 11

O groom do Hotel Borges abriu-lhe a porta, prestável, o vulto de sobretudo e chapéu preto perguntava pela hóspede do 308, o pai ou um tio, pensou, ar sério, chapéu enterrado, um carro aguardava não longe da Brasileira. Era sábado, Lisboa dormia, despovoada, as famílias a banhos em Sintra e na Parede. Contactada pelo telefone, mandava subir o visitante, trazia uma garrafa, um vinho do Dão, descortinara o groom de soslaio, antes dele entrar no ascensor.

Com o coração a palpitar, Mercedes abriu-lhe a porta, olhando em volta, nenhum hóspede no corredor, e mandando entrar, logo segurando  o sobretudo e chapéu. Confidenciara a António Ferro o desejo de o conhecer ee le correspondia, para mais agora que a Garnier não o largava um minuto.

Raramente saía para encontros mundanos, eremitando no Estoril ou em S. Bento, mas os agradáveis passeios com a francesa no Vimeiro devolveram-lhe nesses meses alguma juventude, comprara mesmo um fato de linho,branco, e botas novas, pinga amor nas horas vagas,casado com a Nação. Pela tarde tomara chá com Cristine, nova carta ardente da frágil admiradora trouxera-o directo  para o Chiado a terminar o sábado.

Mercedes Feijó, filha de poeta ,mãe nórdica, uns anos mais nova, já lhe havia escrito outras cartas de exaltação e apoio, que sem responder contudo guardara, expectante. O doutor Salazar, já nos sessenta, provocava-lhe rubor, a personalidade determinada e os cabelos esbranquiçados conferiam-lhe o ar seguro dum anjo da guarda protector e vigilante. Ele, resguardado mas não abstémio, cedia agora à terrena e carnal tentação de macho com cio. Os mexericos sobre a sua misoginia divertiam-no, e lembrava agora a primeira vez, em Coimbra, ainda seminarista, com a Felismina. O Manuel, hoje cardeal, ficara de guarda, enquanto ardendo em fé numa esteira da República dos Grilos penetrava os insondáveis e húmidos desígnios de Deus.

Mercedes buscou dois copos e sentou-se na poltrona a seu lado, já ele  tirava o casaco e servia o vinho, cavalheiro:

-Então a Mercedes costuma escrever? Saiu ao seu pai por esse lado, mas no resto é a sua mãe tal e qual- avançou, brindando, recordava a sueca anos antes, já viúva do António Feijó, o Leitão de Barros apesar de só ter olhos para  um cenógrafo da Tóbis gabara-lhe a beleza num jantar da União Nacional.

-O senhor professor lembra-se dela? Que memória formidável, eu…

-Chame-me António- atalhou, pousando-lhe a mão sobre a perna quente e vigorosa, ardendo sob um vestido de chantung estampado.

Mercedes ruborizou, a intimidade com o presidente do Conselho a quem só raras vezes vira de longe e ouvia com voz firme na Emissora Nacional, deixava-a entorpecida, bebendo o Dão de um só trago, lembrando-se depois  que até nem gostava de vinho.

-Muitos pensam que sou bota-de-elástico, mas até aprecio um bom teatro, e boa música, zarzuelas sobretudo. Zurzem contra mim porque que prossigo a missão que a Providência me confiou mas ignoram o que é ser português das quinas e cristão temente a Deus.O Norton de Matos ladra muito, mas sabe que ainda usa ceroulas, o biltre?- confessou, divertido e oferecendo-lhe  a mão com que ferreamente governava o rincão.

-Sr. Presidente, eu..

-António…

-António, deixe-me dizer uma coisa. Desde há muito que guardo todos os seus discursos, arquivo todas as fotos. Como pode ser-se tão generoso, entregar-se sem nada pedir em troca  quando podia ter uma esposa e filhos que por certo o adorariam, você que é a locomotiva do nosso Portugal…-Já o vinho descomprimia os gestos e libertava o verbo, uma tímida festa acariciava a cabeça de António, o timoneiro,  silencioso e servindo-lhe outro copo, sem pressas.

