por F. Morais Gomes

18
Fev 11

Desde que voltara de Angola, retornado do império, Alípio Gomes não mais viajara para fora do país. Bancário, casado mas sem filhos, dividia o tempo entre o balcão em Pêro Pinheiro e rotineiros verões  na  Manta Rota , apartamento à época geralmente em Agosto. Caseiro, a grande ocupação era a reconstrução da vivenda no Sabugo, em plena zona rural e  a dez  minutos  do emprego, onde com Adelina passava os dias tranquilo e sem grandes aventuras, os cinquenta  iam pesando um pouco.

Certa vez, num almoço com colegas, empolgados pela conversa e pelo Old Parr, um grupo do banco combinou ir ver o Benfica a Milão, jogo com o Inter, na era Camacho. Era Abril, depois do jogo ,três dias de passeio com os amigos, todos benfiquistas ferrenhos, o Barbas ao pé deles era debutante. Longos almoços passavam lembrando jogos de outros tempos, os mais empolgantes sempre contra os lagartos, se bem que o Antunes, da contabilidade, leão acérrimo sempre lembrasse, maçador, os 7-1 com o Manuel José.

Adelina não gostou muito da ideia, ficaria sozinha, quatro homens em Itália não era uma ideia que a agradasse muito, mas lá anuiu, a promessa de uns perfumes e chocolates amenizava o facto de ficar sozinha, mas teria de ligar todos os dias, e agasalhar-se que estava a nevar, bem vira na televisão, levar gorro e luvas e medicamentos para as dores de cabeça e azia,  pastas  e cannelones não a convenciam.

Até partirem, os dias foram passados a combinar os detalhes, e em sussurro, as facadinhas no matrimónio que machos latinos haveriam de dar, mal chegados ao aeroporto  seria tiro e queda, dizia o Amaral, a barriga obesa da imperial e tremoços a comandar as operações, as caras metade em casa a ver a novela, sossegadas. Alípio à cautela  até comprou duas caixas de Viagra, nunca usara mas à solta em terras de Sofia Loren não passaria o tempo  a ver o Scala de Milão, por certo, há muito que nem à noite saía, só a visitar os  chatos dos sogros na Azambuja.

No dia aprazado lá partiram, soltos das mulheres, os  outros colegas do balcão ,invejosos ,a desdenhar das prometidas fanfarronices, cachecóis do Benfica e bonés, no aeroporto, a parafernália lampiã a caminho de Itália e a promessa de 4 sem resposta, no mínimo.

Em Milão nevava, cinco autocarros com batedores conduziam a falange do Glorioso auto-estrada fora, ao som triunfal de “Benfica!” e “SLB!”, um carabinieri da polícia com os dedos profetizava 2-O. O jogo foi logo nessa noite, o Giuseppe Meazza a abarrotar de portugueses, junto a eles,uma faixa enorme  proclamava “Pêro Pinheiro presente”. Já a viagem na Alitália deixara as hospedeiras atarantadas com os tambores de guerra e as cervejas à vitória dos encarnados, Milão que se cuidasse que não ia ser ópera, mas baile…

O jogo foi renhido, mas contas feitas, o Inter, desmancha-prazeres lá deu 4-3, o Antunes, a partir de Lourel, mandava mensagens pelo telemóvel, foram de carrinho mas vinham de carroça. Depois do balde frio inicial, estavam em Itália, afinal, era preciso era afogar as mágoas em litros de líquidas louras e partir à caça das prometidas ragazzas à espera daqueles temerários portoghesi, para o efeito todos primos do Cristiano Ronaldo, menos na barriga, na careca e no resto.

O Pascoal, mais entendido, lá descobriu um bar nocturno com show erótico, era já aquele, do varão para a mesa e da mesa para a felicidade, esfregava as mãos o Alípio, um Viagra azul estava já de parte na carteira. Não que precisasse, mas por via das tosses, nada como melhorar a performance, no fim elas é que pagariam a eles, iam ver. A Adelina nunca o vira comprá-los, na Farmácia Marrazes, era a sua semana de liberdade condicional, a vida afinal são dois dias. Porém, havia um contratempo, naquele dancing não aceitavam cartão, só cash, todos juntos não tinham que chegasse. Foram a outro, não longe, mas novo percalço: entrada só com sapatos de couro, o Barbosa, suburbano ia de ténis, coisa de pobre, logo chingou o Alípio, tinha de ser ele a estragar a festa. Num outro, aconselhado por um polícia, os preços eram muito caros, e até para tocar nas bailarinas havia que pagar, o preço do table dance bastante mais caro que nos bares de alterne lá da zona. A coisa estava complicada, furada, nessa noite acabaram por ir para o hotel e alugar filmes pay-per-view nos quartos.

No dia seguinte, descoberta da cidade, e pela tarde, passeio até o Lago de Garda, paisagem de postal com pitorescas aldeias. Aí chegaram já noite cerrada, o hotel era num vilarejo onde fechava tudo às dez da noite, imperiais só no hotel, conversa sobre o Benfica dos anos sessenta com o barman, o comprimido azul apenas peso morto na bagagem. No último dia, de volta a Milão, o dinheiro já escasseava e havia que comprar a prenda da Adelina e pagar os extras, a miragem das facadinhas cada vez mais miragem, ao Antunes haveriam de contar aventuras tórridas, para o lagartão se babar quando voltassem.

Apesar dos dias bem passados, a prometida investida transalpina ficava-se pelo convívio, valera a pena, apesar de tudo, no avião de retorno até encontraram o Toni, velho lampião, que também ficara uns dias.

No regresso à rotina, fotos e prendas para a Adelina, grandes  narrativas no bar do Hélder a contar a facilidade tiro e queda como conquistaram a Itália, apesar do fatídico penalty que não foi penalty. No dia imediato, o quotidiano do banco, as baboseiras do Antunes, as obras da casa no Sabugo para continuar. Ao jantar, a Adelina, branca como a parede, apareceu indisposta:

-Estás bem, amor? Já eram saudades do maridinho, não eram?- confortou , dando uma garfada nas batatas fritas.

-Não, não. Não sei o que tenho, estou com uma enxaqueca terrível, e até tomei um daqueles comprimidos azuis que levaste na viagem, para as dores de cabeça. Mas não ajudou, até acho que fiquei pior!.

