O Rei, abúlico, olhou ao longe a megera, e não pôde deixar de suspirar, como pudera casar com aquele trambolho de maus fígados, mãe dos seus nove filhos dos quais alguns só de nome. Anã, ossuda, uma espádua mais alta que a outra, olhos miúdos, marca de bexigas, o nariz avermelhado, assim era Sua Majestade Carlota Joaquina Teresa Cayetana de Borbón y Borbón para desgraça sua rainha de Portugal. Trazia os cabelos sujos e revoltos, cordões de pérolas e pedras preciosas pendiam dos cabelos gordurosos como cobras. A melhor forma de segurar a impetuosa esposa era oferecendo sapatos, era obcecada por sapatos, vermelhos de preferência, não se esquecia da dentada na orelha que ela lhe dera na noite de núpcias e de que ainda hoje tinha sinais visíveis. Naquele dia tinha de a informar que por ter recusado jurar a nova Constituição, as Cortes haviam decidido deportá-la para a Quinta do Ramalhão, em Sintra. Ao invés de protestar, rejubilou, maior liberdade teria longe do boçal marido e dos imprestáveis jacobinos que o manobravam como mula.
-Pois que se danem!- foi a sua resposta, D. João VI transpirava, receando-lhe as fúrias, a missiva estava transmitida, voltaria para o seu Palácio da Bemposta, ela rumaria ao seu trono de Sintra.
Carlota Joaquina chamou as açafatas e aprontou o exílio. Mais perto estaria de Marialva, vizinho em S. Pedro, e do esbelto e viril João, o caseiro por quem nutria insaciável apetite, falta de homem a sério, aquele grotesco rei no papel mas indigente na cama, apenas obcecado com comida e missas cantadas em Mafra.
João dos Santos, já para mais de quarenta, há alguns anos era visita frequente dos aposentos reais do Ramalhão, apenas interrompido durante os anos em que a Família Real estivera no Brasil. Favorito da Rainha, que o recompensava com mercês, fora pela primeira vez seduzido para mais de vinte anos antes, quando podava rosas nos jardins do Ramalhão. Um vulto de mulher e uma mão sibilina pelas costas apertando-lhe o sexo viril e logo contra a coluna dum vão nas traseiras satisfez a insaciável figura régia, feia e desenxabida mas ardente e carnívora, os seios grossos alvos apesar de tudo apetecíveis, mercês para si e para a sua família logo asseguradas. A ainda princesa, sabia ser ele o pai do príncipe D. Miguel, pois para mais de dois anos que não era visitada pelo rei, atacado por gonorreia, os físicos não conseguiam resolver, a honra e o Estado enviesavam o segredo, iria com ela para o túmulo. Carlota ficara obcecada por sexo, as sombras e enxergas do Ramalhão, silenciosas, haveriam de guardar privados vícios atrás de públicas virtudes apregoadas: João Santos, Pedro, o marquês de Marialva, o coronel Medeiros, de Lanceiros, se em política era absolutista, na alcova do Ramalhão era absoluta.
Poucos dias depois de se instalar em Sintra, o príncipe D. Miguel, a cavalo desde Lisboa, foi visitar a mãe. No pátio, João, criado, pai clandestino, cumprimentou o seu senhor, Carlota duma janela assistia e mordia o lábio com um dente, cariado por sinal, nunca aquele segredo se haveria de revelar, só ela e o encornado rei sabiam, morreria com eles. Miguel cumprimentou o serviçal, atencioso, sempre lhe agradaram os modos simples mas modestos. Era um jovem elegante, politicamente empurrado pela mãe e pelos políticos mais conservadores, também ele tradicionalista e sem grande ânimo para o poder:
-Então, João dos Santos, os seus animais? Continua a criar aqueles porcos tão gostosos?
-Faz-se o que se pode, Majestade. Ainda bem que está de volta, tantos anos no Brasil, já desesperava de o voltar a ver. E no trono, agora que o infante seu irmão ficou rei dos brasileiros…
-Veremos, veremos- gracejou o príncipe, ao longe, Carlota apreciava como os narizes dos dois eram semelhantes, saíra ao pai, o seu Miguel.
Carlota e Miguel tramavam contra a Constituição, o que conseguiram em Maio de 1823, quando os seus partidários impuseram a dissolução das Cortes depois dos sucessos de Vila Franca. Foi levantado o desterro da rainha e D. João foi buscá-la ao Ramalhão, conduzindo-a ao paço da Bemposta. Nesse dia, também o rei se cruzou no pátio com João dos Santos, a quem virou a cara. O caseiro, não percebia o desdém do rei, mas calculava, amante da rainha ignorava se ele sabia ou não, só as ameaças de escândalo que ela fizera o mantinham ainda ao serviço para seu bel-prazer, pelo rei já teria sido enforcado.
Pouco tempo, porém, durou a harmonia entre os esposos, porque a rainha mudou a sua residência para Queluz.
Aí, sempre rodeada do séquito de aias espanholas, entre cascatas, jets d’eau e odoríferas plantas, sempre intrigando, de quando em quando João dos Santos vinha renovar as flores e árvores no jardim. E sorria, astuto, sempre que ocupado nas suas podas e com as plantas nas estufas de vez em quando uma flamejante urtiga o surpreendia envolvendo pelas costas.