Timor Português, Maio de 1974.Pedro Rendeiro, jovem alferes miliciano, mobilizado compulsivamente depois de participar num protesto estudantil em Económicas, seguia numa missão de patrulhamento perto de Baucau, com dois praças do seu pelotão. Idealista e de esquerda, o 25 de Abril apanhara-o em Dili, regozijando-se à distância com os desenvolvimentos em Lisboa, cujo eco lhe chegava pelas cartas do pai, velho antifascista entusiasmado com a libertação. O tempo chuvoso originara neblinas e o Unimog serpenteava por sinuosas estradas de terra, entre os arrozais de Manatuto, lavrados por diligentes búfalos e velhos desdentados. No atravessamento de um rio, passando uma velha ponte de madeira, apodrecida,esta deu de si e o Unimog afundou-se, levado na corrente, junto com os três militares. Os corpos nunca apareceram, porventura atolados no lodo ou presa de algum crocodilo. Em Lisboa, o velho professor Rendeiro, que semanas antes chorara de alegria com a chegada da manhã libertadora, chorava agora um filho precocemente desaparecido. Para ele, o mundo acabara ali, o quarto em Carnaxide sempre arrumado à espera de um regresso, qual D. Sebastião, idas angustiadas ao Ministério do Exército na ténue esperança de notícias, morte sem morto é difícil de sepultar. Os anos passaram, a presença de Timor nos noticiários deixava o velho pai a palpitar, tentando vislumbrar o filho no ecrã, escondido nas montanhas ou prisioneiro dos indonésios, tudo menos morto. Morreu de tristeza, o quarto de Pedro para sempre arrumado, a cama feita para o dia em que regressasse.
Em Dezembro de 2010 Cristina Rendeiro, professora de português chegava a Timor-Leste, no âmbito duma cooperação com escolas locais. Filha de Jorge, o irmão mais novo de Pedro, a mística de Timor, causa nacional sobretudo depois do massacre de Santa Cruz, era para ela estimulante e desafiadora. Levava a história daquele tio morto e desaparecido de que o avô falava, sempre seguido de quebrantados silêncios, assunto tabu e amargurado, um antigo retrato de família, feliz, era tudo o vira dele . Em Dili alojou-se numa residencial, a escola era próxima, vista privilegiada para o Tatamailau, ruas pejadas de crianças em bando e militares da ONU, muitos deles portugueses. Foi um desses que um dia conheceu num mercado, Gilberto Matias, de Marvão, três meses de Timor, um clima cúmplice logo no primeiro encontro em Dili.
Os primeiros meses decorreram com normalidade, a pobreza alegre do povo inspiradora, Gilberto preenchia os momentos de solidão com as conversas e saídas pela ilha em descoberta, nos dias livres.
Certo sábado foram em passeio até Baucau, casas desalinhadas, búfalos pachorrentos ornamentando as bermas. Num improvável restaurante tomaram um café, chapa de zinco como cobertura, algumas crianças jogando à bola. A moça que os atendeu era mestiça, meio europeia, meio maubere, longos cabelos negros, para cima de trinta e cinco anos, um dos miúdos era dela. Atenciosa, meteu conversa:
-Portugueses?
-Sim, estamos em Dili, andamos a conhecer a ilha
-Vieram ver o Grande Crocodilo…- sorriu, um velho liurai sentado na soleira da porta, com o seu galo de luta debaixo do braço.
-Como assim?- questionou Cristina
Não conhecem a lenda de Timor?- E com a sabedoria própria da idade contou a história, velha como ele:
- Há muito, muito tempo, em Massacar, na ilha dos célebres, vivia um crocodilo velho, sem velocidade para apanhar os peixes da ribeira, não teve outro recurso senão tentar a aventura em terra para tentar caçar cão ou porco que lhe saciasse a fome. Andou, andou e nada conseguiu apanhar para comer. Resolveu regressar, mas o caminho era longo e o sol era quente. Esgotado, sentiu-se cansado e que as forças lhe faltavam e que, mais passo menos passo, ficaria ali como uma pedra. Mas o imprevisto fez que passasse um rapaz. O moço comovido, ajudou-o a arrastar-se até à ribeira. O crocodilo ficou-lhe agradecido e ofereceu-se para, a partir daquele dia, o levar às costas pelas águas dos rios e do mar. Certo dia, angustiado pela fome e sem conseguir caçar, decidiu que comeria o rapaz. Porém, para alívio da consciência, consultou primeiro os outros animais sobre se devia ou não comê-lo. Desde a baleia ao macaco todos ralharam muito com ele acusando-o de ser ingrato. O crocodilo dispôs-se a partir para o mar e levar consigo o dedicado rapaz por quem, vencida a tentação, sentia amizade. Foi assim que convidou o rapaz a pular-lhe para as costas. Fazendo-se, então, ao mar, nadou, onda após onda, em busca das terras onde nasce o sol, convencido de que lá havia de encontrar ouro. Porém, quando, já cansado de nadar, pensou em dar meia volta e regressar às terras de origem, começou a sentir que o corpo paralisava e se transformava rapidamente em pedra e terra, crescendo, crescendo, até atingir as dimensões de uma ilha. Então o rapaz caminhou sobre o lombo desta ilha, rodeou-a com o olhar e chamou-a de Timor.
Terminada a narração, o velho saiu a enxotar um búfalo, o corpo curvado já vira muito sofrimento na ilha-crocodilo,a moça mestiça ouvia, como quem já escutou dezenas de vezes, e curiosa abordou os clientes:
-Meu pai também era português como vocês. Mas morreu antes de eu nascer, nunca cheguei a conhecer. Minha mãe quando eu era pequena dizia que tinha partido em busca do crocodilo, e que só voltaria quando o visse gordo e feliz.
Cristina comoveu-se com a história de Natália, assim se chamava, e partiram, com a imagem do velho liurai e daquela gente simples em torno à casa no pensamento, o filho mais novo agarrando a perna de Cristina, sujo mas dócil.
Lá fora, a cem metros, entre os porcos que livres deambulavam em torno da casa e o inúmero ferro-velho que circundava o casebre, uma porta cor de azeitona enferrujada ,de um jipe, ainda permitia ler, já sumidas, as palavras “Exército Português”. O crocodilo ainda não está gordo nem feliz.