Quase engasgado e com o bife entre dentes, correu ao quarto e escondeu as malfadadas embalagens numa caixa de sapatos, faltava só um, felizmente. Não houvera aventura italiana, mas ou se enganava muito ou uma noite agitada e acalorada vinha pela frente no frio Abril do Sabugo.


publicado por Fernando Morais Gomes às 15:45

17
Fev 11

Filipe Corujão acelerava a construção da moradia nas Azenhas do Mar, a licença estava prestes a caducar havia um atraso considerável, o empreiteiro atrasara-se e obras não eram com ele. Médico no Amadora-Sintra, via-se enfiado em desenhos e alvarás em vez de injecções e analgésicos, a burocracia portuguesa faz qualquer um envelhecer. Na Câmara o arquitecto, um tal Alberto Henriques era um caso sério para o apanhar. Do telemóvel não atendia, do serviço diziam que estava em reunião, em Portugal quando se precisa de falar com alguém está em reunião.

As alterações no projecto já estavam executadas, mas a Câmara não aprovava, o plano da orla costeira, a Rede Natura 2000, a certificação do ruído, e muito mais. O Conrado, empreiteiro de manhã e alcoólico à tarde dizia que se avançasse a construção, a obra não podia parar, tinha outra no Algarve a seguir e se não fosse agora não sabia quando poderia voltar.

O projecto das alterações tinha já dois meses na Câmara, mas ainda não saíra das mãos do arquitecto Henriques. Tentou uma reunião, telefonou para vários lados, tente mais tarde, o senhor arquitecto foi almoçar. Um fiscal passara já uma vez, a ameaçar com embargo, era preciso acelerar, as pesadas multas desaconselhavam aventuras.

Tentou ser recebido pelo arquitecto, não logrando senão para três semanas depois, a licença caducaria entretanto e o fiscal, já antes a torcer o nariz não deixaria de actuar. Impossível, muito trabalho, reuniões, meta uma exposição.

Passados uns dias, a obra foi efectivamente embargada, contra-ordenação a caminho, o Conrado partia para o Algarve não sem apresentar previamente a factura, a licença na melhor das hipóteses só daí a três meses, e teria de suprimir na volumetria, e pagar taxas agravadas.

O transtorno era grande, mas havia que ter paciência, um colega do hospital, optimista dissera-lhe que em Cascais levara um ano, com um bocado de sorte ainda esse ano recomeçaria a obra.

O banco do Amadora-Sintra é um microcosmos de doentes e outros a viver da doença, noites de álcool e excesso de velocidade, cadinho da sociedade, violenta e desumana. Filipe estava de banco de terça para quarta, o rotineiro desfile de acidentados. Comera uma sopa no bar e avançava para mais um paciente, uma queda de motorizada, luxação, siga para o RX.

O rotineiro movimento de ambulâncias e sirenes é  a música da noite nos hospitais, mais uma e um ferido entravam agora, choque frontal no IC-16, a seguir ao Tribunal. A vítima sangrava muito, o outro falecera.

Filipe mandou avançar para a observação, o doente tinha hematomas na cara e quase não falava, a mulher e a filha aflitas vinham atrás, a fazer a identificação.

Debruçado sobre o sinistrado, Filipe reconhecia agora o arquitecto da Câmara, o Alberto Henriques, estava atordoado e o caso inspirava cuidados. Momentaneamente lembrou-se do processo e do embargo, ir-lhe-ia custar tudo para mais de cinco mil euros, e bastava ter pegado no processo uns dias antes, sobranceiro despachara-o no átrio do departamento.

Depois de exames e medicado, recolheu ao internamento, os bombeiros entregavam à mulher uma pasta com papéis que se espalharam com o choque. Depois correu a informar a família, não corria perigo de vida mas tinha ali para dois ou três meses.

Só dois dias depois o infausto arquitecto, agora a soro, recuperou minimamente. Durante a visita matinal, reconheceu o médico, o tal da casa nas Azenhas, e entre o silencioso e o encavacado perguntou pelo seu estado:

-Há-de ir ao sítio, arquitecto. Com três meses de “estaleiro”….- respondeu, distanciado e profissional, agora com o arquitecto de “baixa” é que o projecto nunca mais sairia .

Passadas duas semanas, o arquitecto teve “alta”, repousaria agora em casa, umas muletas como companhia para três ou quatro meses, longe da Câmara.

No dia em que saiu, ainda combalido procurou Filipe no seu gabinete, a agradecer a assistência, e a prometer celeridade no processo das alterações. Iria telefonar a um colega, para dar prioridade, os prazos têm de se cumprir e é o dinheiro dos contribuintes que está em jogo, afinal.

Meia hora depois, a enfermeira voltava, o senhor doutor pedia desculpa mas não podia receber o arquitecto, estava em reunião…


publicado por Fernando Morais Gomes às 09:16

16
Fev 11

Timor Português, Maio de 1974.Pedro Rendeiro, jovem alferes miliciano, mobilizado compulsivamente depois de  participar num protesto estudantil em Económicas, seguia numa missão de patrulhamento perto de Baucau, com dois praças do seu pelotão. Idealista e de esquerda, o 25 de Abril apanhara-o em Dili, regozijando-se à distância com os desenvolvimentos em Lisboa, cujo eco lhe chegava pelas cartas do pai, velho antifascista entusiasmado com a libertação. O tempo chuvoso originara neblinas e o Unimog serpenteava por sinuosas estradas de terra, entre os arrozais de Manatuto, lavrados por diligentes búfalos e velhos desdentados. No atravessamento de um rio, passando uma velha ponte de madeira, apodrecida,esta deu de si e o Unimog afundou-se, levado na corrente, junto com os três militares. Os corpos nunca apareceram, porventura atolados no lodo ou presa de algum crocodilo. Em Lisboa, o velho  professor Rendeiro, que semanas antes chorara de alegria com a chegada da manhã libertadora, chorava agora um filho precocemente desaparecido. Para ele, o mundo acabara ali, o quarto em Carnaxide sempre arrumado à espera de um regresso, qual D. Sebastião, idas angustiadas ao Ministério do Exército na ténue esperança de notícias, morte sem morto é difícil de sepultar. Os anos passaram, a presença de Timor nos noticiários deixava o velho pai a palpitar, tentando vislumbrar o filho no ecrã, escondido nas montanhas ou prisioneiro dos indonésios, tudo menos morto. Morreu de tristeza, o quarto de Pedro para sempre arrumado, a cama feita para o dia em que regressasse.

