por F. Morais Gomes

10
Fev 11

Mar de Andaman, oeste de Sumatra, mais um dia de buscas subaquáticas findava e Robert Benning , o caçador de tesouros, atacava um revigorante gin tonic no convés do Octopus deitando um olhar sobre o mapa que  Dionísio Garnel, (Dick, como lhe chamava) elaborara. Pelos cálculos de Garnel, arqueólogo subaquático, ali estariam os destroços do Flor de la Mar.

Benning participara já em várias expedições, fundara mesmo uma empresa de buscas na Austrália, a Secret Seas, o valioso tesouro e a adrenalina da busca levaram-no a abraçar o projecto. Garnel chegara a Malaca um mês antes, um almoço de bacalhau no Portuguese Settlement selara a colaboração.

Na noite de 20 de Novembro de 1511 navegando de regresso à Índia com o valioso espólio da conquista de Malaca, uma tempestade fizera naufragar o Flor de la Mar, onde seguia Afonso de Albuquerque. O naufrágio fez numerosas vítimas, Albuquerque salvou-se apenas com a roupa que trazia e com auxílio de uma jangada improvisada. Perdeu-se então o valioso saque da conquista de Malaca, presentes do rei do Sião, bem como toneladas de estátuas em ouro e em tamanho natural, cofres cheios de diamantes e rubis, moedas portuguesas, árabes e chinesas. Pelos dados de Garnel, apenas dois dias depois da saída do estreito de Malaca, a frota fora atingida por uma tempestade e a nau encalhara em Tenga Reef, no nordeste de Sumatra, próximo a Diamond Point, sendo despedaçada pelas ondas enquanto os tripulantes tentavam salvar-se. Dos 400 homens, apenas 3 sobreviveram.

Robert e Garnel haviam-se conhecido num chat de mergulho subaquático, a troca de informações levou-os a acertar a expedição, a partir de Malaca. Um vindo de Perth, o outro de Lisboa.Pior era a posição do governo da Malásia, cujas leis proibiam a retenção de tesouros, punindo a descoberta de salvados não declarados como pirataria, havia que não facilitar, a guarda costeira local já lhes visitara o Octopus no mar de Andaman.

No dia seguinte, Robert retomou os mergulhos, enquanto Garnel monitorizava, dois indonésios tripulavam. Mergulhador exímio, nadava como peixe naqueles mares antes portugueses, escutando apenas a respiração, peixes grandes e raias deambulando, perigosos peixes-pedra obrigando a atenção, o veneno segregado pela barbatana era o maior perigo para um mergulhador incauto. Fazia uma semana que repetia mergulhos, a zona de busca apertava,pelas descrições de João de Barros nas “Décadas da Ásia” só podia ser ali. Até que finalmente a visão de um amontoado de madeiras carcomidas e uma âncora enferrujada no fundo do mar deram esperança ao australiano. Nadando entre os destroços, um pequeno baú quase desfeito continha moedas, poucas e espalhadas,  recolheu as que pôde e emergiu eufórico ao encontro de Garnel:

-Então? Que me dizes Dick ? Poderão ser do Flor de la Mar?

O arqueólogo analisava, minucioso, eram moedas portuguesas efectivamente:

-Há duas espécies aqui: vinténs, do tempo do nosso rei João II, de prata, e justos em ouro. Vês o desenho? Tem o rei sentado no trono empunhando a espada da justiça. É desse tempo e é português com toda a certeza. Mas há aqui uma ainda mais rara: o índio de prata, uma moeda que evoca a descoberta do caminho marítimo para a Índia. Dum lado tem o escudo real do outro a cruz de Cristo. Uma coisa é certa: os destroços são de um barco português!

No convés, um dos indonésios, agitado, alertava para a aproximação de uma lancha da guarda malaia, as moedas logo foram escondidas num balde com água. Exibida a documentação, tudo estava em ordem, para todos os efeitos dois turistas à pesca nos mares do Sul. Preparavam-se para regressar à lancha quando uma voz agitada e repetitiva soou no rádio dos guardas. Mayday! Mayday!, foi apenas o que entenderam. A cara subitamente pálida deixava preocupação, o mar parecia cavado, um silêncio profundo no ar deixava a sensação de falsa calma, os guardas gritavam, imperceptíveis:

- Mendekati gelombang raksasa!(*)O Centro de Tsunamis de Jakarta está a  lançar um alerta para  a região do Pacífico!. E estamos a trinta milhas da costa!

(*)Aproxima-se uma onda gigante!

 

Os guardas costeiros corriam para a lancha quais peixes voadores, Robert e Garnel também se apressaram a levantar âncora, um vento sussurrante prenunciava a onda gigante a menos de vinte milhas.

Nem meia hora era decorrida quando uma vaga de sete metros, paulatina e triunfante enrolou o Octopus, engolindo-o implacável, o balde das moedas devolvido às profundezas, a água assassina galgando vinda de sul. Ainda com um precioso vintém na mão, Dionísio Garnel aprestava-se a colocar o salva vidas quando a água invasora os abocanhou arrastando para o fundo, novos companheiros da nau afundada, as moedas devolvidas ao segredo do mar.

Era 26 de Dezembro de 2004, Dionísio e Robert foram nesse dia duas das mais de duzentas mil vítimas do mortífero tsunami do sudeste asiático, depois de uma ruptura na zona onde a placa tectónica da Índia mergulha por baixo da placa da Birmânia.

A Flor de la Mar por instantes desperta, continua dormindo no mar de Andaman.


publicado por Fernando Morais Gomes às 00:48

09
Fev 11

Já desde Livorno que corria de boca em boca, uma exótica e vistosa comitiva aproximava-se da Cidade Eterna, estranhas e monstruosas bestas desbravavam a Via Ápia sem que fossem repelidas, o povo estranhava.

