por F. Morais Gomes

19
Mar 11

José Luís todos os dias chegava ao “Académico” pelas oito, a bica e o “Correio da Manhã” a par da cavaqueira com o Alcides e o Mário Rui, funcionários das Finanças era rotina diária. Do outro lado da rua, a Secundária de Santa Maria enchia-se já dos alunos da manhã, ruidosos com os auriculares, muitos com paragem certa no café antes da entrada, Bruno, calças abaixo do rabo e boné ao lado e Sofia, livros no braço e um só caderno, trocavam os primeiros beijos do dia, a aula de Francês era só às oito e meia. Depois do apuramento dos clubes portugueses na Taça Europa, festa para todos, menos para o Sporting, e como não há opinião pública antes de se ler a opinião publicada, os clientes das oito devoravam os matutinos, os mais velhos sempre com um olho na necrologia, mais um que deixara de fumar, um dia destes a vez deles. Ainda os ecos da manifestação dos jovens como tema das conversas, o Alcides, galão e meia torrada, o mesmo desde há vinte anos, peremptório lançou um palpite:

-Esta malta…. Se fossem mas era trabalhar, há por aí muito campo às urtigas. Os pais gastam o que têm e não têm para eles estudarem mas ninguém quer trabalhar, querem só emprego, é o que é! - O Mário Rui, a meses da reforma antecipada concordava, desde os dezassete que trabalhava no duro.

-Sabe o que é, amigo Alcides -intrometeu-se o José Luís, dono da papelaria a dois passos, dois filhos com vinte anos já na faculdade - o mal disto é que a malta não foi educada para lidar com contrariedades. Os putos nunca foram tão privilegiados como agora. A gente é que é culpada, quisemos o melhor para eles e eles acharam que tinham direito a tudo de mão beijada!

O Pedroso, fiscal da Câmara e com uma filha psicóloga a trabalhar num call center, na mesa do meio corroborava:

força de querermos o melhor para eles demos-lhes foi mimos e mordomias a mais e eles pensaram que estava tudo garantido, sempre em crescendo, saídas à noite, carta de condução e carro com gasolina, cartão multibanco. Enfim, pai é pai, mas se calhar andámos mal…. Enquanto houve dinheiro da Europa ainda andou, mas agora, não há Salazar que valha a isto. Olhe, já não é Estado, é o Estado a que isto chegou!

Sofia até ali entretida a curtir com o namorado achou ocasião de meter o bedelho também, espicaçada pela troca de galhardetes:

-Ó senhor Pedroso, essa conversa é muito engraçada, mas agora depois das coisas acontecerem é que vêm todos fazer diagnósticos da treta. Se fez isso pelos seus filhos é porque estava confiante que era o melhor, não era? Querem ver que fomos nós que pedimos para nascer!

Bruno sem se pronunciar reforçava com o olhar, os demais clientes, transeuntes, entretinham-se a ver na televisão imagens da central nuclear japonesa, aquilo sim era problema sério, cá o nosso cantinho   ainda era sossegado, no meio de tudo. José Luís, deitando um olho para a papelaria, não chegasse algum cliente, emparelhava com o Pedroso, velho colega do liceu, aliás, ambos antigos juvenis no Sintrense:

-O Chico Pedroso tem razão. Os vossos pais estão à rasca para pagar a prestação da casa ou do carro, mas algum de vocês deixou de ir ao Sudoeste ou ao Rock in Rio? Agora até pegou moda irem para o McDonals ou para o shopping fazerem as festas de anos com os amigos e nem sequer levar os pais, que é fatela. Mas para dar o dinheirinho já não é. Em casa é o que se sabe: mal falam com os vossos pais, encafuados no quarto a falar com os amigos na net e só saem de lá para sacar dinheiro para ir sair com eles. Nós é que somos os culpados, facilitámos demais! E depois não sabem ouvir um não que fazem logo chantagem emocional, condicionando os pais. O Júlio Machado Vaz no outro dia é que dizia e com razão: pai é para educar, não é o irmão mais velho! -concluía o José Luís, um cliente para um caderno quadriculado chegava agora, despedia-se até à bica do almoço - Até logo meus senhores, a ver é se apanhamos um clube português na final da Liga Europa! -provocava, sabendo a maioria do Benfica.

A aula das oito e meia estava a começar, Sofia e Bruno, contrariado e subindo as calças que lhe caíam lá foram a correr, a stôra de Francês até era fixe, pelas onze iriam ao Pingo Doce comer uma fatia de pizza, a comida da cantina não agradava, sopa e guisado com ervilhas, coisa fatela, mandariam um kolmi ao Vasco para ir ter com eles ao jardim da Portela.

A D. Palmira, empregada nos SMAS, chegada para um café e apanhando o final da conversa questionava com os outros a qualidade do ensino:

-Também gostava de saber porque é que passam a vida a dizer que esta é a geração mais qualificada. A minha Sónia está em Letras e no outro dia veio-me perguntar quem foi o D.Quixote. Bom, fiquei para morrer, no meu tempo no quinto ano do liceu já tinha lido esses livros todos, por obrigação é verdade, mas dá-me ideia que hoje há mais canudos, mas qualificações, só se for para as estatísticas….

O Mário Rui, despedindo-se, terminado o “Correio da Manhã” reflectia com o Alcides em voz alta, antes de ir processar mais umas penhoras electrónicas:

-Esta malta de agora pensa que manda no país como manda lá na escola, a bater nos professores, havia de ser comigo! Querem todos é tacho, trabalhar está quieto. O pior é que um dia destes vem por aí um iluminado qualquer e eles vão atrás, escrevam o que eu digo!

No noticiário dum canal de informação passava agora um resumo duma entrevista com José Sócrates, pasmado por Passos Coelho lhe querer tirar o tapete, o Alcides, leitor assíduo dos clássicos ainda teve uma tirada depois de pagar a bica ao balcão, já a sessenta cêntimos:

-Ó Mário, sabes que dia é hoje? 15 de Março!. Foi o dia em que Júlio César foi apunhalado nas escadas do senado, em Roma. Acho que o Sócrates também já encontrou o Brutus dele nos idos de Março….Até logo, meus senhores! - e saíram direitos às Finanças, três meias de leite saíam para os miúdos da mesa três, satisfeitos por uma aula a menos, faltara o professor de Matemática.


publicado por Fernando Morais Gomes às 13:32

18
Mar 11

Grande negócio, comentara Guedes do Amaral com o Gregório das queijadas, a sua produção de conservas fora toda comprada por uns industriais de Lisboa, dinheiro vivo e na hora, coisa rara. As coisas em Sintra em 1925 corriam tranquilas, Guedes do Amaral podia agora expandir o negócio em Albarraque, duns toscos pavilhões agrícolas fizera uma unidade industrial de vulto, setenta operárias, a somar ao contrato de fornecimento para o Brasil podia tranquilamente lançar-se em novos negócios, os terrenos do Antunes dos Santos na Portela estavam debaixo de olho. Alfredo Pinto, director do “Semana de Sintra” juntava-se agora ao grupo na mesa da Piriquita, vindo da Estefânea.

-Então quer dizer que é coisa que se veja? -sondava o Júlio Amaro, o dono da pastelaria, servindo uma ginjinha com elas, os travesseiros viriam a seguir, quentinhos.

-Foi um achado, amigo Júlio. Recebi um estafeta lá no escritório, da parte duns engenheiros de Lisboa, queriam uma reunião comigo. Estranhei, nunca ouvi falar neles, mas negócio é negócio e lá fui, olhe aquele palacete do Menino de Ouro, em Lisboa, está a ver? Foi aí a reunião!

-Mas quem são os tipos afinal? -sondava o Gregório, até poderia ter interesse para ele.

-Um estrangeiro que estava lá recebeu-me em nome do grupo dos tais capitalistas, olhe, até tenho aqui um cartão - foi contando, puxando dum cartão de visita - Marang…. Karel Marang, é isso, holandês, parece.

-Quer dizer que está em maré de sorte, amigo Guedes - Alfredo Pinto passava os olhos pelo “Século”, o governo do António Maria da Silva estava em apuros, o costume, outro governo se adivinhava no horizonte.

