José Diniz, canteiro, 33 anos, de Sintra, saía pela primeira vez da Metrópole e pelas piores razões. Solidário com a revolta dos marinheiros, preso com mais companheiros e embarcado no Luanda inaugurava naquele Outubro de 1936 a colónia penal do Tarrafal, na ilha de Santiago, coqueluche para presos sediciosos, nas áridas paisagens do Chão Bom, em Cabo Verde.Comunistas,anarquistas,anarco-sindicalistas,sumariamente julgados, embarcavam para o iníquo castigo a que Lisboa os condenava.
O capitão Martins dos Reis, famigerado militar, destacado do presídio de Angra para o novo campo, ia apostado em fazer que os inimigos do regime não esquecessem aquelas férias, se de lá saíssem alguma vez. José Diniz, deportado com outros cento e cinquenta, mal chegado, foi de imediato colocado no transporte de pedras, sob vigilância apertada e sol abrasador. O campo, ainda em obras, era um rectângulo rodeado por uma vala de quatro metros, com arame farpado, e um talude de três metros de altura, situado num dos locais mais insalubres do arquipélago. Colocados em barracas de lona, sem casa de banho, toscos muros de tijolo com buracos no chão e latas de gasolina serviam para as necessidades. Como cozinha, um telheiro, onde indígenas cozinhavam algo a que dificilmente se podia chamar comida, de cheiro fétido e repugnante. Água, só dum poço, a oitocentos metros, salobra e transportada em latas. Para tomar banho, míseras gotas de água suja, despejada de uma lata com orifícios a simular um chuveiro.
José partilhava uma tenda com mais onze, entre eles, Bento Gonçalves e o Ernesto, padeiro em Lisboa. Nos primeiros tempos deu em chover, coisa rara, e as águas acumuladas em poças deram azo à reprodução de mosquitos, transmissores de paludismo. Sem assistência mínima e subalimentado, foi atacado de biliose. Em poucos dias depois morreram sete, prostrados, sem conseguirem sequer andar, febris e delirando. Uma noiva desfeita, um trabalho pobre mas garantido para trás, enfrentava a iníqua punição pelo crime de discordar. Mero canteiro, não sendo doutor, o Aljube e o Limoeiro eram ténues de mais, o deserto africano haveria de domar os ânimos, pensava Martins dos Reis. Este, senhor do seu brinquedo entretinha-se a confiscar as encomendas que os familiares mandavam, com a desculpa de serem oferta do Socorro Internacional, montando mesmo uma cantina onde vendia as coisas apreendidas, em benefício da sua algibeira.
Os meses iam passando, as condições sempre a deteriorar-se, sem perspectiva de fim à vista. Em 37 lá chegou um médico, o Tralheira, sem condições para trabalhar, a passar certidões de óbito, e nova leva de presos. Bento Gonçalves, estóico, apoiava os mais desanimados, José arrastava-se sem esperança, esquecido num estéril descampado na fronteira sul do Inferno.
Em meados de 38, Martins dos Reis foi substituído por João Silva, na Europa, a guerra civil de Espanha terminava para logo começar a aventura alemã nos Sudetas. No Tarrafal, longe da Vida, a “frigideira” ameaçava agora os insubmissos cativos do arame farpado.
José Diniz, definhando e febril recusara-se certo dia a transportar pedras, o corpo ardia flagelado e desidratado. João Silva, por indicação do famigerado Seixas, fez conduzir o rebelde aos aposentos de “luxo” a refrear os ânimos.
A “frigideira” de cimento, sete de metros de comprido por três de largo, dividida em dois por uma parede interior, era o castigo sempre à espreita para os menos dóceis, luz e ar apenas através de pequenos buracos na porta. Durante o dia, o sol quente aquecia as portas e as paredes, insuportável, torturando os corpos desprotegidos, água só em pequenas quantidades. À tortura da sede juntava-se a fome, pão e água apenas em dias alternados, por vezes por períodos dilatados, aqueles que o director entendesse.
José aguentou 37 dias da primeira vez. Ao sair era um farrapo, mantido vivo pelo ódio mas mais respeitado pelos companheiros, testado na provação, silenciosamente condecorado pela dignidade. Nos dois anos seguintes, mais duas vezes regressou, a família em Sintra sem saber novas, noites e dias bebendo água fétida e espantando mosquitos, de quando em quando uma morte no campo a lembrar quando chegaria a sua vez.
Em finais de Novembro de 1941, nova visita à frigideira, repetentes, ele e o Ernesto Ribeiro, já debilitados, a biliose apoderando o corpo frágil, quebrantado pelas sevícias e antecedendo o fim da linha: Ernesto, a 8 de Dezembro, José quatro dias depois. Na tenda apodrecida, Bento Gonçalves, comunista clandestino, sofria silencioso, pelo martírio, os companheiros obtinham finalmente a libertação, ele próprio preparado já para a sua vez, o dia de cortar o grilhão haveria de chegar, cedo ou tarde. E chegou. Para eles, tarde.
A 18 de Fevereiro de 1978 os corpos de 32 prisioneiros tombados no campo da morte lenta foram transladados para Lisboa e erguido um monumento às vítimas desse tempo infame no cemitério do Alto de São João. José Diniz, Ernesto Ribeiro, Bento Gonçalves e outros mártires do Tarrafal repousam finalmente na terra que lhes expropriou a liberdade mas não conseguiu roubar a dignidade.