Em  Dezembro de 2010 Cristina Rendeiro, professora de português chegava a Timor-Leste, no âmbito duma cooperação com escolas locais. Filha de Jorge, o irmão mais novo de Pedro, a mística de Timor, causa nacional sobretudo depois do massacre de Santa Cruz, era para ela estimulante e desafiadora. Levava a história daquele tio morto e desaparecido de que o avô falava, sempre seguido de quebrantados silêncios, assunto tabu e amargurado, um antigo retrato de família, feliz, era tudo o vira dele . Em Dili alojou-se numa residencial, a escola era próxima,  vista privilegiada para o Tatamailau, ruas pejadas de crianças em bando e militares da ONU, muitos deles portugueses. Foi um desses que um dia conheceu num mercado, Gilberto Matias, de Marvão, três meses de Timor, um clima cúmplice logo no primeiro encontro em Dili.

Os primeiros meses decorreram com normalidade, a pobreza alegre do povo inspiradora, Gilberto preenchia os momentos de solidão com as conversas e saídas pela ilha em descoberta, nos dias livres.

Certo sábado foram em passeio até Baucau, casas desalinhadas, búfalos pachorrentos ornamentando as bermas. Num improvável restaurante tomaram um café, chapa de zinco como cobertura, algumas crianças jogando à bola. A moça que os atendeu era mestiça, meio europeia, meio maubere, longos cabelos negros, para cima de trinta e cinco anos, um dos miúdos era dela. Atenciosa, meteu conversa:

-Portugueses?

-Sim, estamos em Dili, andamos a conhecer a ilha

-Vieram ver o Grande Crocodilo…- sorriu, um velho liurai sentado na soleira da porta, com o seu galo de luta debaixo do braço.

-Como assim?- questionou Cristina

Não conhecem a lenda de Timor?- E com a sabedoria própria da idade contou a história, velha como ele:

- Há muito, muito tempo, em Massacar, na ilha dos célebres, vivia um crocodilo velho, sem velocidade para apanhar os peixes da ribeira, não teve outro recurso senão tentar a aventura em terra  para tentar caçar cão ou porco que lhe saciasse a fome. Andou, andou e nada conseguiu apanhar para comer. Resolveu regressar, mas o caminho era longo e o sol era quente. Esgotado, sentiu-se cansado e que as forças lhe faltavam e que, mais passo menos passo, ficaria ali como uma pedra. Mas o imprevisto fez que passasse um rapaz. O moço comovido, ajudou-o a arrastar-se até à ribeira. O crocodilo ficou-lhe agradecido e  ofereceu-se para, a partir daquele dia, o levar às costas pelas águas dos rios e do mar. Certo dia, angustiado pela fome e sem conseguir caçar, decidiu que comeria o rapaz. Porém, para alívio da consciência, consultou primeiro os outros animais sobre se devia ou não comê-lo. Desde a baleia ao macaco todos ralharam muito com ele acusando-o de ser ingrato. O crocodilo dispôs-se a partir para o mar e levar consigo o dedicado rapaz por quem, vencida a tentação, sentia amizade. Foi assim que convidou o rapaz a pular-lhe para as costas. Fazendo-se, então, ao mar, nadou, onda após onda, em busca das terras onde nasce o sol, convencido de que lá havia de encontrar ouro. Porém, quando, já cansado de nadar, pensou em dar meia volta e regressar às terras de origem, começou a sentir que o corpo paralisava e se transformava rapidamente em pedra e terra, crescendo, crescendo, até atingir as dimensões de uma ilha. Então o rapaz caminhou sobre o lombo desta ilha, rodeou-a com o olhar e chamou-a de Timor.

Terminada a narração, o velho saiu a enxotar um búfalo, o corpo curvado já vira muito sofrimento  na ilha-crocodilo,a moça mestiça ouvia, como quem já escutou dezenas de vezes, e curiosa abordou os clientes:

-Meu pai também era português como vocês. Mas morreu antes de eu nascer, nunca cheguei a conhecer. Minha mãe quando eu era pequena dizia que tinha partido em busca do crocodilo, e que só voltaria quando o visse gordo e feliz.

Cristina comoveu-se com a história de Natália, assim se chamava, e partiram, com a imagem do velho liurai e daquela gente simples em torno à casa no pensamento, o filho mais novo agarrando a perna de Cristina, sujo mas dócil.

Lá fora, a cem metros, entre os porcos que livres deambulavam em torno da casa e o inúmero ferro-velho  que  circundava o casebre, uma porta cor de azeitona enferrujada ,de um jipe, ainda permitia ler, já sumidas, as palavras “Exército Português”. O crocodilo ainda não está gordo nem feliz.


publicado por Fernando Morais Gomes às 11:07

15
Fev 11

José Diniz, canteiro, 33 anos, de Sintra, saía pela primeira vez da Metrópole e pelas piores razões. Solidário com a revolta dos marinheiros, preso com mais companheiros e embarcado no Luanda inaugurava naquele Outubro de 1936 a colónia penal do Tarrafal, na ilha de Santiago, coqueluche para presos sediciosos, nas áridas paisagens do Chão Bom, em Cabo Verde.Comunistas,anarquistas,anarco-sindicalistas,sumariamente julgados, embarcavam para o iníquo castigo a que Lisboa os condenava.

O capitão Martins dos Reis, famigerado militar, destacado do presídio de Angra para o novo campo, ia apostado em fazer que os  inimigos do regime não esquecessem aquelas férias, se de lá saíssem alguma vez. José Diniz, deportado com outros cento e cinquenta, mal chegado, foi de imediato colocado no transporte de pedras, sob vigilância apertada e sol abrasador. O campo, ainda em obras, era um rectângulo rodeado por uma vala  de quatro metros, com arame farpado, e um talude de três metros de altura, situado num dos locais mais insalubres do arquipélago. Colocados  em barracas de lona, sem casa de banho, toscos muros de tijolo com buracos no chão e latas de gasolina serviam para as necessidades. Como cozinha, um telheiro, onde indígenas cozinhavam algo a que dificilmente se podia chamar comida, de cheiro fétido e repugnante. Água, só dum poço, a oitocentos metros, salobra e transportada em latas. Para tomar banho, míseras gotas de água suja, despejada de uma lata com orifícios a simular um chuveiro.

José partilhava uma tenda com mais onze, entre eles, Bento Gonçalves e o Ernesto, padeiro em Lisboa. Nos primeiros tempos deu em chover, coisa rara, e as águas acumuladas em poças deram azo à reprodução de mosquitos, transmissores de paludismo. Sem assistência mínima e subalimentado, foi atacado de biliose. Em    poucos dias depois morreram sete, prostrados, sem conseguirem sequer andar, febris e delirando. Uma noiva desfeita, um trabalho pobre mas garantido para trás, enfrentava a iníqua punição pelo crime de discordar. Mero canteiro, não sendo doutor, o Aljube e o Limoeiro eram ténues de mais, o deserto africano haveria de domar os ânimos, pensava Martins dos Reis. Este, senhor do seu brinquedo entretinha-se a confiscar as encomendas que os familiares mandavam, com a desculpa de serem oferta do Socorro Internacional, montando mesmo uma cantina onde vendia as coisas apreendidas, em benefício da sua algibeira.

