por F. Morais Gomes

06
Mar 11

Diogo e Filomena passavam revista à quinta, vetusta, cheia de musgos mas frondosa nas faldas da serra, eterna primavera de verde e azul.Fora um achado, a velhota precisava do dinheiro, de repente o sonho da casa em Sintra tornado realidade.Uma velha cabana onde andorinhas faziam ninho no beiral no  anual retorno da grande viagem ao Sul ficava ao fundo,não longe, Monserrate, altivo e mourisco, e um lago de águas cristalinas, onde graciosos patos agitavam as águas espelhadas. O Florindo, de Gigarós, jardineiro que já trabalhara para os antigos donos, mostrava a zona, junto ao lago ficou um quanto melancólico,Diogo percebeu-lhe  um acabrunhamento e tentou averiguar o porquê:

-Algum problema, senhor Florindo?

-Coisa antiga, senhor engenheiro, de mais de quarenta anos, era eu rapaz pequeno ainda.

-E pode-se saber a história?

Florindo hesitou, mas lá abriu o livro de memórias;

-Aquela casa que comprou lá em cima guarda uma história muito triste, sabe. Durante anos foi propriedade do senhor Agnelo Bombarda, um comerciante de Lisboa, os meus pais até chegaram a ser caseiros lá. O senhor Agnelo tinha uma filha, a menina Maria do Carmo, sempre bem disposta e meiga. Enviuvou cedo, a D. Joana morreu num acidente de avião nos anos setenta, e ficou a viver só com a filha, de sete anos,mas nunca mais foi o mesmo, sempre triste e calado.

-Deve ter sido muito triste, calculo…-desabafou enternecida Filomena.

-A menina Maria do Carmo guardava uma lembrança da mãe, uma pequena caixinha de música, com uma bailarina articulada  lá dentro,a acompanhar a melodia. A minha mãe dizia que ela costumava ter sonhos em que a mãe, na forma de um anjo lhe aparecia sorria e acariciava o rosto. E a pequena suspirava ao pensar na falta do carinho materno, suspirando por ver o pai sorrir ao menos uma vez. Chegou a dizer à minha mãe que no sonho a mãe lhe dizia que quando estivesse triste, abrisse a caixa de música, que ela viria a correr para o lado dela. E na verdade, sempre que a garota se sentia perdida, abria a caixa e ficava parada, vendo a bailarina a dançar.Depois da morte da mulher, o senhor Agnelo nunca mais foi o mesmo, mas gostava muito da filha, várias  vezes os vi ali no lago olhando os patos a nadar, ela até os queria levar para casa… - Florindo gesticulava, como se tivesse sido ontem, descrevendo pai e filha com precisão. Diogo emocionou-se com a história e abraçou Filomena, a sua Susana também ia nos nove anos, mas a mãe estava viva e de saúde, felizmente. Florindo continuou;

-A certa altura, o senhor Agnelo começou a meter-se na bebida, não queria saber de nada. A menina, coitada, chamava-o para irem ver os patos, ele dizia que iriam depois. Um dia ela disse-lhe que a mãe lhe prometera que nunca a abandonaria e  que cumpria, mas ele não. Aí, ele ficou transtornado, já estava atravessado e deu uma sova na filha e que nunca mais pronunciasse o nome da mãe perto dele .A coitada ficou em estado de choque, fugiu a chorar e ele, vendo o que tinha feito, meteu-se no quarto um dia inteiro. Nessa noite ela pegou na caixa de música e veio até ao lago, abriu a caixinha e chamou pela mãe.  Na manhã seguinte, o senhor Agnelo arrependido quis redimir-se e foi fazer-lhe o pequeno almoço para lho levar ao quarto , mas ela não estava na cama. Correu a casa,o jardim, veio para a estrada, e no meio do lago encontrou-a a boiar, morta, a caixa da música a tocar em cima de uma pedra. Foi uma tragédia!- Aí, Florindo, parou,taciturno,lembrava-se como na escola, em Colares, na altura,  a história impressionara professores e alunos.

-Foi o descair completo do senhor Agnelo, sempre sentado naquela pedra  a olhar para o lago, uma vez até o porteiro de Monserrate lhe disse para ir para casa, já era  noite e não se mexia, hipnotizado. Uns dias depois  foi encontrado a boiar no lago, com a caixa de música outra vez naquela pedra.

Filomena, impressionada, fixava os olhos no lago e parecia ver os dois vultos guardados pela floresta,sua trágica sepultura. Anoitecia e voltaram à casa, Susana aguardava junto ao carro brincando com um gato, instintivamente o pai abraçou-a,beijando-lhe a testa, a mudança seria duas semanas depois. Arrancando para Sintra, o som duma caixa de música com uma bailarina dançando parecia vir do lago de Monserrate, triste e crepuscular.

publicado por Fernando Morais Gomes às 23:01

Pelas cinco da manhã já a aurora rosada e quente recortava o Pão de Açúcar, o posto seis de Copacabana enchia-se de vendedores de água de coco e sorvete,as quengas que toda a noite  tinham aviado ocasionais turistas sumiam agora à vista do dia como vampiros tornando ao caixão, para na noite seguinte retomar o batente. Mês de Carnaval, samba nos genes, o Rio vivia a semana maior do ano, Gustavo e Jorge, que  não iam à cama desde a chegada ao Galeão haviam garantido  bilhete para o sambódromo, paraíso de mulheres. Sete para cada homem, dizia o porteiro do hotel, já habituado à anual orgia dos sentidos. Enrolado em transpiração e cor, desaguando esfuziante na Marquês de Sapucaí aí estava o ansiado mundo de baianas e passantes, os deserdados filhos do morro reluzentes  e coroados príncipes por três dias. Para tudo se acabar na quarta-feira.