Naquele 9 de Março de 1514,fazia a entrada nos Estados do Papa uma luxuriante embaixada do rei de Portugal, o poderoso D.Manuel com fausto fazia alarde dos sucessos da sua navegação, fazendo agora tributo ao senhor da cristandade.

Tristão da Cunha, o plenipotenciário, instruíra Garcia de Resende para que distribuísse moedas de ouro pelos pobres e fosse esmoler para com as igrejas, o que o secretário do embaixador fazia, para gáudio dos locais que assim davam vivas àqueles bizarros mas opulentos portoghesi. O Papa estava avisado da chegada,Leão X receberia a comitiva no dia 20,dispensada a bula de entrada nos Estados Pontifícios.

Diogo Pacheco e João de Faria montavam guarda ao rico tesouro que seria ofertado, e a custo mantinham calmos os exóticos animais, tirados de seus sossegos em paragens longínquas e agora no reino dos baptistérios e campanários. Dois leopardos, uma pantera, papagaios ,perus raros e cavalos da Índia, o circo real chegava à cidade boquiaberta. Mas, mais que todos, impressionava um enorme elefante albino de doze palmos de altura carregando um palanque de prata no dorso, em forma de castelo, contendo um cofre com os presentes reais, entre os quais paramentos bordados com pérolas e pedras preciosas, e moedas de ouro cunhadas para a ocasião. Um rinoceronte indiano estivera igualmente previsto, o primeiro na Europa desde os tempos romanos mas morrera num naufrágio na costa italiana.

Mais de cem pessoas emolduravam a parafernália de presentes, para glória do Rei Venturoso, Senhor do Oriente, do Império e da Conquista, vassalo do Papa mas seu igual, temido e invejado, dono de mares tormentosos agora  mansos lagos portugueses. A Tristão da Cunha competia obter  bulas e breves, a bênção do representante de Deus a troco de generosas arcas no lombo dum paquiderme.

Roma estava rendida, à ordem de João de Faria trombetas e tambores   anunciavam  novos centuriões cobertos de glória. Fernão Pires, do Paço de Sintra, era o responsável pela guarda do  elefante e do tesouro de quase quinhentos mil cruzados. O animal diversas vezes se mostrara enervado com os boquiabertos e assustados camponeses que em algazarra seguiam o cortejo ao longo da estrada, só o mahout sentado na lombada o mantinha em sossego, em pânico fugindo os campónios quando estridente fazia sentir a presença, atarantando  os cavalos da comitiva. Garcia de Resende tombara inclusive uma vez quando o alazão que montava se desgovernou assustado, projectando-o numa poça enlameada, para regalo de Tristão da Cunha, que ria trocista dos infortúnios do azarado secretário.

Entre satisfação geral, com os cardeais abismados e a criadagem receosa, finalmente a comitiva foi recebida no Castelo de Sant’ Angelo, todos os lusos em ricas vestes, os tesouros expostos em louvor do Santo Padre. Ainda não refeitos do espanto provocado pelos leopardos e os elegantes cavalos árabes que desfilavam altivos, já do lado do Tibre, perante o assombro de todos, abria caminho o cortejo mais vistoso: o  portentoso elefante, ricamente paramentado, guiado pelo mahout, com Fernão Pires escoltando a cavalo e lançando moedas de ouro, o pavilhão do poderoso rei de Portugal desfraldado ao vento. Toda a praça estremeceu e quase dispersou quando o proboscídeo soltou um guincho tonitruante, deixando os guardas suíços em posição de fogo, temerosos.

Para espanto geral, e à ordem de Tristão da Cunha, o elefante ajoelhou três vezes , dócil,em sinal de reverência e depois, obedecendo a um aceno do tratador indiano, aspirou a água de um barril com a tromba e espirrou-a sobre a multidão e os assustados cardeais benzendo-se, ante aquele sublime e recente converso.

O Papa aproximou-se, deslumbrado, embora receoso, o Senhor dos Altares ao encontro do Senhor da Selva e Tristão da Cunha fez então a entrega do valioso presente ao romano Pontífice:

-Santidade, El-Rei D.Manuel fez mercê de vos enviar o mais pujante dos animais encontrado em nossas e vossas terras das Índias . Um elefante, Hanno, é o nome porque atende, apesar de corpulento conta apenas quatro anos, pouco para a sua espécie. Vem de Cochim, e a glória de Deus vem reverenciar. E a um sinal ao tratador, o elefante ajoelhou, a receber bênção do Papa, ufano, receoso embora, não fosse o presente enervar-se. Garcia de Resende registava o momento, séculos depois do grande Aníbal, o poderoso rei de Portugal deslumbrava Roma, senhor de remotas gentes, também ele  Grande Elefante de um império onde o sol nunca se punha.

À ordem do Pontífice, o camerlengo conduziu Hanno para um improvisado picadeiro onde atarantados guardas o olhavam aterrados, doravante sua nova morada à sombra de sinos e igrejas. Mais tarde, afeiçoado, Leão X mandou erigir-lhe um enorme estábulo no Borgo de Sant’Angelo. Com o tempo participou inclusive em procissões e desfiles,  recordação do poderoso Portugal impressionando a Sede Apostólica, grande e pujante nos mares  como Hanno entre os romanos.