Os meses iam passando, as condições sempre a deteriorar-se, sem perspectiva de fim à vista. Em 37 lá chegou um médico, o Tralheira, sem condições para trabalhar, a passar certidões de óbito, e nova leva de presos. Bento Gonçalves, estóico, apoiava os mais desanimados, José arrastava-se sem esperança, esquecido num estéril descampado na fronteira sul do Inferno.

Em meados de 38, Martins dos Reis foi substituído por João Silva, na Europa, a guerra civil de Espanha terminava para logo começar a aventura alemã nos Sudetas. No Tarrafal, longe da Vida, a “frigideira” ameaçava agora os insubmissos cativos do arame farpado.

José Diniz, definhando e febril recusara-se certo dia a transportar pedras, o corpo ardia flagelado e desidratado. João Silva, por indicação do famigerado Seixas, fez conduzir o rebelde aos aposentos de “luxo” a refrear os ânimos.

A “frigideira” de cimento, sete de metros de comprido por três de largo, dividida em dois por uma parede interior, era o castigo sempre à espreita para os menos dóceis, luz e ar apenas através de pequenos buracos na porta. Durante o dia, o sol quente aquecia as portas e as paredes, insuportável, torturando os corpos desprotegidos, água só em pequenas quantidades. À tortura da sede juntava-se a fome, pão e água apenas em dias alternados, por vezes por períodos dilatados, aqueles que o director entendesse.

José aguentou 37 dias da primeira vez. Ao sair era um farrapo, mantido vivo pelo ódio mas mais respeitado pelos companheiros, testado na provação, silenciosamente condecorado pela dignidade. Nos dois anos seguintes, mais duas vezes regressou, a família em Sintra sem saber novas, noites e dias bebendo água fétida e espantando mosquitos, de quando em quando uma morte no campo a lembrar quando chegaria a sua vez.

Em finais de Novembro de 1941, nova visita à frigideira, repetentes, ele e o Ernesto Ribeiro, já debilitados, a biliose apoderando o corpo frágil,     quebrantado pelas sevícias e antecedendo o fim da linha: Ernesto, a 8 de Dezembro, José quatro dias depois. Na tenda apodrecida, Bento Gonçalves, comunista clandestino, sofria silencioso, pelo martírio, os companheiros obtinham finalmente a libertação, ele próprio preparado já para a sua vez, o dia de cortar o grilhão haveria de chegar, cedo ou tarde. E chegou. Para eles, tarde.

A 18 de Fevereiro de 1978 os corpos de 32 prisioneiros tombados no campo da morte lenta foram transladados para Lisboa e erguido um monumento às vítimas desse tempo infame no cemitério do Alto de São João. José Diniz, Ernesto Ribeiro, Bento Gonçalves e outros mártires do Tarrafal repousam finalmente na terra que lhes expropriou a liberdade mas não conseguiu roubar a dignidade.


publicado por Fernando Morais Gomes às 13:34

13
Fev 11

Uma reunião no escritório de Augusto Frazão, colega advogado estabelecido nas Avenidas Novas trazia António Rebordão a Lisboa a um prédio curiosamente contíguo àquele onde vivera muitos anos e praticamente nascera. O velho edifício dos anos vinte ainda lá estava, quase totalmente ocupado com escritórios e a placa central com carros, descaracterizada, amorfa, por momentos, enquanto o colega não chegava viu-se devolvido a um passado de mais de quarenta anos antes.

Morava há muito na zona de Sintra, uma casa de Verão da família com o tempo passara a ser de todo o ano, a cidade onde nascera e crescera cada vez mais só para ir ao teatro ou a reuniões de trabalho, e francamente, não desejava voltar. Não se deve voltar ao lugar onde se foi feliz, dizem, e o seu caso confirmava o ditado.

O velho prédio lá estava, recheado de memórias e sons difusos dum passado adormecido. Lembrava o enorme corredor da casa com oito assoalhadas e duas criadas que o avô autoritário mantinha em sentido, disciplinadas, velho capitalista adepto da poupança. Com ternura revia em pensamento as brincadeiras no saguão das traseiras, única entrada autorizada aos empregados, o leiteiro com vasilhas de metal, patos e galinhas em capoeiras numa cidade rural ainda, no Natal povoada com perus e patos vendidos na rua e que assustados seguiriam para a mesa da consoada previamente embriagados de véspera. Recordava ainda a escola primária, na rua contígua, a velha professora, a D. Hermínia, o bibe branco, o bivaque da Mocidade, o carocha preto do pai, as cadernetas de cromos e os fascículos do Cavaleiro Andante. Tudo desaparecido, arquivado em velhas fotos ou lápides de cemitérios, anónimas e definitivas.

A igreja de Fátima, próxima, lembrou-lhe as missas de domingo com a avó, a primeira comunhão, o crisma, os veludos roxos de luto que durante a Semana Santa cobriam os santos, convidando ao jejum da carne para tudo acabar num apetitoso borrego no domingo de Páscoa e o fato com calções aprumado para o  habitual passeio de cacilheiro ou na mata de Monsanto.

A reunião tardava e António deu consigo a deambular sentado, fantasmas vários passavam mas só eles os via: o Chico polidor, enfrascando-se no lugar de hortaliça do Narciso, o Almeida, da mercearia, do açúcar mascavado a peso e do azeite à vasilha, a casa do médico judeu, refugiado da guerra e hoje com netos reputados cirurgiões, e os amigos de infância, sempre miúdos e de calções, a quem perdera o rasto, um ou outro pensou já ter descoberto no Facebook, mas não ousava averiguar, depositados no passado, na secção de boas memórias , prateleira da saudade.

Puxando de um cigarro ,na sala de espera, ao toque dum sino vizinho, deu consigo  a recordar a primeira comunhão, quando perante o padre Teodoro e apenas sete anos, no confessionário da igreja de Fátima tivera de revelar terríveis pecados mortais, a morte por afogamento de uns coelhos recém-nascidos na capoeira da  Gracinda, que ufanamente, com a Lígia e a Aida, amigas de infância, atiraram a um poço julgando serem ratos e assim fazendo um favor que por certo seria agradecido, e afinal sem saber porquê, postos a um canto de castigo depois duma tareia desconcertante, cruel ingratidão para com quem libertara o quintal de roedores.

