Mar de Andaman, oeste de Sumatra, mais um dia de buscas subaquáticas findava e Robert Benning , o caçador de tesouros, atacava um revigorante gin tonic no convés do Octopus deitando um olhar sobre o mapa que Dionísio Garnel, (Dick, como lhe chamava) elaborara. Pelos cálculos de Garnel, arqueólogo subaquático, ali estariam os destroços do Flor de la Mar.
Benning participara já em várias expedições, fundara mesmo uma empresa de buscas na Austrália, a Secret Seas, o valioso tesouro e a adrenalina da busca levaram-no a abraçar o projecto. Garnel chegara a Malaca um mês antes, um almoço de bacalhau no Portuguese Settlement selara a colaboração.
Na noite de 20 de Novembro de 1511 navegando de regresso à Índia com o valioso espólio da conquista de Malaca, uma tempestade fizera naufragar o Flor de la Mar, onde seguia Afonso de Albuquerque. O naufrágio fez numerosas vítimas, Albuquerque salvou-se apenas com a roupa que trazia e com auxílio de uma jangada improvisada. Perdeu-se então o valioso saque da conquista de Malaca, presentes do rei do Sião, bem como toneladas de estátuas em ouro e em tamanho natural, cofres cheios de diamantes e rubis, moedas portuguesas, árabes e chinesas. Pelos dados de Garnel, apenas dois dias depois da saída do estreito de Malaca, a frota fora atingida por uma tempestade e a nau encalhara em Tenga Reef, no nordeste de Sumatra, próximo a Diamond Point, sendo despedaçada pelas ondas enquanto os tripulantes tentavam salvar-se. Dos 400 homens, apenas 3 sobreviveram.
Robert e Garnel haviam-se conhecido num chat de mergulho subaquático, a troca de informações levou-os a acertar a expedição, a partir de Malaca. Um vindo de Perth, o outro de Lisboa.Pior era a posição do governo da Malásia, cujas leis proibiam a retenção de tesouros, punindo a descoberta de salvados não declarados como pirataria, havia que não facilitar, a guarda costeira local já lhes visitara o Octopus no mar de Andaman.
No dia seguinte, Robert retomou os mergulhos, enquanto Garnel monitorizava, dois indonésios tripulavam. Mergulhador exímio, nadava como peixe naqueles mares antes portugueses, escutando apenas a respiração, peixes grandes e raias deambulando, perigosos peixes-pedra obrigando a atenção, o veneno segregado pela barbatana era o maior perigo para um mergulhador incauto. Fazia uma semana que repetia mergulhos, a zona de busca apertava,pelas descrições de João de Barros nas “Décadas da Ásia” só podia ser ali. Até que finalmente a visão de um amontoado de madeiras carcomidas e uma âncora enferrujada no fundo do mar deram esperança ao australiano. Nadando entre os destroços, um pequeno baú quase desfeito continha moedas, poucas e espalhadas, recolheu as que pôde e emergiu eufórico ao encontro de Garnel:
-Então? Que me dizes Dick ? Poderão ser do Flor de la Mar?
O arqueólogo analisava, minucioso, eram moedas portuguesas efectivamente:
-Há duas espécies aqui: vinténs, do tempo do nosso rei João II, de prata, e justos em ouro. Vês o desenho? Tem o rei sentado no trono empunhando a espada da justiça. É desse tempo e é português com toda a certeza. Mas há aqui uma ainda mais rara: o índio de prata, uma moeda que evoca a descoberta do caminho marítimo para a Índia. Dum lado tem o escudo real do outro a cruz de Cristo. Uma coisa é certa: os destroços são de um barco português!
No convés, um dos indonésios, agitado, alertava para a aproximação de uma lancha da guarda malaia, as moedas logo foram escondidas num balde com água. Exibida a documentação, tudo estava em ordem, para todos os efeitos dois turistas à pesca nos mares do Sul. Preparavam-se para regressar à lancha quando uma voz agitada e repetitiva soou no rádio dos guardas. Mayday! Mayday!, foi apenas o que entenderam. A cara subitamente pálida deixava preocupação, o mar parecia cavado, um silêncio profundo no ar deixava a sensação de falsa calma, os guardas gritavam, imperceptíveis:
- Mendekati gelombang raksasa!(*)O Centro de Tsunamis de Jakarta está a lançar um alerta para a região do Pacífico!. E estamos a trinta milhas da costa!
(*)Aproxima-se uma onda gigante!
Os guardas costeiros corriam para a lancha quais peixes voadores, Robert e Garnel também se apressaram a levantar âncora, um vento sussurrante prenunciava a onda gigante a menos de vinte milhas.
Nem meia hora era decorrida quando uma vaga de sete metros, paulatina e triunfante enrolou o Octopus, engolindo-o implacável, o balde das moedas devolvido às profundezas, a água assassina galgando vinda de sul. Ainda com um precioso vintém na mão, Dionísio Garnel aprestava-se a colocar o salva vidas quando a água invasora os abocanhou arrastando para o fundo, novos companheiros da nau afundada, as moedas devolvidas ao segredo do mar.
Era 26 de Dezembro de 2004, Dionísio e Robert foram nesse dia duas das mais de duzentas mil vítimas do mortífero tsunami do sudeste asiático, depois de uma ruptura na zona onde a placa tectónica da Índia mergulha por baixo da placa da Birmânia.
A Flor de la Mar por instantes desperta, continua dormindo no mar de Andaman.