No Paço de Sintra, o Venturoso, recebidas as notícias do deslumbre e impressão provocados, regozijava, triunfante, enquanto da varanda interior lançava a um fosso uma lebre de alimento a  um altivo tigre do Malabar.


publicado por Fernando Morais Gomes às 13:58

08
Fev 11

D. José de Mascarenhas da Silva e Lancastre, marquês de Gouveia e duque de Aveiro , juntava essa noite na casa de Sintra os amigos para o jantar com que  terminaria a caçada da tarde, várias lebres e um gamo, a sombra dos Pisões  regada a tinto culminaria um dia extenuante, a convidar a  festim. À mesma hora e noutro lado, nesse 3 de Setembro de 1758, o rei de Portugal D. José, depois de uma tarde com a amante, atravessava incógnito de carruagem uma viela perto de Lisboa , de regresso à tenda da Ajuda . Pelo caminho, a carruagem foi  atacada por três homens, que dispararam sobre os ocupantes, pondo-se em fuga. D. José ficou ferido num braço, bem como o condutor, mas ambos sobreviveram e em tropel regressaram à Real Barraca.

O ministro Sebastião José, avisado, tomou de imediato o controlo da situação. Poucos dias depois, dois homens foram presos. Torturados,confessaram que tinham tido ordens dos Távoras, que estariam a conspirar colocar o duque de Aveiro no trono.

Em Sintra, longe de tudo, o duque folgava, alheio à trama que em Lisboa se montava. Casara com Leonor, irmã do  marquês de Távora, poucos anos antes herdara num pleito com o sobrinho o título e fazendas do Ducado de Aveiro, frei Gaspar da Encarnação, ministro de D. João V  e seu tio ajudara, era um grande do Reino, apesar de a política o não interessar. Planeava casar seu filho Martinho com a filha do duque de Cadaval, reunindo assim as mais poderosas casas do Reino. Sebastião José contrariava esses planos, intrigando junto do rei, o que levava  o duque a zurzir em privado o fidalgote em bicos de pés que não largava a casaca do monarca.

Dias mais tarde, pela manhã, o duque, sem notícia dos sucessos do dia 3, saiu a cavalo, direito à Penha Verde. Luís Policarpo, seu amigo, que por esses dias pernoitava nos Pisões, dormia ainda, uma noite de fados  em Alfama desaconselhava temeridades matinais, respondera, quando chamado a acompanhá-lo, tresandando à alfazema da Berta da Viela.À tarde, de rompante, um tropel de homens a cavalo chegava agitado aos Pisões, tomando posições na entrada do solar, repousava o duque no quarto depois dum almoço de caça. Um meirinho chamava por ele:

-Senhor D. José de Mascarenhas?- chamou, ar solene e carrancudo.

-Sim, sou eu, que alarido vem a ser este?

-Pegai vossos pertences e acompanhai-me! Ordens de Sua Majestade!

E exibiu uma ordem de prisão assinada pelo rei, o lacre e selo eram incontornáveis.

-Mas posso saber a que se deve isto?

-Mais tarde vos explicarão, o meu dever é cumprir ordens!

A duquesa aflita assomara à porta, Martinho quis intervir mas foi repelido, seguiria atrás da escolta, coisa grave seria para  El- Rei assinar tal ultrajante detenção.

Em Lisboa, onde depois de iguais visitas já se encontravam detidos vários  dos Távoras, com o marquês D. Francisco, antigo vice-rei, protestando, levados a um juiz, foram todos acusados de alta traição e regicídio pelos eventos do dia 3. As provas apresentadas eram inequívocas: a arma do crime pertencia ao duque de Aveiro ; só os Távoras podiam saber da saída do rei, pois que  regressava de um encontro com Teresa de Távora, sua favorita.Não valia a pena negar, o ministro Sebastião José ordenara celeridade e reforçara a segurança em torno do monarca.

D.José de Mascarenhas, atónito, pediu para ver a arma, era efectivamente sua, emprestara-a a Luís Policarpo numa noite em que com o amigo, Geraldo da Maia, um secretário de Sebastião José ,saíra no encalço de vinho e mulheres, salteadores na estrada de Sintra aconselhavam a não se arriscar, explicara, não lhe devolvera a arma ainda ,mas era dele, efectivamente, reconhecia o brasão gravado.

-Mas como podem acusar-me de forma tão torpe? Esta arma foi roubada por certo…

-Nem mais uma palavra que ainda agravais mais a situação.Guardas, levem-nos!- ordenou o juiz, empenhado em resolver rápido e em sigilo, Carvalho e Melo instruíra, era a segurança e a vida de El-Rei que perigavam.

D.José Mascarenhas não mais voltou à casa de Sintra, a roda cruel dos acontecimentos estava já em movimento, inexorável o opróbrio e desonra e a  morte cruel ,para gáudio da ralé, sem apelo e com agravo. Luís Policarpo tentou inocentar o amigo, mas em vão. Menos de quatro meses depois, a 13 de Janeiro de 1759, num descampado perto de Belém, as casas Távora e Aveiro eram sacrificadas em holocausto, para gáudio de Sebastião José. O rei adúltero assistia, grato àquele ministro que já lhe salvara o país, depois do terramoto, e agora leal lhe zelava pela vida e pelas escapadelas.

Tempos depois, ainda o fumo do cadafalso não se extinguira, Sebastião José foi feito Conde de Oeiras, pelo tratamento competente do caso. A duquesa de Aveiro, desfeita, foi levada para o convento do Rato onde morreu na maior miséria. O filho, Martinho, encarcerado, foi solto vinte anos depois, as casas dos Aveiro  e dos Távoras demolidas e salgadas para que nada mais lá crescesse. Uma arma desaparecida a Luís Policarpo eliminava duma só vez vários adversários incómodos.