Ali fora feliz. Os jantares de Natal com a família reunida, mais de trinta, avós e netos, criados, primos do Alentejo, o dia em que concluída a quarta classe o avô lhe oferecera o primeiro relógio e cem vultosos escudos depositados no Montepio para quando fizesse vinte e um. E também a vaga sensação de que apesar de feliz, nem tudo corria bem. Uma guerra em África de que pouco sabia, até o tio João ter sido mobilizado para Angola, o Zeferino, seu explicador de matemática, que à boca pequena se dizia ter estado preso num tal Tarrafal, e aquele dia em que, com a televisão e a rádio silenciadas e passando música clássica foram todos à estação do Rego acenar com lenços brancos ao comboio que levava o caixão de um senhor morto depois de ter caído duma cadeira, pessoa importante, disseram, até nem houve escola.

Veio Abril e a adolescência esperançosa - a visão ingénua do Egipto de hoje varias vezes o havia reportado para esses dias gloriosos – sonhos e lutas, a licenciatura, projectos cumpridos e por cumprir, e o mundo cresceu para fora das Avenidas Novas e foi até onde os aviões e a vontade o levaram, sempre retornando e sempre partindo,

Os fantasmas à solta nas Avenidas Novas recolhiam agora, a secretária chamava para a reunião, telemóvel desligado e o PC à mão para as notas e os mails que se impusessem. O Augusto Frazão chegou atrasado, amável e sorridente recebeu-o á entrada do gabinete:

-Meu caro Rebordão, desculpe o atraso, o trânsito, sabe…. Eu sei que você é um homem lá da linha, outra calma, é um sortudo, você sabe lá o que é o inferno de trabalhar em Lisboa. Deu com a morada facilmente?

António sorriu e foi entrando, sem pressas:

-Não foi fácil, é raro vir para estes lados, o trânsito está sempre a mudar. Come-se bem por aqui?....


publicado por Fernando Morais Gomes às 23:59

Faça chuva ou faça sol, há dez anos que os dois professores , já aposentados ,rotineiramente se encontram pela manhã para uma bica e uma queijada, habitual tertúlia no parlamento do povo que é o café do Leónidas. Horácio Sarzedas, dado à elucubração e debate, invariavelmente puxando do seu cachimbo e fazendo as palavras cruzadas, já o Jorge Pimpão, antigo professor de Desenho mais atento à pagina dos mexericos e fait-divers, maroto cobiçando o poster central  dos jornais de fim de semana.

Pela manhã  de domingo, mais uma rotineira bica  cheia para o Pimpão, café simples,com adoçante, para o Horácio, o Pimpão abrindo as hostilidades:

-Então diz-me lá,meu caro, que estás tu a achar do Sócrates?

-Eh pá, o Sócrates quanto a mim  ainda estou a estudá-lo. Acho que não valoriza muito os sentimentos, é mais pelas ideias, embora ache que aí não se deve levar muito à letra. - sentenciou o Horácio-O que eu acho é que num primeiro momento ele leva os interlocutores a pôr em causa as suas próprias concepções acerca de algum assunto; depois, condu-los a uma nova perspectiva acerca do tema em questão. Daí que perante o questionamento das pessoas, o Sócrates  questiona os seus preconceitos acerca dos assuntos, conduzindo a novas ideias acerca do tema em discussão, as dele- perorava, ufano,baforada do cachimbo sala fora, no Leónidas pode-se fumar.

-Mas as  convicções  dele deixam-me muito a desejar, Horácio, pelo que leio…

-Acredita, Jorge, a minha leitura é a seguinte: as crenças do Sócrates, em comparação com os seus antecessores e correligionários são difíceis de discernir, ele sempre foi moral e intelectualmente diferente de outros do seu tempo. Vê bem, quando foi acusado na praça pública, usou os seus métodos para demonstrar as posições erradas dos seus detractores. Acha  do que li dele que sempre acreditou que recebeu uma missão especial  ou divina para prosseguir a sua obra.

-Lá isso é verdade: ele acredita, quanto a mim que a excelência moral é uma questão de inspiração e não de parentesco ou compadrio. Isso talvez tenha sido a causa de não ter se importado muito com o futuro dos seus filhos e concidadãos- acrescentou o Pimpão, passando os olhos pela foto da Eva Longoria, de página inteira.

-A intenção dele era levar as pessoas a sentirem-se ignorantes de tanto perguntar, problematizando sobre conceitos em que as pessoas tinham dogmas.- continuou  Horácio, professoral -Aliás, de tanto questionar muita gente, sobretudo os supostos sábios, começou a ganhar inimigos. Sócrates sempre acreditou  que até ao relacionar-se com o parlamento  estaria a ser hipócrita.

-Mas isso não fez dele um déspota antidemocrático?

-A minha leitura-continuou, refastelando-se agora na cadeira- é a de que ele abandonou a preocupação em explicar -se e concentrou-se  nos problemas concretos. No entanto, envolveu-se em polémicas profundas, pois enquanto os opositores sempre procuraram fazer polémica com as suas posições sobre o bem e a justiça ele sempre trabalhou com dados, a partir dos dados empíricos, sem se preocupar com a investigação da essência das coisas, da justiça ou do bem e a partir da qual a própria realidade pudesse ser avaliada.

-Ainda se estivesse bem rodeado….

-E estava, era vasto o grupo de discípulos e amigos,Jorge, vê bem, o Platão,o  Alcibíades, Xenofonte, o Antístenes…

-O quê?- Pimpão , sorrindo atalhava agora o inspirado e tagarela interlocutor. –Mas não é desse Sócrates que estou a falar é do primeiro-ministro,o José, o do Magalhães e do TGV!- e largou uma gargalhada, puxando da carteira para pagar e ir até Sintra.