Enquanto o grande dia não chegava, Jorge aproveitava para um pouco de praia, Ipanema sempre, apesar dos trombadinhas e dos arrastões,Gustavo,menos dado a praia,preferira o jogging matinal no calçadão,dois  cariocas que conhecera no posto sete sabendo-o português ofereceram-lhe mesmo “bolinhos de bacalhau”,ficando logo diários companheiros de corrida.

Na noite de sábado,finalmente,a festa na Grande Arena.Autocarros pejados levavam os foliões ao desfile, um kit de sobrevivência com sandes, cerveja e “camisinhas” a abrir as hostilidades. Antes do cortejo, picanha no Terreirão do Samba, gigantesco arraial no exterior do sambódromo.Caipirinha com limão, corpos soltos e à solta, coutada fértil  para uma noite de caça. Daniela, morena  gazela,aproximou-se da mesa, a oferecer companhia, mais tarde desfilaria com os Unidos da Tijuca, esse ano o tema era Santos Dumond, o pioneiro da aviação.Vaporosa, parecia levantar voo,  os dois amigos,  já em piloto automático, exultavam:

-Oi caras, me pagam um chope?- desafiou, dengosa e endiabrada, Deus fez o mundo mas o português fez a mulata, pensou Gustavo para consigo. Era jackpot, atrás trazia amigas, súbito harém na noite de quarenta graus.No palco, a música contagiava, já as primeiras escolas sambavam lá dentro, na noite quente do Rio.

Passados ao sambódromo, o álcool e o calor faziam já das suas, camisas fora, corpos dentro, ritmo endiabrado comandando a noite de todos os perigos, os apelos quentes das patrícias clamando pela amizade luso-brasileira, aquilo sim, verdadeira lusofonia a sul do Equador. Em Sintra , Inverno, os amigos por certo a beber um copo na Vila, quando muito uma saltada a Torres, eles na twilight zone aprofundando relações diplomáticas.

Jorge torcia pela Mangueira, durante o favela tour estivera no ensaio geral, no morro, Jurema, felina passante, prometera-lhe um encontro depois do desfile. Gustavo, enquanto Daniela não desfilava estava mais atento a um zepelim que sobrevoava o recinto, o Corcovado ao fundo guardava iluminado. Nessa noite, nove escolas, uma hora para cada exibição, é dose, dizia o Gustavo, a fazer a conversão média em “chopinhos”, o transfer do hotel ficara para as seis da manhã.

Aí pela sétima escola e vinte cervejas depois,após a Mangueira desfilar,  Jurema  chegou, radiante e emplumada, e logo sumiu com Jorge para o lado dos lavabos. Gustavo, depois de esperar que Daniela  deslumbrasse- não se calara chamando por ela, apetitosa no fio dental com que excessivamente se cobria - mandou um SMS ao amigo, que por certo já não  iria ler nessa noite, e rompendo aquela Sodoma electrizada partiu com ela num táxi,  o transfer que se tramasse. No banco de trás, finalmente a explosão dos sentidos e dos corpos, alheios ao silencioso taxista que pelo retrovisor observava cúmplice os irrequietos e fogosos clientes. Gustavo mandou-o deambular pela cidade, sem destino, até que mandasse parar, no final as areias de Ipanema albergariam um fim de noite fulgurante, o Jorge no sambódromo por certo estaria já no zénite com a Jurema. Quase manhã, ainda hordas de  foliões fantasiados queimavam um ultimo  samba no calçadão, Gustavo, extenuado e ainda descalço, depois de meter Daniela num táxi para o morro, finalmente voltava para o hotel. Uns metros à frente, a música envolvente vinda do interior do Scala convidava a uma última bebida. Que se danasse, festa è festa, entrou,uma fauna de carnavaleiros aos pulos  e com ar lascivo rodeava o bar:

-Precisa companhia, gostosão?- meteu-se um tipo magro e louro a quem um disfarce de Arlequim emprestava um ar perturbador. O cheiro de Daniela ainda impregnado no corpo não o  cativou para aquele papo de fim de  noite, sem grande alarde descartou-se, o outro, que lambia os lábios na sua direcção, sumiu amuado para junto dum grupo de excêntricos amigos, todos fantasiados de marinheiros. Este não bebe mais nada, pensou Gustavo, despachando uma vodka preta abaladiça.

À saída, já novo e quente dia raiava na baía de Guanabara, satisfeito pela  vertiginosa noite, reparou no cartaz do Scala, anunciando a festa que ainda resistia lá dentro: “Galera, hoje, Noite Gay e Lésbica. Caia no pedaço”. Sorriu e seguiu para o Othon, já caíra  o suficiente,essa noite, e em que pedaço…


publicado por Fernando Morais Gomes às 00:10

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