Passados seis meses, o agora conde de Oeiras visitava os seus novos domínios de Sintra, adquiridos por uma ninharia, a intriga dava os seus frutos, tornando-o um proprietário abastado e grande do Reino. Deteve-se nos Pisões, agora em ruínas, só cães vadios deambulavam pelo solar outrora opulento e cúmplice das festas do malogrado duque, agora maldito e antro dos conspiradores, dizia-se na vila.Sem pressas, como vitorioso conquistador, inspeccionou a nova propriedade, ao brasão arrancado logo sucederia outro. Geraldo da Maia, leal secretário, que o acompanhara, esperava na carruagem, tardava e era preciso voltar , haveria audiência com o rei ao fim do dia. Sebastião José olhou Geraldo, e ordenando que partissem, comentou com o leal ajudante, cúmplice:

-Maravilhoso teres guardado a arma naquela noite, bom Geraldo! Que ninguém ouse zombar de Sebastião José! Todos leais a el-rei mas primeiro leais a quem lhe é leal…


publicado por Fernando Morais Gomes às 15:08

07
Fev 11

CONTRIBUTOS PARA UM DICIONÁRIO POLITIQUÊS-PORTUGUÊS

Agilizar o emprego- Despedir sem condicionamentos

Inclusão Social- prospectos a imigrantes

Gerar competências-Promover Incompetentes

Sociedade Civil- A plateia do Prós e Contras

Pequenas e médias empresas-administradores de falências

Tráfico de influências-Emprego no Taguspark

Sociedade da Informação- Magalhães

Rede Social-Apanhados na rede

Países periféricos-Béu! Béu!

PALOP’S- Branqueamento

Branqueamento-Por uma unha negra

Portugal-PIGS

Irlanda-PIGS

Crescimento sustentável-Férias em Vilamoura

Socialização-Bullying

Orçamento de Estado-Auto de penhora

Cavaco Silva-Rainha de Inglaterra

Face Oculta-Robalo ao sal

Submarino-Ao fundo

Medina Carreira-Este país não é para velhos

Pensão de reforma- raspadinha

Funcionário Público-Peru no Natal

Hugo Chavez-E nós pimba!

Recibo Verde-Riso amarelo

Globalização-Made in China

Boato-Correio da Manhã

Cartão de Cidadão-Abstenção

Acordo Ortográfico- Tá caindo no pedaço

Falta justificada-Certidão de Óbito

Ministro-Couve de Bruxelas

Primeiro Ministro-Primeira Couve de Bruxelas

Descentralização-A Praça da Alegria na Trofa

Futebol-Intifada

Universidade-Novas Oportunidades

Mobilidade-Emigração

Tratado de Lisboa-Testamento

Angela Merkel-Rainha de Copas

TGV-Poceirão

PEC-Pobreza,Empréstimos e Crise

Cooperação Estratégica-Bolo-rei

Inovação- Propaganda

Energia eólica- Andar à nora

Lisboa-Lissabon

Rating-Pandemia



publicado por Fernando Morais Gomes às 10:59

Tem futuro a concepção de cultura e vida cultural que hoje ainda marca a nossa praxis quotidiana? A mudança de paradigma e as novas solicitações da sociedade global exigem que se ultrapassem alguns bloqueios instalados, como sejam o espírito corporativo, o imobilismo na preservação de lugares e a incapacidade para congregar novas sinergias, o individualismo hedonista que desvaloriza o trabalho de equipa em benefício das figuras, a subsidiodependência e a suburbanidade de escolhas culturais. É na subversão deste estado de coisas que a vida cultural(no sentido de inovação e mudança), com novos modelos de financiamento,  novos e empenhados dirigentes e de braço dado com as novas tecnologias  poderá singrar.

Nos tempos que correm, o espaço mediático torna-nos um pouco indiferentes ao que nos rodeia no mundo da cultura e fomenta o fenómeno da “não-inscrição”, a acção de que tudo o que acontece, não transforma a realidade nem tem  sequência e evapora-se sem efeito no futuro. Significa que as coisas nos passam de forma superficial, tornando-nos indiferentes e conformados e sentindo que nada podemos fazer. É pois necessário um espaço público, livre e independente, onde as pessoas possam discutir e debater tudo o que seja do seu interesse, contribuindo assim para a criação de cidades inteligentes. Em Portugal não há cidades inteligentes porque a grande parte dos indivíduos dá demasiada importância e atenção apenas ao que se passa no espaço mediático e não ao espaço das ideias, a cultura não se discute, repercute-se sem discussão e em função de modas.

Na sociedade portuguesa actual, a reverência e respeito temeroso e a passividade perante as instituições não foram ainda quebrados e raros são aqueles que conhecem o pensamento livre, tudo decorre nos lugares e tempos mediáticos, as pessoas formam um sistema estático que trabalha para a sua manutenção. Ora essa não-inscrição passiva, no sentido em que pensadores como José Gil a enunciam, continua hoje. O que acontece na vida cultural é sem consequência e nada tem efeitos transformadores que tragam intensidade à vida colectiva. Só os agentes culturais podem, reconhecendo isto, contribuir para as alterações no status quo ante na sua diversidade e riqueza e em  conexão com as indústrias criativas, estimulando a acção colectiva e se possível em rede nos sistemas culturais urbanos, cabendo aos poderes (autarquias, Estado) assumir o papel de catalisadoras e facilitadoras dos processos criativos promovidos pela sociedade civil.

Como dizia Roland Barthes, também aqui é preciso dar significado ao significante, ou as elites, ao invés de serem forças de vanguarda tornar-se-ão forças de estagnação, reproduzindo mimetismos e não comportamentos de mudança.


publicado por Fernando Morais Gomes às 09:33

05
Fev 11

Havana transpirava de calor no fim de tarde, o ritmo  do danzon invadindo as vielas, velhas de charuto arengando  nas calles do Malecón. Mário Rebordão mergulhava num regresso ao passado onde a Sierra Maestra e o Quartel Moncada se vendem como Terra Prometida e o Che é  Cristo Redentor no altar da Revolução, a voz de Omara Portuondo soando no velho  rádio  do Floridita.