-Pois o tal Marang fez uma encomenda grande, e até propôs a compra da fábrica, acho que representa um grupo estrangeiro interessado em investir cá, já adquiriram várias propriedades e parece que grande parte dos táxis de Lisboa lhes pertence. E pagou à cabeça, tudo em notas de quinhentos escudos! - Guedes sorria por dentro, não revelava quanto, mas  quarenta contos a pronto numa mala já lá cantavam, tudo em notas vivas de quinhentos escudos, até lhe iam saltando os olhos ao ver tanto dinheiro, felizmente estava guardado no sótão da casa, na R. da Pendôa.

-E foi muito…? -Alfredo tentava saber mais do agiota, este porém não se descosia:

-Para um almocinho há-de dar, amigo Pinto! Comidos os travesseiros, foram à sua vida, ia almoçar com o José Antunes dos Santos no Hotel Nunes, um naco de vitela como só o Saraiva sabia cozinhar.

Alfredo Pinto entretanto seguiu para Lisboa, o jornal em Sintra estava com pouca saída e uns tipos do “Diário de Notícias” haviam prometido arranjar investidores, o almoço seria no Grémio, pagava o Sousa Lopes, da redacção. Atrasado, chegou de táxi, com a edição da manhã debaixo do braço, tinha reportagem para a tarde:

-Desculpa o atraso, Alfredo, mas nem queiras saber, está uma bronca das grossas para rebentar! -disparou, ainda mal tirara a gabardine, que um criado do Grémio Literário segurou, fleumático

-Então? O Bernardino Machado já despachou o António Maria da Silva?

-Não, nada de política. Pior ainda. Já ouviste falar num tal Alves dos Reis?

-Não, nunca, tem coisas lá para Sintra?

-Esse tipo andou a comprar acções do Banco de Portugal, mais de dez mil, parece, com 45 mil acções já lhe daria para controlar o banco. Nunca ouviste falar dum banco que apareceu aí em Junho, o Angola e Metrópole? Pois ele é um dos donos. É um vivaço que ganhou dinheiro em Angola, até já tentou comprar o Diário de Notícias! - o Lopes pedia o vinho, a história prometia não ficar por ali - Consta que a mulher está carregada de jóias que ele lhe comprou em Paris, uma fortuna repentina feita em África…

-Sim, mas o que é que isso tem de anormal? –Pinto pensava ser mais de política o assunto, o novo hospital de Sintra, que não andava preocupava-o mais.

-Pois parece que está metido numa tramóia e das grandes! Descobriu-se   que esse tal Alves dos Reis arranjou um contrato fictício reconhecido no notário e falsificou as assinaturas dos administradores do Banco de Portugal. Com uns cúmplices estrangeiros dirigiu-se à Waterlow & Sons Limited, a casa impressora do Banco de Portugal, que na posse dum documento de encomenda falsificado lhe imprimiu 200 mil notas com o valor nominal de 500 escudos, aquelas com a efígie do Vasco da Gama,sabes, uma coisa do camano, é preciso ter lata!

-Então mas o que é que ele fez ao dinheiro?

-Parece que anda por aí em circulação desde Fevereiro, dizem até que terá sido com ele que abriu o banco. Olha tenho aqui o nome dos cúmplices dele na tramóia: um José Bandeira, irmão do nosso embaixador na Holanda, um alemão, Adolph Hennies , Karel Marang, holandês….

-Espera aí! - atalhou o Pinto - Karel quê?

-Marang. Porquê, conheces? - Sousa Lopes parecia surpreso por o Pinto reconhecer o nome.

A conversa da manhã na Piriquita e a história da mala com notas de quinhentos do Guedes surgiu-lhe de repente, agora interessadíssimo em escutar o resto:

-Não, não, continua… Lopes já pedindo café rematava a história:

-Aliás, como era possível o Banco de Angola e Metrópole conceder empréstimos a taxas de juro baixas, sem precisar de receber depósitos? Chegou-se a pensar que era uma táctica dos alemães para obterem vantagens em Angola. Parece que o nosso colega Vasconcelos, do “Século” descobriu uma nota falsificada e com o mesmo número de série na delegação do banco no Porto, e consta que há mais, é em grande escala a operação, estás a ver, se andarem por aí as duzentas mil!

A edição de 7 de Dezembro prometia. Um telefonema para Lopes interrompia o almoço, aliás quase concluído, a conversa sobre os patrocinadores para o jornal ficara adiada:

-Tenho de ir, é da redacção! Parece que prenderam o Alves dos Reis a bordo do "Adolph Woerman"! -Chapéu e gabardina e o Lopes voava para o Governo Civil, onde o detido aguardava, era perto, o “furo” estava garantido.

De volta a Sintra, Alfredo Pinto ainda incrédulo com o desplante dos burlões procurou Guedes do Amaral em casa, pondo-o ao corrente dos acontecimentos, poderia ter caído num conto do vigário. Apavorado, este correu para o sótão da casa e verificou as notas que Marang lhe dera dentro duma mala cartonada, o negócio chorudo ficava agora em causa, quarenta belos contos. Raciocinando rápido, chamou um carro de praça correu ao encontro de Antunes dos Santos e propôs-lhe a compra a pronto de todos os terrenos na Portela de Sintra que este possuía, quarenta contos, pegar ou largar, estava bem disposto. Surpreso, o outro hesitou, mas à vista das notas de quinhentos aceitou por impulso, Guedes do Amaral, expectante, suspirou de alívio, não se perdera tudo.

Pela tarde de 6 de Dezembro o Banco de Portugal ordenou a retirada de circulação de todas as notas de 500 escudos e no dia seguinte “O Século” fazia manchete com a burla monumental. Alfredo Pinto, sorridente e com o jornal debaixo do braço, depois dum café na Piriquita foi visitar o Guedes do Amaral na R. da Pendôa, a preciosa informação valeria bem um generoso patrocínio para o “ Semana de Sintra”…


publicado por Fernando Morais Gomes às 14:29

17
Mar 11

Fora em 1537 e com vinte e seis anos que Fernão Mendes se lançara numa longa e atribulada peregrinação por terras e mares do extremo Oriente, umas vezes mercador, outras pirata, sempre vagabundo ou pedindo pelos caminhos, escravo por vezes também. Naquele Maio de 1543, vindo de Malaca e  passada Quangeparu(*1), cidade de quinze mil vizinhos na costa da China, quase sempre  assaltada por juncos malaios, Fernão e  outros  portugueses a bordo dum navio em mau estado, cruzaram-se com dois juncos de Samipochaca, corsário chinês que fugiam dos homens do aitau de Chinchéu(*2), estes já lhe  haviam destruído outros vinte e seis barcos. Entabuladas conversas, logo  se passaram para o junco do corsário, assim navegando na costa do Lamau durante  23 dias, quase todos com temporais de vento esgarrão, até que uma tarde se lhes deparou aquela  ilha enevoada e desconhecida. Terras de Japão, dizia  Samipochaca, conhecedor dos mares.

Lá chegados os  dois juncos com os chins (*3)e  oito portugueses, veio-lhes ao caminho uma barca na qual se transportava o nautoquim de Tanimuxá(*4), assim se chamava a ilha, a ver quem eram e a exigir o pagamento de direitos de entrada. Noutra barca, homens  em vestes estranhas traziam frutas e refrescos, amáveis e calorosos,protegidos por chapéus de sol . Fernão, já conhecedor de muitas  e exóticas partidas observava curioso o diálogo entre o  corsário chinês e o japonês, de nome Hyascarão Goxo, uma mulher  de origem léquia traduzia. Uma angra de água doce para acostar o junco e retemperar forças por uns dias, era tudo o que pedia Samipochaca. Os esquisitos  portugueses a bordo causaram estranheza ao dignitário ,pelos narizes compridos e feições esguias, perguntando  por quem eram, daquelas paragens não pareciam. -São Chenchicoguis(*5), de Malaca, o seu junco perdeu-se com o mau tempo,venerável senhor!-esclareceu Samipochaca. O japonês mostrou-se surpreendido, querendo saber mais:

-Sois pois gentes desse Império poderoso cujas naus voam por cima das águas? Dizem ser  governado por um rei  com mais de duas mil casas cobertas de ouro, é verdade o que me narraram?- questionou, embasbacado.

Fernão Mendes, desejoso de causar boa impressão e com isso tirar proveito acenou que sim, em tudo exagerando a grandeza do rei de Portugal, senhor de riquezas indescritíveis, dono do grande Mar Oceano.