Mercedes, vaporosa e  nas nuvens, saiu por instantes, prometendo regressar logo, Salazar aproveitou para mirar o quarto e deitar um olhar para a rua. No Chiado, lá fora, um carro apressado guinava para a António Maria Cardoso, um jovem algemado era levado em passo célere. O Agostinho Lourenço  não dorme, pensou,  entre a ansia pela conquista próxima e a visão de mais um ingrato apanhado pela zelosa polícia, pátria e prazer escrevem-se com a mesma letra.

Do quarto contíguo assomava agora Mercedes, qual vaporosa valquíria em lingerie negra e acetinada, soutien rendado realçando uns generosos seios, a ruborizada admiradora do governante pronta a qual felina governá-lo agora. Salazar sorriu, com o ar seráfico de sacristão em dia de procissão, ela logo o envolvendo e puxando para o leito.

Já despojado do fato e das ceroulas de linho- afinal também usava, troçou Mercedes, gulosa - o mais dedicado servidor da pátria estava agora capturado , obediente servo nas suas mãos aveludadas,na vizinha PIDE e à mesma hora outro servo por certo também dominado à mão de fogosos e não tão aveludados agentes. Uma hora mais tarde, já saciado, de chapéu enterrado, deixava o hotel, em silêncio, o groom olhando de lado o  avaro  visitante que nem um centavo deixava. A hóspede do 308 telefonara a encomendar uma ceia, no dia seguinte a Almira rebentaria quando lhe contasse na Ferrari.

No dia seguinte, ainda o baton forte e pele macia de Mercedes se não desvanecera, António discursava num Encontro de Professores de Moral, solene e patriarcal: “Portugueses: Ensinai aos vossos filhos o trabalho, ensinai às vossas filhas a modéstia. E se não poderdes fazer deles santos, fazei ao menos deles cristãos”.

Cristão e abnegado santo, condestável da castidade, anjo de Portugal, no sábado seguinte, peregrino voltaria à sacristia do Borges onde em oração e jejum acenderia nova vela.


 

publicado por Fernando Morais Gomes às 23:34

Mar de Andaman, oeste de Sumatra, mais um dia de buscas subaquáticas findava e Robert Benning , o caçador de tesouros, atacava um revigorante gin tonic no convés do Octopus deitando um olhar sobre o mapa que  Dionísio Garnel, (Dick, como lhe chamava) elaborara. Pelos cálculos de Garnel, arqueólogo subaquático, ali estariam os destroços do Flor de la Mar.

Benning participara já em várias expedições, fundara mesmo uma empresa de buscas na Austrália, a Secret Seas, o valioso tesouro e a adrenalina da busca levaram-no a abraçar o projecto. Garnel chegara a Malaca um mês antes, um almoço de bacalhau no Portuguese Settlement selara a colaboração.

Na noite de 20 de Novembro de 1511 navegando de regresso à Índia com o valioso espólio da conquista de Malaca, uma tempestade fizera naufragar o Flor de la Mar, onde seguia Afonso de Albuquerque. O naufrágio fez numerosas vítimas, Albuquerque salvou-se apenas com a roupa que trazia e com auxílio de uma jangada improvisada. Perdeu-se então o valioso saque da conquista de Malaca, presentes do rei do Sião, bem como toneladas de estátuas em ouro e em tamanho natural, cofres cheios de diamantes e rubis, moedas portuguesas, árabes e chinesas. Pelos dados de Garnel, apenas dois dias depois da saída do estreito de Malaca, a frota fora atingida por uma tempestade e a nau encalhara em Tenga Reef, no nordeste de Sumatra, próximo a Diamond Point, sendo despedaçada pelas ondas enquanto os tripulantes tentavam salvar-se. Dos 400 homens, apenas 3 sobreviveram.