Horácio parecia agora irritado por lhe terem interrompido o discurso e amuado levantou-se também para ir até ao almoço, trivialidades de política doméstica não eram consigo, antes  reler a República de Platão no varandim do Angra ao fim da tarde. Já à porta, o Pimpão ainda ironizou:

-Cuidado com o almoço, Horácio, em vez dum tinto de Colares não bebas alguma cicuta por engano, como o outro,é mau para as hemorróidas! E saiu a almoçar. O Leónidas coçando a orelha  veio do balcão  levantar a mesa e ainda comentou com a velha Alice,que terminava o chá preto, achando-os "apanhados" do clima:

-Isto há cada uma!...Digo-lhe uma coisa, amiga Alice, só sei que nada sei!!- desabafou,recolhendo o jornal e as chávenas.


publicado por Fernando Morais Gomes às 14:06

12
Fev 11

Era noite, lunar e cintilante, na finistérrica falésia junto à mata atlântica, George Till, escritor no exílio e apátrida de Nações, arauto de futuros que não virão, deambulava subindo a Caverna onde explorador avisado buscava a Luz resplandecente e redentora a devolver-lhe palavras capturadas por cronológicos dias, imanentes e expectáveis. Liberto na Caverna, viajara até ao Futuro e triunfante voltava agora, indomado eremita, ao refúgio seguro de cheiro a pinho e gosto a mar. Visionário, volvia à Casa Branca depois de peregrinar por sinuosas grutas, neófito espeleólogo de amarguras e arqueólogo da ansiedade, na holográfica mochila trazendo sempre a venerada imagem da Serra-Mãe, que agora de novo o acolhia, pródigo filho, outrora  ligeira palanca na savana quente, mais tarde urso pardo nas frias terras do Norte.

O editor apertava com o novo livro, mas o tempo era seu. Sintra-Serra vigiava, a poção fervilhava no caldeirão, apurando, ainda não era a hora de beber e soltar a Palavra, disforme sombra ainda na escura pedra da Caverna.

Faltava-lhe o Fogo. O Fogo da Caverna, quente e aconchegado, mas também castigador e purificante, escritor ainda sem palavras como pescador sem anzol, apenas vultos de variadas formas, passando, prisioneiros, como ágeis faunos na noite. Na escuridão, George buscava a Claridade e lá estava ela, denunciando-se, lenta e cristalina, sua,  na esquina da Casa Branca, faróis pirilampos  guiando até ao virgem  papel onde logo seria Fogueira.

Luz. Luz tal que lhe encadeava a vista, logo um cálice de cidra a saciar o calor da noite gelada e céltica. A Luz projectava para a caneta redentora, escrevendo para o impaciente editor e o encoberto público, a viagem em torno da Casa Branca desaguava agora na sala grande, guardiã de livros e quadros, capturada que fora a Luz.

Ainda essa noite Rafael Hytlodeo viria visitá-lo, açoriano e amigo,   músico com refúgio na Adraga que com frequência partilhava o noctívago passeio pela falésia onde se inspiravam para novas prosas, George  silenciosas mas gritantes ,e gritadas, Rafael buscando o harmónico e diáfano som do silêncio. Estóico e eremita, fugira da Grande Cidade, também ele exilado como George, marginal nas margens dum rio que nunca  atravessava mas que invariavelmente via serpentear em direcção ao Grande Oceano. Nas horas vagas dedicava-se a uma biológica horta, vegan por opção, campestre por convicção, insatisfeito na construção de temas e sons que logo rasgava para de novo construir, recomeçar, como Sisífo incessantemente subindo à montanha. Em tempos unira-se a Maude, inglesa alva mas distópica, não resultara, como George, alma gémea, vivia no exílio daquela ilha de Elba Lunar , donde, quem sabe, partiriam uma radiosa manhã para os seus Cem Dias de Luz, desafiadores, labirínticos, trágicos.

Till já várias vezes morrera em páginas sem fulgor e logo Fénix renascia liberto e libertador, peregrinando como anacoreta em torno da Casa Branca, qual pagador de promessas em volta da Luz vaginal . O novo livro era um desses momentos, sentia-o, a Lua Cheia ajudaria a agarrar a palavra fértil, soltando aferrolhados silêncios no Cofre do Tempo, valiosos, secretos, logo gritados em alvo e cúmplice papel branco, à media luz da casa refúgio onde esculpia poemas em cristal e perfurantes palavras em pedra.

Rafael encorajava-o, umas vezes apoiando-lhe significantes poemas, outras desconhecendo  encobertos significados, juntos e junto ao mar partiam em fins de noite em audazes barcos para Ítaca onde formosas Penélopes os esperariam na espuma dos dias, bravos lutadores, tecendo os novelos durante o dia, para à noite, não chegando Ulisses a bom porto, os desfazer, novo e renovado Principio, na interminável espera sem fim. Sem fim, porque sem fim era  a Viagem que haviam encetado. Já uma vez fora  à ilha, com George, momento atlante e atlântico para noutra mágica montanha renovarem a busca da Luz, solidários e audazes. Eram as idas ao Futuro donde regenerados voltaram depois,dispostos a incomodar neófitos públicos, surpreendidos da surpresa, assim servos da Luz e infantes da Claridade.

A Lua púrpura de Sintra esbatia argêntea claridade sobre o promontório, George e Rafael sentavam-se agora num penedo adornado de espessa urze e zambujeiros. Também ela filha da Luz ,contemplava os seus arcontes, o Apolo ilhéu e atlântido, minimal compositor e bardo do Futuro, e George Till,veterano, ambos cintilantes, eucrónicos na Noite do Tempo, enviando salvadoras palavras no bico duma gaivota que solitária rasgava os céus rasgando a nova Finisterra.


publicado por Fernando Morais Gomes às 18:36

Praia Grande, sábado à tarde. Mirones a ver o mar, a ver e ser vistos,  passeio pelo areal, o mar açoitando a piscina, a Galé e o Angra servindo imperiais e gambas com vista para o infinito.

Nem o Egipto, nem a crise, a Rogério Pedreira apenas uma notícia interessou ,discreta num matutino, o suicídio em Cascais de um homem a quem um cancro terminal precipitara de um quinto andar, na sala um CD reproduzia o Requiem de Mozart,  fotografias de família desarrumadas no chão.

Rogério, médico no IPO, lembrava-se daquela pessoa, o sr. Gustavo, seu doente, bancário reformado, durante uns meses alegre e confiante nas consultas, os tratamentos garantiam uma ligeira regressão, não o via há mais de um mês. A notícia era vaga, ilustrada por uma foto do falecido, aí com dez anos menos, discreta entre um assalto em Algés e um incêndio em Setúbal, a esposa mostrava-se desconsolada. Esta era a parte da notícia que para ele não batia certo. O Gustavo sempre se dissera viúvo, lembrava-se mesmo de o ouvir dizer que jantava na leitaria da esquina, não sabia cozinhar, teria casado nesse período?

Ao chegar a casa buscou um bloco-notas e lá descobriu os dados do doente agora falecido: Gustavo Silvestre, 57 anos, de Soure, morador em Queluz. Viúvo, um filho.Pólipos no intestino grosso e sangue nas fezes. Metastizadas para fora do cólon detectaram-se células cancerígenas nos gânglios linfáticos já disseminadas pelo fígado. Um número de telefone deixou-o hesitante: telefonaria a dar os pêsames e assim saber quem era a esposa que os jornais falavam, ou passaria adiante, médico e morte são rivais mas também parceiros.