Impressionado e feitas as cortesias, mandou distribuir a todos paraus com  frutas e alimentos ao  que  Samipochaca, necodá do junco mandou também ofertar fazendas várias, pedindo para se deter doze dias para descanso e abastecimento de víveres, o que foi  gentilmente concedido.

Durante esse tempo despendido em Tanimuxá, Fernão Mendes Pinto e companheiros,sem nada para trocar, entretinham  o tempo conhecendo as paragens,caçando e escrevendo notas sobre a cultura daquelas desvairadas terras com ricos pagodes onde idosos bonzos aconselhavam os nativos na sua religião pagã .Desde Marco Pólo que se sabia da existência daquela Cipango, aparecia nas cartas como uma grande ilha defronte da China, havia sido representada por Fra Mauro em 1448 e em vão Colombo a procurara já ,porém ,não constava que português algum ali houvesse antes feito comércio ou erguido feitoria.

Diogo Zeimoto, amigo de Fernão, possuía uma espingarda com que se entretinha a caçar, certo dia acompanhado de chins porfiou mesmo apanhar mais de 26 galinhas, com que chegaram a Miaygimá, a principal cidade da ilha. O barulho tonitruante daquela inesperada pólvora seca  admirou os locais, o nautoquim surpreso e assustado logo chamou por ele, que lhe  mostrou e explicou o mecanismo da arma,desconhecida naquelas paragens. Satisfeito como uma criança, o nautoquim instruído por Diogo e Fernão ,meio receoso disparou, experimentando, logo apanhando uma perdiz, os bonzos pasmavam. Eufórico com o feito , logo ofereceu mil taéis de prata para ficar com ela e para o ensinarem a usá-la e preparar a pólvora.

Alguns dias passados, chegou à ilha uma nau trazendo um mensageiro do rei de Bungo,(*6) tio do nautoquim, que sabedor da presença dos chenchicogins os queria conhecer e saber coisas do seu poderoso reino. Solícitos, Fernão e os demais concordaram em ir, embarcando dias depois num funce com um tal Fingeindono e atravessando a angra de Hiamangó e Tanorá de modo  a chegar com bonança à fortaleza do rei de Bungo.

Duas noites de viagem calma eram decorridas já quando a terra estremeceu como arbusto seco sacudido pelo vento e bátegas de água com mais de três metros invadiram o convés, fazendo temer o pior. Fernão Mendes entreolhou Diogo Zeimoto, nunca tal abanão havia sentido, nem mesmo nas mais agitadas viagens  em mares da Taprobana(*7), o dignitário de Bungo, habituado, manteve-se impávido, as tremuras de terra eram frequentes naquelas ilhas, bem como fortes e grandiosas  as vagas. Assim era Cipango, os sábios bonzos nos pagodes tratariam de acalmar as divindades,mais vezes nesses quadrantes sentiriam os lusos a terra a sumir debaixo dos pés mas a serenidade dos locais acabaria por os  habituar, sempre sorrindo, guerreiros mas dóceis e sábios.

1-Kuang-Yen, China  2-Zhanzhou, China  3-chineses  4-Tanegashima, Japão  5-portugueses  6-Oita, Japão  7-Sri Lanka


publicado por Fernando Morais Gomes às 13:55

16
Mar 11

Acordou com o barulho da chuva, pingos gelados e grossos castigavam-lhe o rosto e o corpo. Apalpou em redor, terra molhada ficou-lhe agarrada aos dedos, um raio iluminou uma carrinha capotada alguns metros à frente, enterrada num matagal. Tentou levantar-se, mas sentia-se trôpego. Foi quando tentou abrir os braços que notou que algo os prendia, umas algemas. Devagar e cautelosamente sentou-se. O martelar da chuva batia inclemente no corpo dorido, respirou fundo a tentar achar forças dentro de si.Com dificuldade, conseguiu levantar-se e caminhar em direcção à carrinha. Ao volante, o condutor, um polícia, pendia de cabeça para baixo, morto, a cabeça rachada. Na parte traseira viu o corpo de um homem estendido no chão. Ficou parado durante algum tempo, pensando no que fazer. Entrou na carrinha, apalpou o polícia morto até encontrar umas chaves, retirou-lhas e livrou-se das algemas. A poucos metros dali tropeçou no corpo de outro homem, deitado de costas, mistura disforme de terra e sangue. Caminhando com dificuldade, a cabeça dorida,  afastou-se da cena do acidente. Ao longe viu luzes, parecia uma casa, foi na direcção dela, a cabeça latejava rasgada e com dores.

Vestindo apenas um roupão rosa, lá dentro, Simone terminava um duche, foi à sala e abriu a janela, a chuva havia parado. Na televisão, o   programa do Malato, no intervalo um noticiário especial foi emitido, um locutor relatava que um perigoso assassino  tinha fugido e estava à solta, o carro celular que o levava do Linhó para Vale de Judeus  sofrera um grave acidente e fora encontrado destroçado num descampado à saída da CREL.”“Foram encontrados os corpos do condutor e de dois polícias à civil. Perto da carrinha também foram encontradas umas chaves e um par de algemas. A polícia acredita que Reinaldo Pires, o foragido, também conhecido pelo “Duas Tesouras” abriu as algemas e evadiu-se. Um grupo de busca, auxiliados por cães foi activado para caçar o fugitivo”, relatava, mostrando imagens do local do acidente. Assustada e sozinha em casa fechou a porta à chave. Quando já ia para o quarto, estancou, a janela estava aberta. Podia jurar que a tinha deixado fechada, mas as cortinas ondulavam com o vento. Foi à janela e fechou-a, pôs o telemóvel no carregador e deitou-se na cama, por cima do edredon, a fazer zapping. Nesse instante, à porta surgiu o ofegante ferido, molhado, envolto em lama e sangue. O grito de medo dela teve o efeito de lhe aumentar a dor de cabeça e o tirar do torpor, avançou subitamente para ela e agarrou-a pela cabeça, tapando-lhe a boca com a mão:

 -Fique calada! Não grite! -ordenou com a voz trémula. - Fique quieta!
Ela ficou paralisada pelo medo, o corpo dele bem próximo do seu. “Ele vai-me matar”, pensou apavorada “ele vai-me matar”, “ele vai-me matar”...- era tudo o que conseguia pensar

-Não grite. Não vou fazer-lhe mal - prometeu.

 -O que quer comigo? – Simone, branca e aterrada, ensaiava umas palavras.

 -Eu... Estou perdido - respondeu com a expressão atordoada,

 -Como conseguiu entrar?

 -A janela estava aberta. Não foi preciso forçar, apenas empurrei. Você sabe quem sou eu?

 - Não. Você veio de onde ?Não ouvi nenhum carro!

 -Vim da estrada, lá em baixo – apontou, para o lado da janela, quase trezentos metros afastado do local do acidente, na curva. -O carro teve um acidente e capotou. Morreram todos menos eu. Acordei no meio dos destroços e vi que estava algemado. Sinceramente, não sei porque estava lá...

Ele não sabia quem era! Uma onda de compaixão e instinto de piedade apossou-se de Simone, já mais calma, e olhando as feridas expostas:

 -Você está muito mal, tem de ir a um médico.

-Não posso, sou um foragido, eu estava algemado, não percebe?

Coisa inexplicável, ela de repente já não sentia medo, ele não lhe parecia agora bom nem mau, apenas uma pessoa desorientada, nem sequer estava armado.

Na televisão, a voz grave de José Rodrigues dos Santos voltou a emergir: “ Um assassino continua à solta na zona de Sintra, depois de se ter evadido do carro celular que o transportava e que capotou”,as informações  novamente repetidas, ele ficou estarrecido a olhar a televisão, no local imagens eram agora captadas.

 -Então é isso. Sou um assassino! - ficou em pânico, sabia que estava preso, mas não lembrava o motivo - Quem foi que eu matei?

Ela olhou-o intrigada, seria possível que não se lembrasse de nada? Um sequestro, seguido de violação e morte, todos os telejornais falaram no caso  antes, uma moça de 23 anos em Cascais,  tinha cadastro.

 -Vamos, responda! Quem foi que eu matei? - insistiu ele.

 -Eu... eu... não sei.

 -Eu preciso saber a verdade, não percebe? Eu preciso de me lembrar! Por que tem medo de mim?

