por F. Morais Gomes

30
Mar 11

No pequeno laboratório da Calçada das Necessidades, o professor Guimarães e o seu assistente Guilherme ultimavam a experiência que finalmente demonstraria a possibilidade de viajar no tempo, a máquina, criada a partir de um aparelho de tomografia axial computorizada transformado, permitiria, segundo ele, o transporte ao passado, a experiência decisiva estava marcada para essa noite:

-Caro Guilherme, de acordo com Einstein, o tempo passa mais lento à medida que um objecto se aproxima da velocidade da luz, logo viajar mais rápido que a luz abrirá a possibilidade de viajar no tempo. A ideia é entrar num buraco negro e penetrar numa estrela em fim de vida que ao colapsar entrará num anel de neutrões rotativo. Este produzirá uma força centrífuga suficiente para impedir a formação de uma singularidade. Como o buraco negro não tem uma singularidade, vamos penetrá-lo usando este aparelho,  sem ser esmagados pela força gravitacional do seu centro! - o professor chegava agora ao ponto alto da sua vida, a experiência que até ali só o cinema e a ficção científica tentaram, Guilherme acompanhava o entusiasmo do mestre, professor de Física da Universidade de Lisboa. - Ao atravessarmos vamos sair num buraco "branco" que em vez de atrair tudo que estiver ao alcance de sua força gravitacional para dentro de si vai empurrar tudo para fora e para longe. Esse buraco branco criará a possibilidade de viajarmos no tempo!

Preparados os fatos térmicos, programaram a máquina e experimentaram uma primeira viagem, curta: Lisboa, aquele mesmo local, o ano: 1835.

Depois de náuseas e duma sensação de vertigem incontrolável, que durou pouco mais de trinta segundos, aterraram desgovernados num celeiro onde dois cavalos relinchavam com a chegada do inesperado volume. Ainda tontos, saindo do mesmo, os olhos esbugalhados confirmavam o sucesso da experiência: mesmo em frente, de construção recente, o Palácio das Necessidades, guardas reais montavam protecção, um padre, absorto, saia do palácio. O professor dirigiu-se a um taberneiro, num esconso que ladeava o palácio e perguntou o que se passava:

-Vossas mercês são de fora? Então não sabem que o marido da rainha está à morte? Pobre homem, ainda agora chegou a Portugal…

Guilherme recapitulou os seus conhecimentos de História e pelas suas contas o doente só poderia ser o príncipe D. Augusto de Leuchtenberg, marido recente de D. Maria II, chegara a Portugal em Janeiro desse ano, mas morreria de difteria dois meses depois. O jovem assistente de Física teve uma ideia:

-Professor, podíamos ajudar a resolver este problema. Sabe que o príncipe morreu de difteria? Podíamos usar os conhecimentos da medicina que já possuímos e tentar salvá-lo!

-Boa ideia, Guilherme. Vamos ao palácio, tentaremos apresentar-nos como físicos experimentados, a ver o que sucede! Temos é de ser discretos, e arranjar roupas da época!

Com facilidade o professor conseguiu acesso ao palácio, a rainha chorosa antevia já a viuvez ao fim de dois meses de casada, desesperada, qualquer conselho que ajudasse seria bem vindo. Efectivamente as amígdalas e a faringe do doente desenvolviam uma membrana de pus no fundo da boca, a produção da toxina e a sua libertação no sangue poderiam levam à morte cerebral. Sacando duma mala que haviam trazido do futuro, o professor administrou ao doente perante o pasmo e incredulidade dos médicos presentes uma vacina que actuaria sobre o  seu sistema imunológico, bem como doses de penicilina e eritromicina, para destruir as bactérias nocivas. Dois dias depois a febre baixou, o príncipe deu enfim sinais de melhoras e missas de júbilo foram rezadas por toda a cidade, o pior parecia ter passado. Os dois estranhos, a par de acompanharem a convalescença do real paciente viam a Lisboa da época, tirando notas, sempre se apresentando aos mais desconfiados como académicos vindos da corte da Prússia, os resultados na recuperação do marido da rainha afastavam quaisquer suspeitas mais graves.

Três dias depois, sem avisar, voltaram ao presente, a registar a experiência e preparar novas viagens. O professor Adérito, colega com casa em Sintra ligou entretanto, queria trocar ideias sobre um acelerador de partículas, mal suspeitava da experiência do arrojado colega, tentara ligar mas ninguém atendera.

Desinteressado e com outras preocupações, lá foi, porém, era um velho amigo. Para seu espanto, à saída de Lisboa apenas árvores e quintas de trigo se vislumbravam, a estrada de Sintra era um mero acesso em macadame, imensas hortas povoavam a paisagem, sem vestígio de comboio, IC-19 ou aquela selva de betão a que estava habituado. Em Sintra, para seu espanto, desaparecera o Palácio da Pena, e só o castelo dos Mouros e o Paço da Vila subsistiam, num marasmo e silêncio seculares. Abordando um camponês que passeava na Vila, sondou-o sobre o que sucedera:

-Palácio da Pena? Ó amigo, ali nunca houve Palácio nenhum. Quando muito está lá uma ruína dum convento antigo, daqui até lá acima é só mato e pedras. Isto Sintra nunca ninguém fez cá nada! - suspirou, ao torno do Paço apenas um pequeno relvado, vinte a trinta casas, nada estava como dias antes. Num arremedo luminoso percebeu o que acontecera, e sem ter chegado a falar com o colega voltou para Lisboa, acelerando,  precisava de falar com Guilherme com urgência:

-Gulherme, temos de voltar ao passado de novo, aconteceu uma coisa terrível!

-O que foi professor? Baixaram o rating do país de novo? Isso já não é novidade…

-Pior!  Ao salvarmos a vida do príncipe Augusto alterámos o futuro!

-Como assim?

-D. Maria II depois de enviuvar casou em segundas núpcias em 1836. Ora ao salvarmos a vida do primeiro marido, o segundo, D. Fernando Saxe-Coburgo não chegou a ser rei de Portugal, e como tal nunca o Palácio da Pena nem tudo o que veio por arrasto foi construído. Mudámos a História de Portugal!

-Oh diabo, não nos lembrámos disso…- o assistente coçava a cabeça, fora ele que de boa fé sugerira salvar o aflito príncipe com difteria.

-Temos de voltar lá e deixar a História cumprir o seu destino!

Nessa noite de novo accionaram a máquina do tempo, lá deixando falecer, no meio do choro geral, o marido da rainha de Portugal. Detiveram-se porém alguns meses desta vez, a estudar os costumes da época, sempre cuidando de nada contribuir para alterar o futuro. Quando os esponsais de D. Maria II e D. Fernando finalmente se realizaram, disfarçado no banquete, e exercitando os seu três anos de alemão no Goethe Institute de Lisboa, Félix Guimarães ainda se aproximou do novo rei, louro e de cabelos desalinhados, acabado de chegar:

-Majestade, vai gostar muito desta sua nova pátria. Olhe, sugiro que vá até Sintra, é um sítio maravilhoso e com um clima ameno e prazenteiro, semelhante ao do seu país. Poderia até edificar lá uma casa de Verão, a rainha iria adorar….


publicado por Fernando Morais Gomes às 11:20

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