por F. Morais Gomes

12
Fev 11

Era noite, lunar e cintilante, na finistérrica falésia junto à mata atlântica, George Till, escritor no exílio e apátrida de Nações, arauto de futuros que não virão, deambulava subindo a Caverna onde explorador avisado buscava a Luz resplandecente e redentora a devolver-lhe palavras capturadas por cronológicos dias, imanentes e expectáveis. Liberto na Caverna, viajara até ao Futuro e triunfante voltava agora, indomado eremita, ao refúgio seguro de cheiro a pinho e gosto a mar. Visionário, volvia à Casa Branca depois de peregrinar por sinuosas grutas, neófito espeleólogo de amarguras e arqueólogo da ansiedade, na holográfica mochila trazendo sempre a venerada imagem da Serra-Mãe, que agora de novo o acolhia, pródigo filho, outrora  ligeira palanca na savana quente, mais tarde urso pardo nas frias terras do Norte.

O editor apertava com o novo livro, mas o tempo era seu. Sintra-Serra vigiava, a poção fervilhava no caldeirão, apurando, ainda não era a hora de beber e soltar a Palavra, disforme sombra ainda na escura pedra da Caverna.

Faltava-lhe o Fogo. O Fogo da Caverna, quente e aconchegado, mas também castigador e purificante, escritor ainda sem palavras como pescador sem anzol, apenas vultos de variadas formas, passando, prisioneiros, como ágeis faunos na noite. Na escuridão, George buscava a Claridade e lá estava ela, denunciando-se, lenta e cristalina, sua,  na esquina da Casa Branca, faróis pirilampos  guiando até ao virgem  papel onde logo seria Fogueira.

Luz. Luz tal que lhe encadeava a vista, logo um cálice de cidra a saciar o calor da noite gelada e céltica. A Luz projectava para a caneta redentora, escrevendo para o impaciente editor e o encoberto público, a viagem em torno da Casa Branca desaguava agora na sala grande, guardiã de livros e quadros, capturada que fora a Luz.

Ainda essa noite Rafael Hytlodeo viria visitá-lo, açoriano e amigo,   músico com refúgio na Adraga que com frequência partilhava o noctívago passeio pela falésia onde se inspiravam para novas prosas, George  silenciosas mas gritantes ,e gritadas, Rafael buscando o harmónico e diáfano som do silêncio. Estóico e eremita, fugira da Grande Cidade, também ele exilado como George, marginal nas margens dum rio que nunca  atravessava mas que invariavelmente via serpentear em direcção ao Grande Oceano. Nas horas vagas dedicava-se a uma biológica horta, vegan por opção, campestre por convicção, insatisfeito na construção de temas e sons que logo rasgava para de novo construir, recomeçar, como Sisífo incessantemente subindo à montanha. Em tempos unira-se a Maude, inglesa alva mas distópica, não resultara, como George, alma gémea, vivia no exílio daquela ilha de Elba Lunar , donde, quem sabe, partiriam uma radiosa manhã para os seus Cem Dias de Luz, desafiadores, labirínticos, trágicos.

Till já várias vezes morrera em páginas sem fulgor e logo Fénix renascia liberto e libertador, peregrinando como anacoreta em torno da Casa Branca, qual pagador de promessas em volta da Luz vaginal . O novo livro era um desses momentos, sentia-o, a Lua Cheia ajudaria a agarrar a palavra fértil, soltando aferrolhados silêncios no Cofre do Tempo, valiosos, secretos, logo gritados em alvo e cúmplice papel branco, à media luz da casa refúgio onde esculpia poemas em cristal e perfurantes palavras em pedra.

Rafael encorajava-o, umas vezes apoiando-lhe significantes poemas, outras desconhecendo  encobertos significados, juntos e junto ao mar partiam em fins de noite em audazes barcos para Ítaca onde formosas Penélopes os esperariam na espuma dos dias, bravos lutadores, tecendo os novelos durante o dia, para à noite, não chegando Ulisses a bom porto, os desfazer, novo e renovado Principio, na interminável espera sem fim. Sem fim, porque sem fim era  a Viagem que haviam encetado. Já uma vez fora  à ilha, com George, momento atlante e atlântico para noutra mágica montanha renovarem a busca da Luz, solidários e audazes. Eram as idas ao Futuro donde regenerados voltaram depois,dispostos a incomodar neófitos públicos, surpreendidos da surpresa, assim servos da Luz e infantes da Claridade.

A Lua púrpura de Sintra esbatia argêntea claridade sobre o promontório, George e Rafael sentavam-se agora num penedo adornado de espessa urze e zambujeiros. Também ela filha da Luz ,contemplava os seus arcontes, o Apolo ilhéu e atlântido, minimal compositor e bardo do Futuro, e George Till,veterano, ambos cintilantes, eucrónicos na Noite do Tempo, enviando salvadoras palavras no bico duma gaivota que solitária rasgava os céus rasgando a nova Finisterra.


publicado por Fernando Morais Gomes às 18:36

Praia Grande, sábado à tarde. Mirones a ver o mar, a ver e ser vistos,  passeio pelo areal, o mar açoitando a piscina, a Galé e o Angra servindo imperiais e gambas com vista para o infinito.

Nem o Egipto, nem a crise, a Rogério Pedreira apenas uma notícia interessou ,discreta num matutino, o suicídio em Cascais de um homem a quem um cancro terminal precipitara de um quinto andar, na sala um CD reproduzia o Requiem de Mozart,  fotografias de família desarrumadas no chão.