Deu meia volta, foi para o quarto, depois para a cozinha, ela ficou a observá-lo a andar de um lado para outro, a enorme ferida na cabeça metia cuidados. De repente ele veio na sua direcção e agarrou-a pelos ombros:

- Vá para o quarto e vista-se! Rápido!

Simone foi e retornou pouco depois, rosto pálido, ele meio empurrando meio puxando, conduziu-a à garagem e sentou-se no banco do carro dela:

-Guie! Vamos para  a esquadra!

 -Mas você é um foragido. Assim que puser lá os pés vai ser preso!

 -Não sei nem quem sou! Não tenho como fugir. Aliás, nem sei como me poderão julgar se não me lembro de nada. A minha mente é uma folha em branco!

Na esquadra, noite calma, a chuva parara já, o agente Dionísio estava acomodado na cadeira folheando uns papéis e vendo os Simpsons na tv, os seus favoritos, a noite era calma, com a chuva pouco movimento houvera, só o trágico acidente na CREL, o Corpo de Intervenção já estava no terreno, passara a pasta aos colegas.

- Boa noite! Vim entregar-me! -disse com dificuldade.  A polícia não está atrás de um assassino que fugiu dum carro celular? Sou eu!

 O agente Dionísio olhou os dois e de repente levantou-se, boquiaberto:

-Gonçalves! O que se passou contigo, homem? Estás vivo!

Ele e Simone pasmavam, tinha nome e pelos vistos era conhecido, e não parecia que fosse por crimes.

-Você sabe quem eu sou?

-Então o que se passa amigo? Ias no carro celular com o Freitas  levar o Duas Tesouras para Vale de Judeus, estávamos preocupados, o teu puto está em polvorosa, já te fazia morto!

-Quer dizer que ele é  da polícia? - pasmou Simone - então e o criminoso foragido? Ele não se lembra de quem é, a pancada deve ter sido forte, foi ter a minha casa e acha-se o criminoso, a televisão….

-Nada disso, deve ser amnésia temporária - esclareceu o agente Dionísio. O Reinaldo efectivamente tentou fugir depois do acidente, tirou as algemas dele e colocou-as pelos vistos em ti. Mas como também ficou bastante ferido, não andou mais que uns metros e morreu. Ele e os nossos colegas, o Freitas, coitado, também…

-Mas a televisão…

-Efectivamente na primeira impressão deu a ideia que ele teria fugido, por isso se deu o alerta, mas as impressões digitais confirmaram ser ele o morto a metros da carrinha. Já mandámos um desmentido para as televisões. Agora eras tu a nossa preocupação, companheiro! - Dionísio agarrava o colega, meio emocionado, com a dor gemeu um pouco ao toque no ombro.

  -Por favor, senhor agente, ele precisa de tratamento urgente! - interrompeu Simone  preocupada.

 José Gonçalves começou a perder os sentidos, o rosto de Simone  iluminando o recinto foi a última coisa que viu antes de desmaiar. E foi a primeira imagem que viu a seu lado quando acordou no hospital dois dias depois. Viúvo recente, o filho de 10 anos e uma promissora Simone guardavam agora a sua cabeceira.


publicado por Fernando Morais Gomes às 15:01

15
Mar 11

Avelino Silva nunca saíra de Montelavar, livre e feliz entre as vacas e as hortaliças do pai, diariamente levadas à Malveira, aquela chamada à tropa ainda mal fizera dezanove anos deixava os velhos pais em aflição, a mãe já acendera uma vela em S. João pelo seu cachopo. Em 1916 Portugal entrara na Grande Guerra, depois de uma recruta apressada em Tancos, mancebo ainda, era chamado ao Corpo Expedicionário, integrando o CAPI, Corpo de Artilharia Pesada Independente, composto por três grupos mistos de baterias de artilharia pesada com canhões ferroviários de 320 mm e peças de 190 mm ou 240 mm.

Em Janeiro de 1917, lá embarcou para França desembarcando em Brest em Fevereiro, em fins de Abril e com mais camaradas chegou às trincheiras, estranhas e frias, até Setembro poucas escaramuças ocorreram. Aquela guerra não entendia, só sabia que como os demais detestava a ração inglesa e os vinte graus negativos do Inverno, que contrastavam muito com a brisa temperada de Montelavar. O tempo foi passando, sempre com o matraquear ao longe da artilharia alemã, os ingleses davam as ordens, nunca pusera os pés nas vilas onde as tropas estacionavam, Avelino matava o tempo esculpindo varinhas de cedro com uma navalha nas longas tardes de vigília. Já com  um ano na linha da frente, nunca tivera um dia de licença ou escrevera à família, analfabeto, em casa a  mãe Anacleta temia pela sua morte, um ataque com gás pimenta seria fatal, agoirava o Zé Bretiando, regedor da freguesia.

Naquele ano de guerra vira já em sua volta tombar muitos camaradas, ao Gervásio Brites, da sua brigada, que morrera ao seu lado, ficara mesmo com um relógio de bolso para entregar ao filho em Santarém, pedira ele à hora da morte, ele próprio ignorando se viveria o suficiente para o entregar. O general Tamagnini pouco deixava transparecer sobre o curso das operações, mas sentia-se que as coisas estavam mal para o lado dos portugueses, Haking, o general inglês mandara tomar novas posições à 2º Divisão do CAPI, onde a brigada do soldado  Avelino se incluía.

Conformado, rude, bigode torcido e pele tostada pelo trabalho no campo, nos poucos momentos de lazer cozinhava para os companheiros, aquela vida até nem o atormentava, desde que chegasse vivo à terra e finalmente assentasse, já catrapiscara a filha do ti Zeferino de Bolembre no baile da Açafora antes de ir para Tancos.

A sua brigada tinha como missão guarnecer três linhas de trincheiras e outra linha de defesa baseada em baluartes estabelecidos em vilas, ao longo de 40 quilómetros, ao norte da posição dos portugueses estava a 40ªDivisão de Infantaria britânica, a Sul a 55ª.

Pelas quatro da manhã daquele 9 de Abril de 1918, estava a brigada de Avelino estacionada junto à ribeira de La Lys, entre Gravelle e Armentières na região belga da Flandres, os alemães desencadearam uma violenta barragem de artilharia com mais de duas horas de duração, do lado português mais de quinze mil homens viram-se subitamente envolvidos em combate, subordinados ao Corpo Britânico, Gomes da Costa comandava as tropas.  Oito divisões do 6º Exército Alemão, com cerca de 55 000 homens comandados pelo general  von Quast de surpresa lançavam a ofensiva "Georgette" visando a tomada de Calais e Boulogne-sur-Mer. Desmoralizados e desorganizados, em apenas quatro horas perderam-se  7500 homens, mais de um terço dos efectivos, entre eles 327 oficiais. Os alemães, também já em desespero, queriam abrir um flanco, o sector dos portugueses era o sítio adequado.Avelino, possesso na sua trincheira e sob fogo cruzado rangia os dentes e fazia fogo com a Lewis, a Luísa, como carinhosamente os soldados chamavam à metralhadora, parecia dia de círio da Senhora do Cabo, as balas assassinas cruzavam os ares, alucinantes e perigosas. A dado momento, a seu lado, o cabo Ramires e três soldados tombaram mortos, o Tomé, polidor em Loures gritava, agarrado ao olho direito, atingido por uma bala perdida, ao fim de uma hora de foguetório só ele restava vivo na trincheira. Sem oficial a mandar, deambulou sozinho por entre as arvores, recolhendo no caminho cunhetes de balas que foi tirando de camaradas mortos, a carnificina era total em redor do campo de batalha. Só pela noite, extenuado e ferido conseguiu reunir-se a alguns camaradas do 8º Batalhão, desmoralizados e sem chefia, o seu comandante fora feito prisioneiro, depois de ter ficado cego duma vista. Arrastando-se, conseguiram chegar pelo seu pé ao hospital de Saint Venant, pejado de moribundos e feridos, e aí, enrolado num cobertor que pronto lhe deram deitou-se no chão, ardendo em febre, um raspão na perna não inspirava cuidados de maior. Ao passar por uma sala de tratamentos, uma voz chamou o seu nome, em português:

-Avelino!

Olhou, espantado, algum camarada da 2º Divisão, por certo. Um jovem franzino, deitado numa maca e com um braço esfacelado esperava por uma operação, o ar sério do médico prenunciava amputação. Era o Sebastião Trina, de Lourel, companheiro de cavalhadas lá na terra, ignorava que também estivesse na Flandres.

