por F. Morais Gomes

24
Mar 11

 

 

 

publicado por Fernando Morais Gomes às 20:45

O meu desejo é ver-me entre quatro serras, dispondo de algumas leiras próprias, umas botas grosseiras e um chapéu de Braga - a situação apanhara-o em plena fase de negação política, com  o desejo de retirar-se definitivamente para Vale de Lobos, ancorado no porto tranquilo e feliz do silêncio e da tranquilidade. Dono de grande energia e carácter, Alexandre Herculano, na semana antes eleito deputado por Sintra naquelas eleições de 1858 aconselhava-se com o amigo José Estevão, orador acirrado e eterno deputado por Aveiro:

-Isto dá vontade de morrer, meu caro! - exclamava ele, passeando por Gigarós na companhia do correligionário, recém-casado já tardiamente - A política entre nós está podre. O Garrett é que tinha razão ao dizer, foge cão, que te fazem barão!

-Reflicta bem, Herculano, o partido precisa de si, se eles acharam por bem candidatá-lo quem melhor que o meu amigo para representar o círculo nas Cortes. Reconsidere homem!

-Mas eu nunca vivi em Sintra, não é razoável representar um círculo onde não vivo nem os eleitores me conhecem. Isso vai contra tudo o que tenho lutado. Não, não vou assumir o lugar de deputado! Já em comícios e na imprensa manifestei a minha íntima convicção de que nenhum círculo eleitoral deve escolher para representante um indivíduo que lhe não pertença e não conheça as suas necessidades e misérias, os seus recursos e esperanças. Isso, eu reputo sobretudo importante pelo seu alcance, pelos seus resultados em relação ao futuro. É, no meu modo de ver!

- Mas você para defender os interesses de Sintra basta metê-la na alma, puxar pelos projectos, falar com as gentes…

-É por isso que a instrução está como está, a agricultura definha, todos esperam tudo do governo central, como se fosse a Providência, mas para se dizer o que há a fazer é preciso conhecer, falar, estar no local. Aceitar outra coisa, caro Estevão, é uma abdicação tremenda da consciência de cidadão.

Os burros alugados em Sintra seguiam puxados pelos arreios, os dois caminhavam a pé e a seu lado já na direcção dos Capuchos. José Estevão acusava a estrada íngreme, Herculano, seco de carnes deleitava-se com aqueles passeios pela serra, a reflexão sobre a sua renúncia ao mandato ocupava-lhe o íntimo, os seus alfarrábios e pergaminhos eram agora a sua vida, desfeitas as ilusões que um dia, jovem voluntário, tivera de mudar o país ao desembarcar com os liberais no Mindelo. Como iam longe esses dias generosos, mais de trinta anos.

-É entre filhos da terra que os círculos deveriam escolher os seus representantes, com a redução dos grandes círculos a círculos de eleição singular, que um dia possam servir à restauração da vida municipal, da expressão verdadeira da vida pública do país, e de garantia da descentralização administrativa, como a descentralização administrativa é a garantia da liberdade real! -pedagogo insistia no estoicismo dos seus princípios, o amigo, já bafejado com sinecuras anuía que sim, mas nem sempre assim procedera, já chamuscado nos governos de facção e na política da Carta, artífice do verbo fácil e inflamado.

 -É honroso merecer a confiança dos nossos concidadãos, mas é mais honroso viver e morrer honrado! Só a eleição de campanário é o sintoma e o preâmbulo de uma reacção descentralizadora, é a condição impreterível da administração do país pelo país, e esta é a realização material, palpável, efectiva da liberdade na sua plenitude, sem anarquia nem revoluções, de que não vem quase nunca senão mal. Para obter este resultado, é necessário que a vida pública renasça. Os partidos, sejam quais forem as suas opiniões ou os seus interesses, ganham sempre com a centralização. É preciso que o país da realidade, o país dos casais, das aldeias, das vilas, das cidades, das províncias acabe com o país inventado nas secretarias, nos quartéis, nos clubes, nos jornais, e constituído pelas diversas camadas do funcionalismo. Dantes, os frutos que dá o predomínio da centralização, supunha-se colhê-los o rei: hoje colhem-nos seis ou sete homens chamados ministros.

-Ninguém está acima das paixões, dos preconceitos, das fórmulas, da índole da sua época, Herculano. A carne é fraca. Sejam quais forem as nossas aspirações quanto ao futuro, vivemos no presente, e quando não nos abstemos da política, enfileiramo-nos nos partidos, às vezes, até, sem o querermos e sem o sabermos!

Os dois detinham-se agora numa fonte na estrada da serra, camponeses saudavam servis, sem reconhecer os forasteiros.

-Está a ver Estevão? Eu deveria representar este pobre homem, mas ele nunca me viu nem tão pouco sabe quem sou….E eu nem sei o nome das localidades onde moram, os rios que atravessam as suas terras. Outros amigos do Ministério há-de haver por aí que façam melhor o lugar! Olhe, já tinha ouvido falar num sítio chamado Galamares? Ou num chamado Morelinho? De igual modo eles nunca ouviram falar de mim, não faço compra de votos aliás, nem nunca poderiam ouvir….

Anoitecia e voltavam ao Arrabalde pela mesma estrada, salteadores frequentes aconselhavam a que não desafiassem o breu da noite, José Estêvão iria entreter-se a escrever um pouco mais do seu discurso contra o imposto sobre a vinha, quando falava, o Governo tremia.

Herculano só pensava em Vale de Lobos e nos seus catálogos de documentos, só do Lorvão trouxera um baú, iam deitar fora, em boa hora chegara. Definitivamente, decidiu-se e escreveu aos eleitores a renunciar ao seu mandato de deputado por Sintra. O seu apreço por ela impunha-o, outros fariam diferente, ele não sabia fazer doutra, eleito para representar a sua consciência, uma última malga de água na Sabuga, onde também as burras se refrescaram, não seria procurador por Sintra mas seria regente da sua consciência.

publicado por Fernando Morais Gomes às 14:54

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