Mário viera a Cuba para uma operação à córnea, o dr.Gaspar aconselhara, cinco dias e aproveitava para conhecer. Antigo comunista mas afastado da política, não era sem emoção que peregrinava nos  santos lugares onde a Revolução  fora prometida como  terra do leite e do mel, ainda para mais com águas a vinte nove graus e orgíacos mojitos castigando o corpo na noite do Caribe.Como suspeitava, a revolução não vingara, um povo alegre mas pobre pululava nas ruas, serpenteando em torno dos turistas e dos dólares, prateleiras vazias nas lojas e  frágeis balsas para  Miami eram os legados do socialismo, à mercê de tubarões na fuga para a liberdade. Mário correu a cidade, bela mas em ruínas, e comprou Cohibas e Havana Club, T-Shirts do Che , músicas do Che, livros do Che, o Che D. Sebastião dos trópicos , espectro dum socialismo que há-de vir,  o patriarca Fidel  ainda sentinela, cadáver. Dengosas mulheres da vida desafiavam turistas na praça da catedral,  corpos escaldantes por cinco euros, sida não incluída, as trovoadas tropicais açoitando o mar e despertando agitados cardumes de peixes na calmaria de Ancón.

No Hotel Nacional conheceu Silvino Baião, construtor das Lameiras, pedreiro de gravata, política não era com ele, mas as gajas, meu amigo, às paletes,  à noite pior que metro apinhado, socialismo  sim, mais de pele e suor, Cuba é Cuba, perorava  ufano do alto do Cohiba .Silvino era o típico  novo-rico, fanfarrão e agora arruinado. Negócio  em Montelavar, exportara mármore para a Líbia e Jordânia nos anos bons,agora com a crise  queimava os cartuxos enquanto o cartão de crédito deixasse, à mulher dissera vir negociar um terreno,  bom preço, quem sabe, aposta para o futuro, bom clima e mão de obra barata, e  gajas, gajas…Mário, solicitador em Lisboa , menos dado a exuberâncias, tolerava-lhe as boçalidades, mas fazia por evitá-lo, no hotel,sempre pronto a colar-se, patrício tuga , caixas de charutos com fartura, que só se vive uma vez. A operação  seria daí a três dias, e havia que passar o tempo, na terra onde o tempo não passou. Ainda se aventurou na noite do Tropicana, mas achou turístico, melhor a simpatia dos pequenos bares na zona velha, miúdos  pedindo lembranças atraídos pelo  dólar e pelo euro. Um placard no centro de Havana proclamava, seguro.”En todo el mundo, un million de niños morre de hambre.Ningún es cubano”.

Na noite antes da operação deteve-se num bar de colmo na Marina Hemingway, tempestade tropical a aproximar-se, a água quente como caldo até refrescaria, num palco improvisado três cegos com óculos escuros cantavam os hinos da revolução, anunciando os amanhãs que cantam a três dólares, solo monedas, compañeros, non tarjetas. O som familiar das canções que  galvanizado entoara em festas do Avante e nos comícios de anos  já passados, tornaram-no nostálgico, deu consigo de punho no ar,  há muito esquecera esse gesto, agora recuperado.Três mojitos e seguia já embalado para os amanhãs que cantam com “tu, querida presencia, Comandante Che Guevara”, camisas coloridas prometendo revoluções imediatas, como a tempestade aproximando-se sobre o mar das Caraíbas. No fim, chapéu circulando e lá caíam três dólares para a revolução, cegos mas dignos e com talento, pensava,  afagando a córnea enferma que ali o levara, um dia podia ser ele, pensou, entregando cinco dólares, os cegos tacteando, gratos ao generoso gringo.

No dia da operação num humilde mas asseado hospital,as virtudes do sistema de saúde, pobreza mas competência, nem tudo era mau, reconhecia, meia hora e um penso a carimbar a viagem, dois dias depois o regresso a Portugal. Nessa noite ficou pelo hotel, comida ligeira e água mineral, na televisão do quarto um filme de propaganda emulava a campanha do açúcar e as conquistas do socialismo, a CNN tinha interferências. No dia seguinte, ainda se cruzou com o Silvino no lobby,  de  calções às riscas e havaianas às cores, a caminho da piscina com bar, o pacho no olho declinava o convite para um copo, desculpou-se, no dia seguinte voltariam no mesmo voo, maçada acrescida.À noite, mais repousado e em onda de despedida, saiu a jantar num paladar, comida caseira em casa  simples e chã. O taxista recomendou-lhe um, fora da cidade, lagosta grelhada na chapa e apanhada na hora, vantagem de país tropical. Lá chegado, duas velhas desdentadas punham a mesa num alpendre, três jovens grelhavam lagostas e trauteavam canções do rock cubano, generosos copos de rum cobrindo já a mesa de vime. Mário aproximou-se a cumprimentar e sem óculos escuros nem camisas estampadas, lá estavam os três cegos da marina, vendo perfeitamente e cantando, “hasta la victoria, siempre”.

Nada como Cuba e a Revolução para até cegos voltarem a ver, milagre do socialismo  real a três dólares por cabeça.


publicado por Fernando Morais Gomes às 18:17

04
Fev 11

Carlos da Maia e Cruges voltaram por estes dias a Sintra, não de break mas de comboio, a peça do Éter no Olga de Cadaval convidava a verem-se retratados. Ao saír da estação, direcção da Vila,e logo os logradouros do Larmanjat,imundos,um rato turista serpenteando.

-Como isto mudou, Carlos- desabafou Cruges, abismado e  apossado dum sentimento de tristeza.

-Houve alguma greve,por certo,isto a crise, meu caro....- acautelou o amigo, dando o benefício da dúvida.

Pedantibus calcantibus,seguiram para a Vila, já sem banhos termais,buscando o remanso do velho Hotel Nunes, surpresa das surpresas, no local, em vez de um,  dois hotéis:o Tivoli, gémeo daqueles prédios da Porcalhota por onde o comboio passara ,e o Netto. Que  teria sucedido? Novo terramoto e nada  avisaram para Lisboa? Pois que cenário dantesco de ruína, apetecível para um dramalhão do Garrett ou uma ópera de  Wagner, fanático de tragédias.