-Sebastião. Que te aconteceu, homem!- Avelino , surpreso, apesar de ferido  e a arrastar a perna correu a abraçá-lo, o ar conformado do amigo, jovem e ruço, pinga-amor de Sintra, antevia o maneta estropiado que dali sairia, sorvido por uma guerra que não entendia, perseguido por alemães que não lhe haviam feito mal e a quem mandaram matar enfiado num barranco atrás de sacos de areia. O destino tecia a sua sorte nos campos da Flandres, nas margens da ribeira de La Lys marcara encontro nesse dia

No terreno, a seriedade da situação levou o General Haking a chamar reservistas para ajudar a 3ª Brigada portuguesa a conter a penetração alemã. O 1º Batalhão do King Edward's Horse e o 11º Batalhão de Ciclistas foram enviados à área de Lacouture onde se uniram aos portugueses dos 13º e 15º Batalhões para defender a vila. Lacouture resistiu 26 horas sob intenso ataque alemão, mas por fim caiu às 11:45 h de 10 de Abril tendo os alemães capturado 168 portugueses e 77 britânicos.

 Nesse dia infausto e negro, os portugueses sofreram sete mil e quinhentas baixas, entre oficiais e soldados, 398 tombaram, mais de seis mil foram aprisionados, os alemães, apesar de estarem em perda na drôle de guerre ainda conseguiam abrir uma brecha de cinco  quilómetros de largura na linha aliada.

Desmoralizadas, a 13 de Abril, as 1ª e 2ª Brigadas de Infantaria portuguesas retiraram-se para nova linha de defesa entre Lilliers e Stennberg. O comando britânico enviou elementos das divisões 50(Northumbrian) e 51ª (Highland) para fechar a linha aliada, mas, para os portugueses, aquela  batalha estava praticamente  terminada.

Avelino e Sebastião foram evacuados de barco para Portugal na semana seguinte, Sebastião sem braço, o choro convulsivo da mãe no regresso a casa, para Avelino felizmente só uns arranhões e uma cicatriz para lembrar aqueles quinze meses passados na Flandres. Um mês depois, já recuperado, foi até Santarém. Num casebre junto à vila, uma mulher do campo e um rapazote de calções miravam-no, inquietos com aquele estranho que os visitava. Sem corda, parado no tempo, o relógio do soldado Gervásio, português tombado nas trincheiras, voltava para as mãos dum descorçoado mas orgulhoso órfão, agora sabendo ser filho do herói duma guerra pela qual dera a vida que nunca chegou a viver.


publicado por Fernando Morais Gomes às 13:31

13
Mar 11

Adelino tivera a ideia, o desafogo no restaurante até permitia. Por ocasião dos seus vinte e cinco anos de casado levaria Margarida num cruzeiro, a Companhia Nacional de Navegação tinha um programa para   Caraíbas e América em Janeiro, estava decidido, as bodas de prata seriam a bordo do Santa Maria. Para ela, a primeira viagem de barco, mandara inclusive fazer vestidos novos, a bordo a vida social era intensa, diziam e teria de mudar de roupa várias vezes por dia.

Malas feitas e vacinas tomadas, lá embarcaram a 9 de Janeiro, o irmão de Adelino tomaria conta do restaurante. Seriam doze dias, já mereciam que diabo, o filho casado e no banco, as coisas a andar bem, havia que gozar a vida um bocado. Cabine interior, no terceiro deck, não se podia ter tudo, endinheirados industriais do norte com esposas pindéricas e toscas pululavam pelo navio. Margarida ao segundo dia foi atacada de enjoos, a  Miquelina do segundo esquerdo bem avisara, fora uma vez às Berlengas e sabia bem o que isso era. De resto, tudo corria a preceito, festas à noite, toilette de gala e a condizer, banhos de sol no convés, a amizade com  os Saraivas de Alcobaça,  no ramo do calçado, apesar da ameaça  inicial o mar até amainou a partir do quarto dia.

A 20 de Janeiro, com mais de uma semana de boa vida, aportaram em La Guaira, Venezuela. Sob um calor tropical e húmido, novos passageiros foram embarcados, Adelino, entretido no bar do convés, não chegou a ir a terra. No corredor do seu deck, um turista dos embarcados, já entrado na idade, chocou contra ele, absorto nos pensamentos, mas nem pediu desculpa e seguiu para o camarote. Um  venezuelano, mal educado, pensou Adelino, já de calções e a caminho da piscina, Margarida e os Saraivas, menos dadas à água, jogavam cartas no salão interior. No dia seguinte, paragem em Curaçao, mais passageiros entraram aí, sobretudo com destino a Miami, o navio era também usado como transporte, um industrial da Trofa já havia manifestado preferência pelo Príncipe Perfeito, paquete mais moderno e elegante.

Na noite de 22, o comandante presidiu ao jantar, traje de gala, orquestra flamejante, o vento quente das Caraíbas bafejava o serão dos passageiros, navegando para Port Everglades, na Florida. Pouco depois da uma da manhã Margarida, com dor de cabeça, recolheu, Adelino ainda ficou a fumar um cigarro no convés absorvendo o vento cálido da noite. Na ponte de comando, contudo, notou que alguém discutia, vozes alteradas, de súbito interrompidas por um tiro. Instintivamente correu para o local, com o vento e a música alta do salão de baile poucos teriam escutado, mas algo se passava. Transposta a porta, vários indivíduos uniformizados apontavam armas ao comandante e um piloto jazia morto no chão, ensanguentado. Um dos homens armados, já velho, aparentemente o chefe, interpelou Adelino apontando-lhe uma arma:

-Não se mexa ou é pior para si!

Adelino reconheceu o tipo que lhe dera um encontrão na véspera, no corredor, agora inesperado assaltante do navio, que o mandou entrar e sentar e explicou-se:

-Não tenha receio! Sou o comandante Henrique Galvão e tomámos conta deste navio para acabar com o regime vigente em Portugal. É para o bem de todos, acreditem,não somos bandidos, nenhum passageiro será molestado!

-E o meu piloto, morto, também não era para ser molestado, comandante? -furibundo, o capitão do Santa Maria, Mário Simões da Maia estava estupefacto com o acto de pirataria num navio de cruzeiro - posso saber quais são os vossos intentos?

-Eu e os meus homens representamos o Directório Revolucionário Ibérico de Libertação, que visa libertar Portugal e Espanha das ditaduras, o capitão Sottomayor aqui ao lado representa os resistentes do país irmão. Lamentamos profundamente a morte do seu piloto, comandante, foi um acidente!

Sottomayor e mais vinte homens armados, portugueses e espanhóis ,dominavam agora a ponte e a sala das comunicações, no salão ninguém suspeitava do que ocorria em cima .Adelino, atónito, pasmava com este episódio nas suas bodas de prata, via-se num filme de Errol Flynn.

-Comandante - ordenou Galvão – mande alterar a rota e encaminhe o navio na direcção da ilha de Fernando Pó!

Pouco depois, o Santa Maria, sem que os passageiros dormindo o percebessem, guinava para leste, procurando chegar rapidamente a águas do Atlântico. Adelino foi mandado para a cabina, mas excitado acordou os passageiros do deck e rápido espalhou a notícia da captura do navio por piratas. Galvão e os insurrectos entretanto mantinham contactos rádio com o Brasil e a Venezuela, pelo tom da voz o comandante do Santa Maria percebia que nem tudo correria nos conformes. A 23 de Janeiro, o navio aportou em Santa Lúcia e Galvão mandou desembarcar discretamente dois feridos graves, a divulgação do sequestro do paquete  já relatada nos jornais comprometia entretanto a possibilidade de atingir a costa de África sem ser detectado, como pretendido. No dia 25 cruzou-se com um cargueiro dinamarquês que  reportou a sua localização e permitiu a um avião americano  sobrevoar o Santa Maria horas depois, os passageiros exasperavam, receosos pela vida. Em Lisboa, Salazar apontava o dedo a terroristas, Galvão sempre tivera um feitio difícil mas nunca pensou que se atrevesse a tanto.

