por F. Morais Gomes

02
Mar 11

Novembro de 1924.O Presidente da República, Manuel Teixeira Gomes, chegava solenemente a Sintra para o lançamento da primeira pedra do novo hospital, atrás da cadeia comarcã e da R. das Murtas, junto à estação ferroviária. Projecto de Pardal Monteiro, vistosa se preparara a cerimónia, com ministros, edis, fardas coloridas com dragonas, filantrópicas e enchapeladas damas, o acompanhamento musical das Bandas do 1º de Dezembro e dos Bombeiros da Vila e S. Pedro. Alfredo Pinto cobria o evento para a Semana de Sintra, enquanto O Despertar, órgão do Centro Republicano de Sintra se fazia representar pelo seu director, António Duarte da Silva Sousa, industrial de mármores das Lameiras. A vila rejubilava com o acertado passo no sentido dos melhoramentos, a saúde finalmente no mapa dos direitos que uma sociedade civilizada não podia dispensar.

Presentes Gregório Casimiro Ribeiro e Amílcar Barros Queiroz, do Partido Regional, José Antunes dos Santos, conhecido capitalista, o dono da Piriquita, Júlio Amaro dos Santos e outros. Depois de tocada “A Portuguesa” pelas duas bandas presentes, o Presidente usou da palavra para enaltecer o progresso e aquela realidade que depois de muito aguardada finalmente avançava, antes do fim da década de vinte Sintra emparceiraria com Lisboa e outras cidades civilizadas, os doentes teriam tratamento, as mães assistência no parto, os feridos cuidados atempados, Sintra poderia crescer com confiança no futuro, que o Estado e a República zelariam. Muito aplaudido, perorou de seguida o presidente da Câmara, para gáudio dos caciques locais, depois dos novos paços do concelho e da cadeia comarcã, um moderno hospital nasceria em zona central. Depois dos discursos e do lançamento da primeira pedra, solenemente se lavrou um auto do acontecimento e dele se extraiu cópia que o presidente Teixeira Gomes depositou debaixo da pedra num recipiente de vidro, enterrada testemunha para a eternidade do momento solene em que Sintra ia passar a ter o "seu" hospital.

Amaro dos Santos, o dono da Piriquita, aplaudia, enquanto comentava com José Antunes dos Santos:

-Sim senhor, assim sim, já não vai ser preciso ir para S. José ou para o Desterro. Já cá fazia falta há muito tempo! Olhe, se já tivesse sido feito no tempo da gripe espanhola se calhar muito boa gente tinha escapado!

-Esperemos que sim, caro Júlio, ainda se morre muito, daqui a Lisboa são quatro horas, e Sintra não pode curar os seus doentes só a caldos de carneiro e pachos de água quente. Esperemos que sim!- ainda pouco convencido, o cacique aplaudia, para ele seria também bom para os negócios.

As obras estavam já apalavradas, o Governo cativara verbas, no Verão se faria um cortejo de oferendas na Vila para ajudar a equipar, tudo do mais moderno, internato, maternidade, dispensário e cirurgia, não tivessem medo de estar doentes que estariam todos preparados.

 Como muitas coisas em Portugal, a República soçobrou, e o hospital foi abandonado, nem um tijolo foi erguido, miragem absorvida pela avidez da verba, como o salvador teleférico que levaria turistas à Pena, tudo miragens desfeitas num qualquer avaro orçamento de Estado.

Em finais de 2010, um piquete dos SMAS procedia à reparação de uma conduta junto ao estacionamento fronteiro à estação, entre o entulho e a terra húmida quando um recipiente de vidro ainda intacto foi enrolado na escavadora, detritos acumulados, pensou o engenheiro da obra. A um olhar mais atento, verificou-se que continha um documento dentro, com lacre e fita vermelha. Surpreendentemente ali se atestava às gerações vindouras o dia em que Sintra, pela mão do mais alto magistrado da nação lançava pontes para o futuro das suas gentes, só uma nação sã pode ser uma nação progressiva, escrevia-se, prometendo um rápido regresso para a inauguração.

O engenheiro levou aquilo ao director, que encaminhou para o Arquivo Histórico, o doutor Montoito surpreso examinava o valioso e singelo manuscrito, havia que lhe dar o tratamento que a importância justificava.

Os anos passaram, os regimes também, do novo hospital nem um tijolo, nem um só bebé nasce hoje em Sintra, as poucas  cegonhas  vindas de Paris sobrevoam a Pena, mas com destino a Cascais ou a Lisboa, aquela pedra e aquele recipiente de vidro solenemente enterrados em 1924 deixaram de ser uma prioridade para os vivos, o recipiente, esse sim, por certo um atractivo para os arqueólogos que qual Graal redentor, talvez  pensem que tenha havido um holográfico hospital em Sintra, na velhinha Rua das Murtas e que como muito outro património já desaparecido tenha sido engolido na voragem urbanizadora.


 

publicado por Fernando Morais Gomes às 06:42

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