Perto do palácio, o Eusebiosinho, mais obeso, e o Palma Cavalão passeavam com duas espanholas:

-Pois por cá, meus caros?-atirou com tom malandro Carlos da Maia. Os meus amigos estreitam laços ibéricos em Sintra?...

-Meu caro, nem queira saber. Fomos à Regaleira, coisa nova,  daquele merceeiro do Monteiro, o homem enriqueceu e deu-lhe para artista, um espanto, mas estacionar, nem pensar. Parece dia daquele jogo inglês com tudo em ceroulas, o foot-ball.

-E las viviendas, por supuesto, tan preciosas pero tan maltratadas- rematou a Lola, uma das espanholas, agarrando o braço do Palma e sacudindo o leque.

-É como lhe digo, Eusébio, isto mudou muito, mas há muita coisa a precisar de obras. Isto quer é um Fontes! -elevou a voz o Palma, beliscando o traseiro da Lola, dengosa.

Passada a cascata, nos Pisões,  heras e musgos em verde orvalhar, surgiu Tomás de Alencar, o velho  poeta e amigo do pai de Carlos, que se juntou ao grupo num passeio a Seteais,  bons tempos , já passados.Escondida pelo Sobreiro dos Fetos ,a Quinta do Relógio do tratante do Monte Cristo,  fechada e abandonada,salteadores por certo, opinava o Alencar.

-Parece que vão comprar isto.Será para algum hotel? -questionou o Cruges.

-Olhe, cá pra mim eu abria era um centro para artistas, era bom para si,à sombra da serra... -alvitrou o Eusebiosinho.

-E  pedia apoio ao Paes do Amaral, ele vai mudar-se para cá, sabia? Isto os negócios do tabaco…Vai dali sair uma verdadeira mansão!

-Agora já não é tabaco! Você não lê jornais, ó Eusébio ?Não sabe o que é o PSI-20?-atalhou Carlos da Maia.

Na verdade, ao chegarem a Seteais, Cruges sentiu-se prostrado com aquilo que lhe foi dado ver.Dum pequeno anexo de jardim nascia qual míscaro gigante um solar imponente e tumefacto.Só ao Alencar, lunático, lhe deu para fazer um soneto à beleza de Sintra e a sua exuberância, esquecendo o tumor por instantes.

Na impossibilidade duma burricada, por falta de asnos,decidiram- se a ver o novo bairro da Estefânea, em carruagem e lá foram  os cinco,  Carlos optou por procurar  Maria Eduarda, na verdade o verdadeiro motivo da  vinda a Sintra.

Mal chegados, cenário caquético: lojas chinesas vendendo traquitanas, casas antes solarengas agora em ruínas, lixo transbordando de contentores e esvoaçando qual ciclone, tudo arrastando, bancos por todo o lado. Era engano com certeza.

-Diga-me amigo, nós queríamos ir era ao bairro novo, o dedicado à rainha D.Estefânea, não era aqui…-atalhou o Cruges, puxando o braço do carroceiro.

-E onde pensa vomecê que está?É memo aqui!

-Pois….-disse o Cruges, abanando a cabeça, conformado.Já suspeitava.

-Olhem, sabem que mais ? Vamos mas é para Lisboa, que há novidades para o lado da R. dos Condes.- rematou o Palma Cavalão, maroto,alisando o bigode. E retornando à Vila, pegaram Carlos da Maia, que procurava romper no meio da horda dos turistas e volveram à capital.

Ao longe, a silhueta milenar dos Mouros continuava perene sentinela, coisa do mundo de Deus. Do mundo dos homens muito mudara em Sintra, umas  boas outras novas, mas as novas não eram boas e as boas não eram novas.

-Isto quer é um Fontes!- ainda repetiu despeitado o Cruges, empunhando a bengala.


publicado por Fernando Morais Gomes às 11:39

03
Fev 11

Sintra, Centro de Emprego 7h40m.A fila a tomar forma,procissão  renovada,suplente da vida, primeira senhas não primeiras escolhas,mais dois chegando,estreita oportunidade,fila estreita.Curso acabado, estágios gratuitos, licenciatura em estágios pela frente, Rita,mais duas,um som no auricular,a acordar:

Sou da geração sem remuneração

e não me incomoda esta condição.

Que parva que eu sou!

7h50m.Doze,quinze,dezasseis,Alberto,despedido,licenciados, sem licença ainda, faz frio, há que esperar, primeiros na fila,não  na escolha,arrefece.

Porque isto está mal e vai continuar,

já é uma sorte eu poder estagiar.

Que parva que eu sou!

8h00m-Abrem-se as portas, candidatos sobreviventes avançam para os  sobreviventes  escutando candidatos, primeiro emprego segundo andar, subsídio, vai acabar, vaga em Arruda, alguém quer? A fila avança,a vida não avança.

E fico a pensar

que mundo tão parvo

onde para ser escravo é preciso estudar.

8h50m-Zombies na sala, impresso na mão, e porque não levantados do chão? Surdina em silêncio, não se ouvem mas estão,sorriso adiado, filho por fazer,um prego ao jantar,a reforma da mãe,ah! mas liberdade. Facebook, cinquenta comentários,protesto em download,enredados na rede.

Sou da geração ‘casinha dos pais’,

se já tenho tudo, pra quê querer mais?

Que parva que eu sou

9h20m.A fila a dissipar fora, a engrossar dentro, fora da vista menor o tormento,dali para o café, o sofá em casa, de novo café, de novo sofá, duas semanas e novo regresso,carimbo novo, passaporte para o  limbo, novas oportunidades, será a oportunidade?. A sala em coma e a música sem auricular agora, invasora, desafiadora, a sala amorfa do centro do desemprego pareceu mexer, que fazer?