Adelino, com as férias estragadas, mantinha-se fechado na cabine, onde  Margarida acossada por suores frios e vómitos tremia por todos os lados, maldizendo a hora em que havia saído de Lisboa. O apoio do presidente eleito do Brasil e de Kennedy aos democratas portugueses desaconselhavam uma acção militar, além de que não se podia deixar perigar a vida dos seiscentos passageiros e mais de trezentos tripulantes. Galvão, via rádio, vociferava, Adelino bem o via de longe. Malditos comunistas, pensava, Henrique Galvão até fora homem de confiança de Salazar, director da Emissora Nacional, e agora isto, o homem devia ter enlouquecido..

A bordo do navio, que os assaltantes rebaptizaram de Santa Liberdade, o clima era de cortar à faca. Silenciada a orquestra, canceladas as idas a terra, ali estavam centenas de pessoas prisioneiras de piratas modernos, constava mesmo entre alguns passageiros que queriam matar os reféns e levar o Santa Maria para Angola e dali organizar o ataque ao regime de Salazar.

Discussões entre Galvão e Sottomayor sobre as acções a desencadear e um telefonema do presidente eleito do Brasil, Jânio Quadros conduziram finalmente no dia 2 de Fevereiro de 1961 o Santa Maria ao Recife. Inexplicavelmente, os passageiros depois de horas parados no alto mar, receberam ordem de desembarque, Adelino e Margarida à saída, sem nada saberem do que lhes iria suceder ainda se cruzaram com Henrique Galvão, que os cumprimentou, seco e altivo:

-Meus senhores, desculpem ter-lhes estragado as férias, mas a vida tem imperativos que nem sempre se podem contornar! –saudou com uma continência, o casal assustado nada disse e seguiu, não sabendo para onde, na pressa os chapéus comprados por Margarida para o cruzeiro ficaram esquecidos na cabine.

No Recife, segundo perceberam, Jânio Quadros terá prometido asilo político aos insurrectos em troca da libertação do Santa Maria. Galvão e os demais vinte e três  ficariam  no Brasil, gorada a possibilidade de seguirem para Angola, mas o golpe publicitário contra o regime de Lisboa  criado pela designada Operação Dulcineia surtira efeito, de qualquer forma, todos os jornais falavam de Portugal e desses piratas defensores da democracia, alguns portugueses a bordo até mostraram apoio à causa.

 Os passageiros foram entretanto todos embarcados no Vera Cruz, que saiu do Recife a 5 de Fevereiro, chegando a Lisboa a 14, após escalas em Tenerife, Funchal e Vigo. Adelino , Margarida, os Saraivas e os demais depois de uma aventura inusitada chegavam finalmente a casa e a chão firme, afogueada e já em casa  Margarida jurava à Miquelina que de barco nunca mais, nem a Cacilhas.O Santa Maria, depois de todas as peripécias, largou do Recife a 7 de Fevereiro, chegando embandeirado em arco a Alcântara no dia 16, onde o aguardavam exaltados populares gratos a Salazar pela firmeza com que lidara com os terroristas, que se teriam posto em fuga, como ratos, segundo constava. Via rádio, enaltecendo o feito, Salazar recepcionava o reconquistado barco:-Portugueses! Já temos o Santa Maria connosco! Obrigado, Portugueses!- discursara, providencial.

Adelino, já em casa há dois dias depois daquelas bolandas marítimas , escutava e gesticulava agitado, mostrando aos clientes do restaurante fotos dos assaltantes armados e do barco refém, e francamente, apesar de tudo,até ficara com saudades dos cocktails tropicais no bar do convés. Mas por via das dúvidas, no  passeio seguinte  ficar-se-ia pela Foz do Arelho.      

   

publicado por Fernando Morais Gomes às 21:58

Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem: outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

 

Por que tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.

Ricardo Reis, in "Odes"

 

publicado por Fernando Morais Gomes às 08:21

12
Mar 11

O tenente Milhazes não sabia o que pensar, chamado a averiguar o roubo dum carro no Chalé Biester na estrada da Pena,uma busca na adega conduzira ao baú com a reluzente peça de ourivesaria, a PJ fora chamada ao local. O inspector Caldeira, da Unidade de Cooperação Internacional pasmava, especialista em furtos de arte reconhecia ali um tesouro raro e precioso:

-Então, inspector, que me diz?- sondou o tenente, curioso.

-Ou me engano muito ou há aqui coisa grossa, tenente- discorria, observando a peça- nada mais nada menos que um dos famosos ovos Fabergé!

O chalé, construído em 1890 por Ernesto Biester, comerciante de origem alemã radicado em Portugal estava há tempos encerrado, o tenente Milhazes apenas recordava a vez em que a GNR fora solicitada para regular o trânsito no local quando Roman Polanski ali rodara cenas de “A nona porta", normalmente os donos estavam fora.

-Os Ovos Fabergé são obras-primas da joalharia, criados para os czares da Rússia. Veja, tem uma combinação de esmalte, metais e pedras preciosas, normalmente escondiam surpresas e miniaturas  oferecidas na Páscoa entre os membros da família imperial. Valem uma fortuna!- o ovo era efectivamente deslumbrante, peça única.

-E como terá vindo aqui parar? Já contactámos o representante do proprietário, desconhecia a existência deste baú, deve ter sido posto ali recentemente.

-Ou guardado à espera de quem o viesse buscar…- discorria o inspector, congeminando pistas prováveis.

Levado para Lisboa, o deslumbrante ovo foi examinado por um perito em ourivesaria. Agatão Prazeres, da Fundação Gulbenkian, chamado a analisar a obra escancarou os olhos à vista da raridade:

-Inspector, tem aqui um tesouro! É efectivamente um Fabergé! E passou a explicar:

-Fabergé e os seus ourives desenharam e construíram o primeiro ovo em 1885 para o czar Alexandre III como presente de Páscoa para a czarina Maria Feodorovna. Por fora parecia um simples ovo de ouro esmaltado, mas ao abri-lo, revelava uma gema de ouro,  possuía uma galinha dentro, que por sua vez continha um pingente de rubi e uma réplica em diamante da coroa imperial, como uma matrioska, está ver...-explicava, entusiasmado, analisando a peça com uma lupa. A czarina ficou tão impressionada que Alexandre passou a encomendar um ovo todos os anos,na condição de ser sempre único e contivesse uma surpresa. Cinquenta ovos imperiais foram produzidos para os czares Alexandre III e Nicolau II e membros da nobreza russa.

-E este é autêntico?

-Puríssimo, veja, prata, ouro, platina, combinados em proporções variadas a fim de produzirem diversas cores. Além de usar uma técnica de esmaltagem plique-à-jour  assim como pedras preciosas. Só existem  cinquenta e sete, mas há oito desaparecidos e desses só há  fotos de dois. Depois da revolução russa a casa Fabergé foi nacionalizada pelos bolcheviques,os palácios saqueados e os tesouros removidos por ordem de Lenine . Estaline mais tarde vendeu vários, no tempo da guerra.Pensa-se que catorze ovos Imperiais deixaram a Rússia nessa altura. Uns terão sido comprados por Armand Hammer, um comunista milionário americano que foi amigo pessoal de Lenine e outros por Emanuel Snowman, um antiquário de Londres, mas não é seguro!.

Contactada a Interpol, e trocadas fotos, efectivamente confirmava-se a falta de oito ovos, este de Sintra porventura um deles, e sem foto. Mas o FBI informava que o ficheiro de Armand Hammer  referenciava a sua passagem por Portugal em 1942,e ficara alojado em Sintra, vigiado pela PIDE portuguesa, a inédita amizade com os russos aconselhava cuidados.

Vasculhado outra vez o baú , Caldeira detectou uma pequena inscrição em cirílico, na base. Contudo como teria  ido o ovo ali parar? O caseiro garantia que um mês antes não estava nada nesse local,só lá iam os homens da imobiliária para mostrar o chalé, à venda há anos. O ovo, entretanto, ficara apreendido, a embaixada russa sabedora do achado arrogava já direitos sobre o espólio mas Gabriela Canavilhas alegava serem precisas averiguações mais profundas.

O inspector matutou vários dias no caso, e chamou o homem da imobiliária ao local, para  informar quem tinham sido os interessados na compra da quinta:

-Vieram uns árabes, que gostaram, mas acharam pequeno, queriam salões maiores, o André Jordan,e…ah! já esquecia, esteve cá o José Mourinho com uns tipos barbudos-  Nuno Duarte , mediador da Relux, agência especializada em casas de gama alta tinha a venda do  Biester a seu cargo -Para aí há um mês. Eram dois, até pediram para meter o carro cá dentro, um Ferrari amarelo, lembro bem.