Robert e Garnel haviam-se conhecido num chat de mergulho subaquático, a troca de informações levou-os a acertar a expedição, a partir de Malaca. Um vindo de Perth, o outro de Lisboa.Pior era a posição do governo da Malásia, cujas leis proibiam a retenção de tesouros, punindo a descoberta de salvados não declarados como pirataria, havia que não facilitar, a guarda costeira local já lhes visitara o Octopus no mar de Andaman.

No dia seguinte, Robert retomou os mergulhos, enquanto Garnel monitorizava, dois indonésios tripulavam. Mergulhador exímio, nadava como peixe naqueles mares antes portugueses, escutando apenas a respiração, peixes grandes e raias deambulando, perigosos peixes-pedra obrigando a atenção, o veneno segregado pela barbatana era o maior perigo para um mergulhador incauto. Fazia uma semana que repetia mergulhos, a zona de busca apertava,pelas descrições de João de Barros nas “Décadas da Ásia” só podia ser ali. Até que finalmente a visão de um amontoado de madeiras carcomidas e uma âncora enferrujada no fundo do mar deram esperança ao australiano. Nadando entre os destroços, um pequeno baú quase desfeito continha moedas, poucas e espalhadas,  recolheu as que pôde e emergiu eufórico ao encontro de Garnel:

-Então? Que me dizes Dick ? Poderão ser do Flor de la Mar?

O arqueólogo analisava, minucioso, eram moedas portuguesas efectivamente:

-Há duas espécies aqui: vinténs, do tempo do nosso rei João II, de prata, e justos em ouro. Vês o desenho? Tem o rei sentado no trono empunhando a espada da justiça. É desse tempo e é português com toda a certeza. Mas há aqui uma ainda mais rara: o índio de prata, uma moeda que evoca a descoberta do caminho marítimo para a Índia. Dum lado tem o escudo real do outro a cruz de Cristo. Uma coisa é certa: os destroços são de um barco português!

No convés, um dos indonésios, agitado, alertava para a aproximação de uma lancha da guarda malaia, as moedas logo foram escondidas num balde com água. Exibida a documentação, tudo estava em ordem, para todos os efeitos dois turistas à pesca nos mares do Sul. Preparavam-se para regressar à lancha quando uma voz agitada e repetitiva soou no rádio dos guardas. Mayday! Mayday!, foi apenas o que entenderam. A cara subitamente pálida deixava preocupação, o mar parecia cavado, um silêncio profundo no ar deixava a sensação de falsa calma, os guardas gritavam, imperceptíveis:

- Mendekati gelombang raksasa!(*)O Centro de Tsunamis de Jakarta está a  lançar um alerta para  a região do Pacífico!. E estamos a trinta milhas da costa!

(*)Aproxima-se uma onda gigante!

 

Os guardas costeiros corriam para a lancha quais peixes voadores, Robert e Garnel também se apressaram a levantar âncora, um vento sussurrante prenunciava a onda gigante a menos de vinte milhas.

Nem meia hora era decorrida quando uma vaga de sete metros, paulatina e triunfante enrolou o Octopus, engolindo-o implacável, o balde das moedas devolvido às profundezas, a água assassina galgando vinda de sul. Ainda com um precioso vintém na mão, Dionísio Garnel aprestava-se a colocar o salva vidas quando a água invasora os abocanhou arrastando para o fundo, novos companheiros da nau afundada, as moedas devolvidas ao segredo do mar.

Era 26 de Dezembro de 2004, Dionísio e Robert foram nesse dia duas das mais de duzentas mil vítimas do mortífero tsunami do sudeste asiático, depois de uma ruptura na zona onde a placa tectónica da Índia mergulha por baixo da placa da Birmânia.

A Flor de la Mar por instantes desperta, continua dormindo no mar de Andaman.


publicado por Fernando Morais Gomes às 00:48

Fevereiro 2011
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5

6
7
8
9

14




Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

subscrever feeds
mais sobre mim
pesquisar
 
blogs SAPO