Ligou. Após alguns segundos, uma voz feminina, madura, atendeu do outro lado:

-Está lá?

-Sim? Boa tarde minha senhora, é da família do senhor Gustavo?

-Sou a viúva…

-Sou o dr .Rogério Pedreira, e até há pouco fui o seu médico no IPO. Vinha apresentar as minhas condolências. O caso dele era sério, mas foi triste que tenha desistido, ainda havia esperança numa vida com dignidade, pelo menos…

Do outro lado, após breve hesitação, a viúva enigmática respondeu:

-Muito obrigado senhor doutor. Mas a doença que o matou foi outra…

-Outra? Como assim?

-Senhor doutor, posso passar no IPO um dia destes? Gostava que soubesse a verdade, era um alívio para mim também….

-Com certeza, dona…

-Sara. Sara Geraldes.

-Apareça então segunda-feira, D.Sara, dou consulta a partir das três, passe um pouco antes.

Na sala de espera, no IPO, uma senhora, menos de quarenta anos, fato azul elegante e óculos escuros aguardava em silêncio. Antes de a receber, Rogério mirou-a atentamente, médico sabe os segredos do corpo mas desconhece os segredos da mente, cada doente com seu passado em busca de algum futuro, ameaçado, se for no IPO.

Mandou entrar, a senhora cumprimentou, discreta mas afável.

-Pois mais uma vez os meus sentimentos, minha senhora. O seu marido era um doente abnegado, e se quer que lhe diga, até persistente, fiquei admirado com este desfecho bastante triste. E já agora, foi para mim uma surpresa a sua existência, pois sempre me disse ser viúvo…

-E era senhor doutor. Vou-lhe contar tudo e talvez entenda o que se passou…

-Faz favor.

A viúva, aspecto bem tratado, quase da mesma idade que o médico, parecia-lhe, desfiou a história lentamente:

-O Gustavo e eu tivemos uma relação mais de dez anos. Fomos colegas no banco e discretamente mantínhamos encontros em segredo, ele gostava da mulher e nunca quisera dar-lhe esse desgosto, tinha uma vida dupla, se assim posso explicar…

-Compreendo.

-Depois da morte da mulher, adoeceu como o doutor sabe, e de livre vontade entendeu que devíamos casar, fazia questão. Eu hesitei, o filho nada sabia, nem de mim nem da doença e podia não entender. E não entendeu. No dia do casamento, o Gustavo telefonou-lhe a contar, mas ele ficou possesso e disse que nos matava, que era uma afronta à memória da mãe e que eu era uma rameira, enfim…

-Caso complicado, estou a ver…

-De qualquer modo casámos. Há três semanas. Pelo registo. Ele sentia a doença a avançar mas vou recordar para sempre estas três semanas de felicidade, apesar da amargura por causa do filho. Há uma semana ele foi lá a casa, embriagado, e disse-lhe que era um pulha e sem vergonha, e que quando morresse o mandaria para a vala comum, cuspindo  depois em cima. Foi muito chocante, até disse que um cancro só ainda era pouco castigo.

-As famílias são uma coisa complicada…-comentou, ele próprio com o casamento na corda bamba.

-A discussão deixou-o muito abalado, o filho proibiu-o até de ver o neto. Nessa noite foi deitar-se e não pregou olho, esteve dois dias no sofá a ouvir música e a beber vinho do Porto, apoquentado. Até que na quarta-feira, levantou-se às oito para ir à casa de banho e já só vi as cortinas da varanda a esvoaçar e um ruído de travagem na rua.

Um cancro flagelando o corpo, um filho flagelando a alma, despedia-se, uma carta para Sara no aparador, companheira dos dias do fim, saía de jogo antes que derrotado e incompreendido chegasse  o seu dia. Rogério acompanhou a viúva à porta e voltou absorto para os seus doentes, terminais, uns  famintos de vida ,outros sem ter para quem viver, o dossiê de Gustavo enviado para o arquivo morto.

Praia Grande, sábado seguinte. No Egipto exultava-se  agora, jovens surfistas cortavam as ondas, doses de amêijoa voavam para a mesa do fundo. Rogério, levantando os olhos do mórbido matutino das desgraças por momentos pareceu ver o Gustavo ao fundo na falésia, mirando o horizonte e ouvindo o Requiem de Mozart. R.I.P.


publicado por Fernando Morais Gomes às 10:47

11
Fev 11

Nove anos insepulta na casa onde morreu, no Grande Subúrbio anónimo e cruel, rodeada de vizinhos que nada estranharam.Vizinhos mas forasteiros, casas para dormir não para viver, condóminos da indiferença de costas voltadas para as portas da vida. Todos culpados todos inocentes, quem manda morrer em silêncio e para mais no quarto andar.Um nome: Augusta. Augusta, insepulta na pirâmide onde o Anúbis suburbano a deixou cativa, condenada pelo crime de ser velha, pobre, e doente, agravantes fatais no processo- crime da sobrevivência.

Havia um primo que nunca forçou a porta porque  faltava uma ordem do Tribunal , porta é porta, e depois havia que pagar uma nova, quem é vivo há-de aparecer, ainda se houver herança atrás da porta...

Havia a  nefanda segurança social que nunca estranhou, hordas de velhos mendigando dignidade,mais um papel, apenas um número, um código postal na Rinchoa,que importa, a morte resolverá.

Havia um polícia grotesco arrotando alarvidades do alto da pungente cretinice da farda sagrada que tudo permite, petulante.Se estiver morta cheira mal , quem cheira mal dos pés e tem mau hálito logo está morto, os Watson  da Rinchoa nunca se enganam debaixo da farda protectora.

Havia um cão cúmplice na vida e parceiro na morte, e um periquito à janela no sarcófago do quarto andar, todos orfãos da solidariedade para a qual só há tempo em  chamadas de valor acrescentado que aliviem consciências apressadas, dois minutos que há que ir ver a novela.

Nove anos. Nove anos de chão frio, muitos invernos e verões, entradas e saídas, a campaínha silenciosa, no correio só facturas.E a solidão.Ninguém a saber daquele número de contribuinte com pessoa dentro.

Apenas e retumbante, o Grande Urubu, o Fisco predador.

A penhorar.1400 euros, crime de lesa-cofre, a justiça com a habitual injustiça.

