por F. Morais Gomes

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Mar 11

Na quinta-feira não tinha havido aulas, o ponto de Física ficara adiado por causa duns militares que tinham ocupado o Terreiro do Paço, o avô do Filipe telefonara logo de manhã a aconselhar que não saíssem de casa. A televisão passava um episódio repetido do Daktari, chuviscava naquele dia cinzento.Filipe, contente de não haver aulas foi ao barbeiro, boatos desencontrados sobre um golpe de Estado ,diziam receosos, aos catorze anos ignorava o que isso fosse, um dia sem aulas era sempre uma festa.

No dia seguinte achou a escola agitada, o Murteira,porteiro do Passos Manuel,acossado, teve de fugir, pertencia a uma tal PIDE-DGS, era informador diziam, o Miguel, colega da turma B e neto do  Marcelo Caetano, não apareceu nesse dia, parece que o avô tinha ido para a Madeira à pressa.

No sábado, e depois duma avalanche de acontecimentos, debaixo de chuva subia com os pais ao agora mítico Largo do Carmo, soldados com cravos pendurados em chaimites tiravam fotos com populares, ali tudo acontecera em poucas horas. Lisboa cinzenta   exultava de alegria, guedelhudos de megafone na estátua do Rossio invectivavam transeuntes, apelando à sua prisão, informadores da PIDE, denunciavam, logo detidos por populares agora armados em milícias, o chefe deles, um tal Saldanha Sanches clamava contra o fascismo.

No liceu, tudo mudou em poucos dias. O professor de História, o “careca megalítico”, até ali sorumbático e cinzento mostrava-se agora simpático e adepto da nova situação, opositor durante anos silenciado,mais receoso o padre Borges, de Moral, receava a anarquia, só Deus sabia o que por aí viria. Embriagados pelas novas da liberdade que de todo o lado choviam, empurrados por canções nunca escutadas, descobriam-se mundos até ali escondidos, um Zeca Afonso, de Coimbra, o padre Fanhais, Luís Cília, Adriano Correia de Oliveira, na sala de alunos manifestos policopiados  e jornais de parede apelavam a uma RGA, a nova vida da escola em discussão no ginásio no dia seguinte à tarde.

Filipe, apanhado pelo vendaval, exultava, no tal plenário foi eleito secretário da mesa, todos ingénuos e analfabetos da coisa, nunca se havia feito uma reunião assim ou sabia o que era um ponto de ordem ou uma declaração de voto. Certo é que em prol dum ensino democrático e livre lá se acertou uma manifestação, acordada com todas as escolas de Lisboa, o ministério na 5 de Outubro nunca tal folclore admirara, enquadrado por chaimites que emprestavam à cena o épico da revolução de Outubro horas antes do assalto ao Palácio de Inverno.

Miguel, David, Susana, o Vitinho, toda a turma se organizava agora, representantes de alunos e professores, a orgia da festa permanente, manuais de História revistos, os retratos do poder apeados, o pobre reitor perante quem com medo se levantavam nas visitas à sala de aula saneado, prócere lacaio do poder deposto.

No dia do trabalhador, Filipe e Susana de mãos dadas subiram a Almirante Reis, Portugal todo ali, o país do fado país em festa, marinheiros e povo anónimo abraçado, o mundo a olhar para aquele esquecido rincão atlântico que desassombradamente fazia a primeira revolução utópica dos tempos modernos, o mundo pasmava e o povo agigantava-se.

Nas semanas seguintes, a escola entrou em ebulição, os partidos dividiram as opiniões, os plenários ficaram mais organizados, com actas e voto secreto, a democracia  gatinhava, os jovens tornaram-se homens. Nada poderia deter a força indómita da geração da liberdade, universidade para todos, um futuro assegurado, a servidão enterrada por força daquela manhã de Abril em que para gáudio  não houve ponto de Física.

Miguel e Susana, apaixonados,acabaram por entrar na universidade juntos, licenciaram-se, compraram casa, tiveram um filho, a Europa chegou e o país mudou, como a televisão, agora a cores, viajaram, com orgulho podiam dizer aos amigos, cúmplices daqueles dias estranhos e já míticos que o  filho haveria de viver num país livre, qualificado, contentes com o progresso, baby boomers com vinte anos de atraso mas a tempo de apanhar o comboio, pelas portas de Abril só bom vento e brisa amena passaria agora

Uma manhã, em meados dos anos oitenta ,nasceu o Bruno, gorducho e rosado, a casa com jardim e o carro novo completavam um percurso de sucesso e realização. Miguel, satisfeito, depois do parto, por impulso abraçou Susana, o olhar babado fixo no irrequieto rebento, não havia dúvidas, aí estava agora uma nova geração a gatinhar, o Gil, colega da faculdade, também já tinha dois, o futuro certo e esperançoso.

-Amor…

-Sim?- Susana molhava a chucha do Bruninho, já estava habituada às melancolias do marido, sempre  sentimental:

-Lembras-te de não termos dinheiro para as férias na serra da Estrela? E de não termos cheta para a discoteca ou para voltar para casa no primeiro autocarro da manhã? O nosso Bruno nunca há-de passar por isso, nunca há-de passar pelos nossos traumas e os dos nossos pais, lutámos por isso, a geração dele vai cumprir os seus sonhos, acredita!

Abraçados, o futuro era azul cor de mar e verde melancia, só coisas boas podiam vir depois de anos de chumbo e de mudanças atribuladas. Bruno, dormindo como um anjo teria o futuro assegurado quando adolescente fosse para a universidade e usufruísse da sociedade de abundância e oportunidades pela qual a custo e com luta os pais tinham lutado e beneficiado. O país prometia, a Europa pagaria e os amanhãs cantavam soltos e despreocupados. Eram os anos oitenta.


publicado por Fernando Morais Gomes às 06:41

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