Filhos, maridos, estou sempre a adiar

e ainda me falta o carro pagar

Que parva que eu sou!

9h40m. Despachados finalmente, tudo como dantes, quartel em Abrantes, regressar, lutar, desistir, fugir? Amanhã,tarde para ter um passado, demasiado cedo para desistir do futuro. No casting do emprego a espera por uma operação triunfo.

E fico a pensar,

que mundo tão parvo

onde para ser escravo é preciso estudar.

Sou da geração ‘vou queixar-me pra quê?’

alguem bem pior do que eu na TV.

Que parva que eu sou!

Sou da geração ‘eu já não posso mais!’

que esta situação dura há tempo demais

E parva não sou!

Sintra, 7h 40m,Centro de Emprego, nenhum emprego no centro. Novo dia, monotonia nova,frio chegará a aquecer?

 


publicado por Fernando Morais Gomes às 10:17

S.Pedro de Penaferrim, 1882.Naquela tarde de 12 de Setembro o Verão ia-se esgotando em derradeiras résteas de sol sobre a esplanada térrea da antiga gafaria, logo o vento açoitante pela noite varreria S. Eufémia e o Arrabalde. Acometido de doença pulmonar, Rodrigues Sampaio, antigo Presidente do Ministério, definhava moribundo na sua casa de Sintra.Os médicos, cépticos, faziam o que podiam, mas a febre e o delírio apossavam-se  já do doente, pneumonia adinâmica vaticinara o dr.Telles.

A rondar os setenta e cinco anos, o “Sampaio da Revolução” como amigos e detractores o conheciam, mantivera até ali o vigor rebelde de homem de causas. Jornalista mortífero, maçon empenhado, amante dos prazeres da mesa, fora um liberal encartado, apesar de destinado aos altares. Porém  tempos  duros e exigentes foram aqueles que chamado a chefiar o governo  dum país ingovernável suportara meses antes, zurzido de todos os quadrantes, como aliás fizera aos seus adversários com a  pena verrinosa, e a palavra  afiada,  Gomes Leal e  Bordalo Pinheiro sempre cáusticos e sem perder pitada.

A recaída justificava apreensão, até a cabidela da Aldegundes o enjoava, pantagruélico voraz que chegara a devorar um leitão, teima com um conselheiro do Tribunal de Contas, nem os inseparáveis jornais conseguia já ler, febril e entrapado em  pachos de álcool. De Lisboa, o Rei  posto a par enviava o secretário a desejar melhoras, melhor fora se ficasse por lá, os ares de Sintra em Setembro estimulam males dos ossos e são propensos a febres, comentara o monarca, mais adepto de Cascais e do mar, no iate Amélia.

Apesar da vida de picardias, fora generoso e magnânimo, aos filhos da velha Antónia calçara quando mancebos foram chamados a servir  nas fileiras, o Soveral abrira o negócio com financiamento seu. Nenhum agora se acercava a saber novas, com o fim perto, mais fácil se tornava perorar póstumas homenagens quando o cadáver frio e quebrantado jazesse nos Prazeres, promovido a  patriota inigualável e insubstituível.

Ouvido o dr.Telles a Aldegundes correu a chamar o padre Raimundo, o jacobino tardio e seminarista de berço, bandeado para a a causa de D. Pedro por aversão à facínora miguelista pedia os sacramentos O velho pároco, para cima dos noventa, ungia agora com os santos óleos o servo que Deus chamava antes de si, tribuno loquaz e teimoso, na cama-tumba de dossel azul, Rodrigues Sampaio arfava e tossia, consumido pela febre derradeira.

Nessa noite, num raro momento de tranquilidade - os moribundos melhoram sempre à noite - chamou por Fernanda, afilhada a quem órfã recolhera, que triste e discreta acariciava agora o protector de muitos anos na hora do desenlace. Sampaio, febril, pegou-lhe a mão, tensa e aflita e reviu as batalhas por ideais consumidos na feira das vaidades, a juventude em que puro idealista acreditara numa pátria sem servos e acabara Par dum Reino cadaveroso de ignaros em busca de mando, cão-barão sem rumo que não o rotativo poder fútil e efémero.

Rodrigues Sampaio tivera o seu ciclo. Poder, contra o Poder, rebelde, reverente, alheio, integrado, compassos de vida em transições esperançosas, espectro do século como o espectro do jornal a que um dia dera o nome. Os dias do fim reportavam para um passado pleno mas controverso. Quisera reformar a escola mas poucos  tinham acesso às letras, a patuleia nos campos apenas trocara amos do antigo para um novo regime que do Chiado não passava. Sossegadas que foram as armas que puseram irmãos contra irmãos e que, tribuno, combatera pela pena e palavra, morria sem que o país mudasse, sucumbido aos trens do Fontes e aos monopólios de tardios baronetes à sombra da Carta regenerada.

A noite enluarada trazia agora um silêncio expectante, o silêncio que antecede a borrasca, a lamparina no quarto apagando-se lentamente, como a vida também se apagava, nas quintas lá fora cães latiam premonitórios, a febre a virar delírio, o corpo possuído e prestes a desistir.