-E eles estiveram sempre consigo?

-Sim, sim…não, espere, houve um que pediu para usar a casa de banho,demorou um pouco, mas só isso.

-E mostraram interesse pela casa?

-Acharam  muito húmida, disse um deles ao Mourinho, mas disseram que tinham um amigo que gostava muito de Sintra e que viria daí a um mês, tinha negócios cá em Portugal. Aliás, agora que fala lembro que lá na agência marcaram uma visita para a semana, um momento!- pegou no telemóvel e ligou para o escritório - Exacto! Sergei Borosov, vive em Londres habitualmente.

-Fazemos o seguinte: quando ele vier eu venho também, como se fosse da agência, ok?

Nuno encolheu os ombros, que fosse, o negócio dele era outro.

No dia aprazado lá surgiram dois russos,carro de vidros foscos,mini bar lá dentro, Nuno e o inspector mostravam os interiores, obra de Manini, o mesmo da Regaleira. Borosov estava interessado, uma off-shore das ilhas Caimão compraria. O que guiava o carro pediu para ver a adega, Caldeira aguçou os ouvidos.A adega estava vazia e  despejada, os russos entreolhavam-se, perguntando pela garrafeira, um quanto alterados já. O telemóvel de Caldeira tocava entretanto, da central chegavam informações recentes:

-Sim…sim…óptimo!Obrigado, Sandra, hoje pago eu o almoço!

Terminada a chamada segredou a Nuno que fechasse o portão, discretamente, e dirigiu-se aos russos que discutiam na adega:

-Polícia Portuguesa! Estão presos, façam o favor de me acompanhar! - explicou em inglês, arma  sacada do coldre, dissimulado atrás das calças.

Os russos, surpreendidos, olharam um para o outro e ensaiaram uma fuga,um disparo para o ar arrefeceu as intenções, Nuno travara-lhes o carro com o dele, ao fechar o portão:

-Então, inspector, que descobriu?-o agente imobiliário exultava a brincar aos detectives.

-O russo que veio ver a casa com o Mourinho é neto dum agente do KGB, que nos anos quarenta entregou a Armand Hammer o ovo Fabergé que Estaline secretamente lhe vendeu. Por azar, ainda em vida Hammer confidenciou-lhe ter o ovo escondido em Portugal,em local seguro, e identificou o sítio. O tipo que veio com o Mourinho tem dinheiro no Real Madrid e seguiu as indicações do avô, que lera o conteúdo da carta para Estaline, e descobriu o  ovo numa prateleira secreta da adega, no sítio referido na carta de Hammer, mas não teve tempo de o levar na altura em que pediu para usar a casa de banho, originaria suspeitas. Mandou então este amigo fazer a recolha, a título de interessado na compra. do chalé. Daí só ali estar há poucos dias, pronta para levar.

Presos os ladrões, caso encerrado: o ovo foi entregue à Federação Russa, que o entregou ao Hermitage  para exposição, e grata prometeu um generoso donativo para apoio a associações culturais de Sintra,rara ocasião em que se podia contar com o ovo.... 


                                                              

publicado por Fernando Morais Gomes às 07:30

11
Mar 11

Na quinta-feira não tinha havido aulas, o ponto de Física ficara adiado por causa duns militares que tinham ocupado o Terreiro do Paço, o avô do Filipe telefonara logo de manhã a aconselhar que não saíssem de casa. A televisão passava um episódio repetido do Daktari, chuviscava naquele dia cinzento.Filipe, contente de não haver aulas foi ao barbeiro, boatos desencontrados sobre um golpe de Estado ,diziam receosos, aos catorze anos ignorava o que isso fosse, um dia sem aulas era sempre uma festa.

No dia seguinte achou a escola agitada, o Murteira,porteiro do Passos Manuel,acossado, teve de fugir, pertencia a uma tal PIDE-DGS, era informador diziam, o Miguel, colega da turma B e neto do  Marcelo Caetano, não apareceu nesse dia, parece que o avô tinha ido para a Madeira à pressa.

No sábado, e depois duma avalanche de acontecimentos, debaixo de chuva subia com os pais ao agora mítico Largo do Carmo, soldados com cravos pendurados em chaimites tiravam fotos com populares, ali tudo acontecera em poucas horas. Lisboa cinzenta   exultava de alegria, guedelhudos de megafone na estátua do Rossio invectivavam transeuntes, apelando à sua prisão, informadores da PIDE, denunciavam, logo detidos por populares agora armados em milícias, o chefe deles, um tal Saldanha Sanches clamava contra o fascismo.

No liceu, tudo mudou em poucos dias. O professor de História, o “careca megalítico”, até ali sorumbático e cinzento mostrava-se agora simpático e adepto da nova situação, opositor durante anos silenciado,mais receoso o padre Borges, de Moral, receava a anarquia, só Deus sabia o que por aí viria. Embriagados pelas novas da liberdade que de todo o lado choviam, empurrados por canções nunca escutadas, descobriam-se mundos até ali escondidos, um Zeca Afonso, de Coimbra, o padre Fanhais, Luís Cília, Adriano Correia de Oliveira, na sala de alunos manifestos policopiados  e jornais de parede apelavam a uma RGA, a nova vida da escola em discussão no ginásio no dia seguinte à tarde.

Filipe, apanhado pelo vendaval, exultava, no tal plenário foi eleito secretário da mesa, todos ingénuos e analfabetos da coisa, nunca se havia feito uma reunião assim ou sabia o que era um ponto de ordem ou uma declaração de voto. Certo é que em prol dum ensino democrático e livre lá se acertou uma manifestação, acordada com todas as escolas de Lisboa, o ministério na 5 de Outubro nunca tal folclore admirara, enquadrado por chaimites que emprestavam à cena o épico da revolução de Outubro horas antes do assalto ao Palácio de Inverno.

Miguel, David, Susana, o Vitinho, toda a turma se organizava agora, representantes de alunos e professores, a orgia da festa permanente, manuais de História revistos, os retratos do poder apeados, o pobre reitor perante quem com medo se levantavam nas visitas à sala de aula saneado, prócere lacaio do poder deposto.

No dia do trabalhador, Filipe e Susana de mãos dadas subiram a Almirante Reis, Portugal todo ali, o país do fado país em festa, marinheiros e povo anónimo abraçado, o mundo a olhar para aquele esquecido rincão atlântico que desassombradamente fazia a primeira revolução utópica dos tempos modernos, o mundo pasmava e o povo agigantava-se.

Nas semanas seguintes, a escola entrou em ebulição, os partidos dividiram as opiniões, os plenários ficaram mais organizados, com actas e voto secreto, a democracia  gatinhava, os jovens tornaram-se homens. Nada poderia deter a força indómita da geração da liberdade, universidade para todos, um futuro assegurado, a servidão enterrada por força daquela manhã de Abril em que para gáudio  não houve ponto de Física.

Miguel e Susana, apaixonados,acabaram por entrar na universidade juntos, licenciaram-se, compraram casa, tiveram um filho, a Europa chegou e o país mudou, como a televisão, agora a cores, viajaram, com orgulho podiam dizer aos amigos, cúmplices daqueles dias estranhos e já míticos que o  filho haveria de viver num país livre, qualificado, contentes com o progresso, baby boomers com vinte anos de atraso mas a tempo de apanhar o comboio, pelas portas de Abril só bom vento e brisa amena passaria agora

Uma manhã, em meados dos anos oitenta ,nasceu o Bruno, gorducho e rosado, a casa com jardim e o carro novo completavam um percurso de sucesso e realização. Miguel, satisfeito, depois do parto, por impulso abraçou Susana, o olhar babado fixo no irrequieto rebento, não havia dúvidas, aí estava agora uma nova geração a gatinhar, o Gil, colega da faculdade, também já tinha dois, o futuro certo e esperançoso.

-Amor…

-Sim?- Susana molhava a chucha do Bruninho, já estava habituada às melancolias do marido, sempre  sentimental:

-Lembras-te de não termos dinheiro para as férias na serra da Estrela? E de não termos cheta para a discoteca ou para voltar para casa no primeiro autocarro da manhã? O nosso Bruno nunca há-de passar por isso, nunca há-de passar pelos nossos traumas e os dos nossos pais, lutámos por isso, a geração dele vai cumprir os seus sonhos, acredita!