Aí foi lembrada, com juros de mora e sem aviso de recepção ,com a canibal comitiva do  necrófito oficial de diligências, do boçal policia e uma nova dona que nunca viu a casa mas alarve comprou.

1400 euros.

1400 euros, quanto foi  necessário para que se levantassem  celulíticos traseiros a saber se os números tinham nomes, lágrimas, dores, risos,para predadores e majestáticos logo os confiscar, os bens primeiro, a dignidade depois.

É Portugal e é 2011.


publicado por Fernando Morais Gomes às 18:12

10
Fev 11

O groom do Hotel Borges abriu-lhe a porta, prestável, o vulto de sobretudo e chapéu preto perguntava pela hóspede do 308, o pai ou um tio, pensou, ar sério, chapéu enterrado, um carro aguardava não longe da Brasileira. Era sábado, Lisboa dormia, despovoada, as famílias a banhos em Sintra e na Parede. Contactada pelo telefone, mandava subir o visitante, trazia uma garrafa, um vinho do Dão, descortinara o groom de soslaio, antes dele entrar no ascensor.

Com o coração a palpitar, Mercedes abriu-lhe a porta, olhando em volta, nenhum hóspede no corredor, e mandando entrar, logo segurando  o sobretudo e chapéu. Confidenciara a António Ferro o desejo de o conhecer ee le correspondia, para mais agora que a Garnier não o largava um minuto.

Raramente saía para encontros mundanos, eremitando no Estoril ou em S. Bento, mas os agradáveis passeios com a francesa no Vimeiro devolveram-lhe nesses meses alguma juventude, comprara mesmo um fato de linho,branco, e botas novas, pinga amor nas horas vagas,casado com a Nação. Pela tarde tomara chá com Cristine, nova carta ardente da frágil admiradora trouxera-o directo  para o Chiado a terminar o sábado.

Mercedes Feijó, filha de poeta ,mãe nórdica, uns anos mais nova, já lhe havia escrito outras cartas de exaltação e apoio, que sem responder contudo guardara, expectante. O doutor Salazar, já nos sessenta, provocava-lhe rubor, a personalidade determinada e os cabelos esbranquiçados conferiam-lhe o ar seguro dum anjo da guarda protector e vigilante. Ele, resguardado mas não abstémio, cedia agora à terrena e carnal tentação de macho com cio. Os mexericos sobre a sua misoginia divertiam-no, e lembrava agora a primeira vez, em Coimbra, ainda seminarista, com a Felismina. O Manuel, hoje cardeal, ficara de guarda, enquanto ardendo em fé numa esteira da República dos Grilos penetrava os insondáveis e húmidos desígnios de Deus.

Mercedes buscou dois copos e sentou-se na poltrona a seu lado, já ele  tirava o casaco e servia o vinho, cavalheiro:

-Então a Mercedes costuma escrever? Saiu ao seu pai por esse lado, mas no resto é a sua mãe tal e qual- avançou, brindando, recordava a sueca anos antes, já viúva do António Feijó, o Leitão de Barros apesar de só ter olhos para  um cenógrafo da Tóbis gabara-lhe a beleza num jantar da União Nacional.

-O senhor professor lembra-se dela? Que memória formidável, eu…

-Chame-me António- atalhou, pousando-lhe a mão sobre a perna quente e vigorosa, ardendo sob um vestido de chantung estampado.

Mercedes ruborizou, a intimidade com o presidente do Conselho a quem só raras vezes vira de longe e ouvia com voz firme na Emissora Nacional, deixava-a entorpecida, bebendo o Dão de um só trago, lembrando-se depois  que até nem gostava de vinho.

-Muitos pensam que sou bota-de-elástico, mas até aprecio um bom teatro, e boa música, zarzuelas sobretudo. Zurzem contra mim porque que prossigo a missão que a Providência me confiou mas ignoram o que é ser português das quinas e cristão temente a Deus.O Norton de Matos ladra muito, mas sabe que ainda usa ceroulas, o biltre?- confessou, divertido e oferecendo-lhe  a mão com que ferreamente governava o rincão.

-Sr. Presidente, eu..

-António…

-António, deixe-me dizer uma coisa. Desde há muito que guardo todos os seus discursos, arquivo todas as fotos. Como pode ser-se tão generoso, entregar-se sem nada pedir em troca  quando podia ter uma esposa e filhos que por certo o adorariam, você que é a locomotiva do nosso Portugal…-Já o vinho descomprimia os gestos e libertava o verbo, uma tímida festa acariciava a cabeça de António, o timoneiro,  silencioso e servindo-lhe outro copo, sem pressas.

Mercedes, vaporosa e  nas nuvens, saiu por instantes, prometendo regressar logo, Salazar aproveitou para mirar o quarto e deitar um olhar para a rua. No Chiado, lá fora, um carro apressado guinava para a António Maria Cardoso, um jovem algemado era levado em passo célere. O Agostinho Lourenço  não dorme, pensou,  entre a ansia pela conquista próxima e a visão de mais um ingrato apanhado pela zelosa polícia, pátria e prazer escrevem-se com a mesma letra.

Do quarto contíguo assomava agora Mercedes, qual vaporosa valquíria em lingerie negra e acetinada, soutien rendado realçando uns generosos seios, a ruborizada admiradora do governante pronta a qual felina governá-lo agora. Salazar sorriu, com o ar seráfico de sacristão em dia de procissão, ela logo o envolvendo e puxando para o leito.

Já despojado do fato e das ceroulas de linho- afinal também usava, troçou Mercedes, gulosa - o mais dedicado servidor da pátria estava agora capturado , obediente servo nas suas mãos aveludadas,na vizinha PIDE e à mesma hora outro servo por certo também dominado à mão de fogosos e não tão aveludados agentes. Uma hora mais tarde, já saciado, de chapéu enterrado, deixava o hotel, em silêncio, o groom olhando de lado o  avaro  visitante que nem um centavo deixava. A hóspede do 308 telefonara a encomendar uma ceia, no dia seguinte a Almira rebentaria quando lhe contasse na Ferrari.

No dia seguinte, ainda o baton forte e pele macia de Mercedes se não desvanecera, António discursava num Encontro de Professores de Moral, solene e patriarcal: “Portugueses: Ensinai aos vossos filhos o trabalho, ensinai às vossas filhas a modéstia. E se não poderdes fazer deles santos, fazei ao menos deles cristãos”.

Cristão e abnegado santo, condestável da castidade, anjo de Portugal, no sábado seguinte, peregrino voltaria à sacristia do Borges onde em oração e jejum acenderia nova vela.


 

publicado por Fernando Morais Gomes às 23:34

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