Antes que a suprema manhã chegasse, Rodrigues Sampaio partiu, discreto e sem despedidas, cúmplice do século e dos seus tombos, o país no desnorte, peão no xadrez interrompido, cartola e bengala a caminho da Luz. Era Setembro e era treze.


publicado por Fernando Morais Gomes às 05:46

01
Fev 11

Junto ao coreto,em Colares, Rogério aproveitava o sol de domingo para passear com o pequeno Fábio ,que brincava divertido com um boneco do Homem Aranha. Como todos os domingos, era “dia do pai”, pais divorciados  passeando  filhos no dia ajustado, domingos e quinze dias nas férias, ocasião para convívio, família em part time. Na igreja contígua, alguns fieis assistiam à missa das dez, o sino tocara a convocar os crentes, algumas “tias” a marcar presença antes do body pump no ginásio,depois o mercadinho de Almoçageme.Ateu por teimosia, apesar de baptizado e ir à missa até aos doze, afastara-se da igreja desde novo, apenas comparecendo para os inevitáveis casamentos e funerais, vincando um agnosticismo militante, as riquezas e luxo da Igreja e do Papa e a falta de fé a alimentar discurso contra a hipocrisia farisaica.

Da rua da Sociedade e na sua direcção descia agora o Jorge,amigo de infância, a bica matinal e a leitura da “Bola”, aí estava a sua missa de domingo, antes de correr outras capelas, tintas e brancas:

-Então, Rogério, está aí um dia e peras! Não vais à missa confessar os pecados? Olha que sendo do Sporting era melhor ires, aquilo lá já nem com rezas lá vai!- provocava, benfiquista empedernido.

-Já sabes o que eu penso do assunto, não vale a pena insistires. A religião é a maior mistificação de todos os tempos, vê lá a inquisição, e o luxo do Vaticano. …

-Não sejas assim que um dia ainda te arrependes. Além do mais a missa não faz mal a ninguém, só vai quem quer.

-Agora. A religião só serve para adormecer as pessoas, foram séculos de obscurantismo. E depois a retórica quanto ao sexo. Cada padre, cada safardana! .Até te digo mais: como é que alguém que nunca casou pode celebrar casamentos e  falar de procriação? É a velha história, faz o que eu digo, não faças o que eu faço.

A manhã ia passando,  os fieis da missa das dez dispersavam já , o padre Miguel  cumprimentava  os paroquianos no adro, antes de correr a  encomendar a alma do velho Vicente no cemitério.Depois dum café com o Jorge,Rogério pensativo e sem pressas deambulava no largo fumando um  cigarro e observando as brincadeiras do filho: a sua vida estava a recompor-se com a Mila ,ao almoço levaria o Fábio ao McDonalds para o semanal BigMac com batata palha , pela noite, depois de o levar à mãe ,veria o Sporting na casa do Zé, sem presidente e sem Liedson, perdera interesse, mas lagarto é assim, nasceu para sofrer.

Dos lados da Sociedade descia agora solto um Huski branco, brincalhão, rodopiando no largo, o olhar vivo dos cinco anos do Fábio logo atraído por aquele cão esquimó, e correndo para ele, as crianças e os cães entendem-se sempre. Mila ligava entretanto a saber deles e Rogério afastou-se para ouvir melhor .Já se prestava a desligar quando o ruído brusco de uma travagem quebrou o silêncio no  largo, atraindo o Jorge e outros clientes à porta do café, até o JP ensonado assomou à janela. Rogério, curioso, foi ver o que era,e  a poucos metros deparou com o pequeno Fábio  inconsciente e sangrando com abundância, o Huski excitado ladrando a seu lado, as hortaliças e nabos projectados pela travagem do Ti Barbas espalhados pelo chão.

Lívido ,debruçou-se sobre o filho, o choque fora frontal, sangue na cabeça, fractura exposta na perna esquerda.O  INEM,chamado, hesitava em evacuar o paciente com medo de sequelas e tentava a reanimação no local, as sirenes da ambulância silenciando as badaladas das onze no campanário da igreja. A reanimação tardava, entrara em coma, frisou o médico com preocupação estampada, o choque fora frontal e  a cabeça batera com força na calçada. A mãe do Fábio, chamada,chegava entretanto, abrindo caminho aos gritos e querendo abraçá-lo, mas logo apartada por Rogério,também apreensivo.

O médico receava o pior. A pulsação estava débil, o rosto esbranquiçado, manchas de sangue pintavam os caracóis loiros do pequeno Fábio, Rogério em aflição rodopiava, fazendo figas para que tudo corresse pelo melhor. O padre Miguel, regressado do enterro ,oferecia a sacristia, mas o médico desaconselhava a remoção do paciente. Rogério e Lena, apesar do divórcio recente amparavam-se agora impulsivamente, o amor que um dia frutificara naquele pequeno ser fora o melhor dos seis anos de casamento, o destino  prestava-se agora a apagar avaro essa página das suas vidas.

Rogério, abúlico, frente à igreja, pedia que o temível desenlace não sucedesse, porquê a ele, uma lágrima correu-lhe pela face observada da fresta da sacristia pela velha Genoveva.Com o telemóvel na mão corria a lista de nomes e vendo a quem pedir ajuda, até um curandeiro naquela hora serviria, como é  etéreo fazer planos quando um clique pode abater negrume sobre a existência precária. Ligara ao dr. Sousa, neurocirurgião e amigo da mãe, ao Borges, do hospital de Cascais, todos desligados, tentava já o dr. Nogueira, quando Lena o chamou, excitada,Fábio finalmente dera acordo de si, a mão mexera, meio estremunhado  abrira os olhos perguntando pelo  cão para brincar. O  destino mudava de rumo e  a morte passava ao lado, por esta vez,todos felizes  a evacuar o ferido agora. Rogério serenou o espírito e de carro seguiu atrás da ambulância, o pior parecia ter passado. Antes de ligar a ignição, olhou fixamente o campanário em silêncio, e arrancou, a vida devolvida, o sol  radioso no céu de Fevereiro.

Ao fundo do altar, já a Genoveva colocava flores frescas para o casamento do meio-dia, o rosto em talha do crucificado mais conhecido do mundo parecia sorrir mirando o largo.


publicado por Fernando Morais Gomes às 15:05

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