Abraçados, o futuro era azul cor de mar e verde melancia, só coisas boas podiam vir depois de anos de chumbo e de mudanças atribuladas. Bruno, dormindo como um anjo teria o futuro assegurado quando adolescente fosse para a universidade e usufruísse da sociedade de abundância e oportunidades pela qual a custo e com luta os pais tinham lutado e beneficiado. O país prometia, a Europa pagaria e os amanhãs cantavam soltos e despreocupados. Eram os anos oitenta.


publicado por Fernando Morais Gomes às 06:41

10
Mar 11

O On Ten Legs dos Pearl Jam era brutal, dizia o Becas para o pessoal, haviam de sacar da net, a banda viria a Portugal dar um concerto lá para Junho.O Duarte chegava entretanto ao bar do Diogo,curso de Relações Internacionais concluído,arranjara um emprego a recibos verdes no call center da PT,mais quinze dias e terminaria,não era política da empresa renovar contratos,o pai Artur,jornalista, acompanhava num copo. Liliana chegava também,acelerada, na Nova onde cursava Jornalismo o pessoal combinara encontro para sábado, no protesto da “Geração à rasca”, já mandara inúmeros convites pelo Facebook:

-Então, chavala, sábado lá estamos no Camões?- Duarte entusiasmara-se com a ideia da manif, não era a Praça Tahrir do Cairo mas havia que estar presente, trezentos euros por mês não davam nem para o tabaco.

-Podes crer, meu, ainda agora falei com a Xana, vamos de comboio!- Liliana mandara fazer uma T-Shirt, “Fartos dos recibos verdes!”, na faculdade, o Rui Zink apoiava e o pessoal de esquerda andava nervoso, a apalpar terreno.

-Esta coisa de manifestações sem responsáveis visíveis é perigosa, putos!- aconselhava o pai do Duarte, já veterano doutras guerras depois de Abril- correm o risco de virem a ser acusados do discurso anti-partidos, que o Hitler foi assim que começou…

-Mas é verdade, senhor Artur- ripostou a Liliana- é só conversa fiada, falam que somos a geração com mais competências de sempre, mas afinal para quê? Para ser caixa do Pingo Doce? Viu aquele tipo da Jerónimo Martins, a dizer que não aparece ninguém para os talhos deles, que ninguém quer trabalhar? O tipo passou-se, com certeza!

-Uma coisa é certa, o que pode ser uma grande ideia pode perder-se no ruído, estão a fazer disto caricatura para desvalorizar, que  são uns putos irreverentes, deixá-los…-Artur Esteves lembrava os seus tempos,outras roupas, velhas questões--E o paradoxo é que os que mandam agora são os mesmos que há vinte anos andavam a mostrar o rabo à ministra…É sempre o mesmo: o poder vicia! Já o Karl Marx dizia: a História repete-se sempre, primeiro como tragédia depois como farsa!

-O cota do teu pai  tem razão, puto, mas sem  barulho ninguém vai a lado nenhum, viram na Tunísia e no Egipto?- o Becas acabava um cigarro de enrolar.

Artur lia o manifesto do Facebook: “Nós, desempregados, quinhentos–euristas e outros mal remunerados, escravos, disfarçados, subcontratados, contratados a prazo, falsos trabalhadores independentes, trabalhadores intermitentes, estagiários, bolseiros, trabalhadores-estudantes, estudantes, mães, pais e filhos de Portugal”. Parece muita coisa no mesmo saco, não acham? E depois?Não acham um pouco utópico? Dispara em todas as direcções, isto não há como ser selectivo com o alvo! - o velho mas ainda enxuto dirigente académico dos finais de setenta parecia recuar uns anos, na altura as lutas em Direito, que não chegara a completar,foram com o MRPP, lembrava-se bem do Durão Barroso, maoísta  e desfraldado, caspa no cabelo,agora burguês e lacaio dos imperialistas que tanto combatera.

-As caras hão-de aparecer! - argumentou Liliana- no Maio de 68 o Cohn-Bendit também surgiu espontaneamente, durante os eventos, dei isso na faculdade. Não mexer uma palha é que é pior. Sabe quantos estágios já fiz à borla? Três, não estou interessada em fazer disso profissão,   assim não dá! Ou então é dar o salto, três amigas minhas já foram….

Duarte, mais politizado, observava:

-Os pseudo-comentadores falam todos contra nós, viram o Miguel Sousa Tavares na SIC? Parecia o Medina Carreira a falar. Falam, falam, mas preferem a segurança do sistema que está instalado, têm medo dos jovens, isto é uma novidade,é uma coisa que não percebem, e tem-se medo daquilo que não se conhece. É o tradicional quadro maniqueísta dos bons e dos maus, e quando não se identificam uns e outros nos nossos quadros de arrumação mental,rejeita-se, é mais seguro….

Ao bar do Diogo chegavam agora o Kiko e a Mónica, curso de Direito, part-time na Worten, o contrato acabara e não ia ser renovado. O wireless gratuito do bar ajudava a mandar mais currículos por mail, à cautela esconder as reais habilitações, senão o velho  e estafado bordão lá viria, isto não é para si, tem estudos a mais.

-Men, também vais sábado? Tenho estado a fazer forward da convocatória para o pessoal,só da Lusófona vão nove!- Duarte bebia agora uma imperial, o pai aceitava uma fresquinha, depois iria para casa, em Queluz a concluir uma peça para o jornal sobre a revisão do PDM de Sintra, a marcar passo.

-Conta comigo, puto, depois vamos às roulottes beber umas jolas! -a perspectiva de festa não estava posta de parte, Liliana juntar-se-ia depois à noite no Bairro.

-“Camaradas, pah”…-caricaturava o Kiko, imitando o Jel e o Falâncio-“a luta é alegria”. Oh Liliana, tu podias ir de ceifeira, assim uma espécie de Catarina Eufémia com piercing, minha!

-Vai-te catar, Kiko!És mesmo nerd!

-Rapazes, atenção às imagens. Protesto é uma coisa, mas pode ser uma armadilha, há por aí muita gente a dizer que vocês  não querem fazer nada, só querem que caia tudo de mão beijada, que são os deolindos…-Artur moderava os ânimos, ainda não dissecara bem a coisa, novato no Facebook.

-Sr. Artur, no seu tempo quanto é que teve de esperar para arranjar emprego? O meu velho diz que dantes só não trabalhava quem queria…-atalhou Liliana, meio revoltada.

-Sim, nesse aspecto está tudo muito diferente. Eu três meses depois de deixar os estudos já trabalhava no Diário de Notícias, e casei aos vinte e quatro!

-Está a ver…A sua geração fez a trampa e nós pagamos a factura, é o que é. Nada de pessoal consigo!

-Eu entendo…-Artur meio triste interiorizava os anos do PREC ,agora vestígio arqueológico, os companheiros enterrados em cirroses adiadas e cancros do cólon, novos vencidos da vida na era do telemóvel, fora tudo tão rápido da embriaguez à ressaca.

Pelas oito horas dispersaram, na televisão do fundo novos velhos do Restelo opinavam sobre a dívida, o desemprego, os  mesmos que criaram os problemas aventando soluções milagrosas, agora que estavam fora do poder. Já em casa, meio confuso ainda sobre a opinião a ter, Artur relia um poema amarelecido, do tempo em que os amanhãs  cantavam, da lúcida Sophia, sempre ela, pitonisa e bela:

Revolução isto é: descobrimento /Mundo recomeçado a partir da praia pura /Como poema a partir da página em branco / Catarsis emergir verdade exposta /Tempo terrestre a perguntar seu rosto.

-Duarte- chamou o filho, que na cozinha descongelava uma pizza no micro-ondas, enquanto frenético debitava SMS para os amigos:

-Diz pai!

-Sabes quem foi Jean Paul Sartre?

-Ya, era um cota muita fixe, desconcertante às vezes, falámos dele lá no curso.

Enigmático e antes de se isolar na sala a ouvir um vinil dos Doors, Artur Esteves largou uma frase sibilina do Velho Feiticeiro:

- “O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós”


publicado por Fernando Morais Gomes às 02:47

Março 2011
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5

6
7
8
9

14

22
26

29


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

subscrever feeds
mais sobre mim
pesquisar
 
blogs SAPO