Rogério, médico no IPO, lembrava-se daquela pessoa, o sr. Gustavo, seu doente, bancário reformado, durante uns meses alegre e confiante nas consultas, os tratamentos garantiam uma ligeira regressão, não o via há mais de um mês. A notícia era vaga, ilustrada por uma foto do falecido, aí com dez anos menos, discreta entre um assalto em Algés e um incêndio em Setúbal, a esposa mostrava-se desconsolada. Esta era a parte da notícia que para ele não batia certo. O Gustavo sempre se dissera viúvo, lembrava-se mesmo de o ouvir dizer que jantava na leitaria da esquina, não sabia cozinhar, teria casado nesse período?

Ao chegar a casa buscou um bloco-notas e lá descobriu os dados do doente agora falecido: Gustavo Silvestre, 57 anos, de Soure, morador em Queluz. Viúvo, um filho.Pólipos no intestino grosso e sangue nas fezes. Metastizadas para fora do cólon detectaram-se células cancerígenas nos gânglios linfáticos já disseminadas pelo fígado. Um número de telefone deixou-o hesitante: telefonaria a dar os pêsames e assim saber quem era a esposa que os jornais falavam, ou passaria adiante, médico e morte são rivais mas também parceiros.

Ligou. Após alguns segundos, uma voz feminina, madura, atendeu do outro lado:

-Está lá?

-Sim? Boa tarde minha senhora, é da família do senhor Gustavo?

-Sou a viúva…

-Sou o dr .Rogério Pedreira, e até há pouco fui o seu médico no IPO. Vinha apresentar as minhas condolências. O caso dele era sério, mas foi triste que tenha desistido, ainda havia esperança numa vida com dignidade, pelo menos…

Do outro lado, após breve hesitação, a viúva enigmática respondeu:

-Muito obrigado senhor doutor. Mas a doença que o matou foi outra…

-Outra? Como assim?

-Senhor doutor, posso passar no IPO um dia destes? Gostava que soubesse a verdade, era um alívio para mim também….

-Com certeza, dona…

-Sara. Sara Geraldes.

-Apareça então segunda-feira, D.Sara, dou consulta a partir das três, passe um pouco antes.

Na sala de espera, no IPO, uma senhora, menos de quarenta anos, fato azul elegante e óculos escuros aguardava em silêncio. Antes de a receber, Rogério mirou-a atentamente, médico sabe os segredos do corpo mas desconhece os segredos da mente, cada doente com seu passado em busca de algum futuro, ameaçado, se for no IPO.

Mandou entrar, a senhora cumprimentou, discreta mas afável.

-Pois mais uma vez os meus sentimentos, minha senhora. O seu marido era um doente abnegado, e se quer que lhe diga, até persistente, fiquei admirado com este desfecho bastante triste. E já agora, foi para mim uma surpresa a sua existência, pois sempre me disse ser viúvo…

-E era senhor doutor. Vou-lhe contar tudo e talvez entenda o que se passou…

-Faz favor.

A viúva, aspecto bem tratado, quase da mesma idade que o médico, parecia-lhe, desfiou a história lentamente:

-O Gustavo e eu tivemos uma relação mais de dez anos. Fomos colegas no banco e discretamente mantínhamos encontros em segredo, ele gostava da mulher e nunca quisera dar-lhe esse desgosto, tinha uma vida dupla, se assim posso explicar…

-Compreendo.

-Depois da morte da mulher, adoeceu como o doutor sabe, e de livre vontade entendeu que devíamos casar, fazia questão. Eu hesitei, o filho nada sabia, nem de mim nem da doença e podia não entender. E não entendeu. No dia do casamento, o Gustavo telefonou-lhe a contar, mas ele ficou possesso e disse que nos matava, que era uma afronta à memória da mãe e que eu era uma rameira, enfim…

-Caso complicado, estou a ver…

-De qualquer modo casámos. Há três semanas. Pelo registo. Ele sentia a doença a avançar mas vou recordar para sempre estas três semanas de felicidade, apesar da amargura por causa do filho. Há uma semana ele foi lá a casa, embriagado, e disse-lhe que era um pulha e sem vergonha, e que quando morresse o mandaria para a vala comum, cuspindo  depois em cima. Foi muito chocante, até disse que um cancro só ainda era pouco castigo.

-As famílias são uma coisa complicada…-comentou, ele próprio com o casamento na corda bamba.

-A discussão deixou-o muito abalado, o filho proibiu-o até de ver o neto. Nessa noite foi deitar-se e não pregou olho, esteve dois dias no sofá a ouvir música e a beber vinho do Porto, apoquentado. Até que na quarta-feira, levantou-se às oito para ir à casa de banho e já só vi as cortinas da varanda a esvoaçar e um ruído de travagem na rua.

Um cancro flagelando o corpo, um filho flagelando a alma, despedia-se, uma carta para Sara no aparador, companheira dos dias do fim, saía de jogo antes que derrotado e incompreendido chegasse  o seu dia. Rogério acompanhou a viúva à porta e voltou absorto para os seus doentes, terminais, uns  famintos de vida ,outros sem ter para quem viver, o dossiê de Gustavo enviado para o arquivo morto.

Praia Grande, sábado seguinte. No Egipto exultava-se  agora, jovens surfistas cortavam as ondas, doses de amêijoa voavam para a mesa do fundo. Rogério, levantando os olhos do mórbido matutino das desgraças por momentos pareceu ver o Gustavo ao fundo na falésia, mirando o horizonte e ouvindo o Requiem de Mozart. R.I.P.


publicado por Fernando Morais Gomes às 10:47

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