por F. Morais Gomes

09
Mar 11

António tinha avisado, o homem era uma figura. Obeso e careca, blaser azul com botões dourados, lenço vermelho no bolso do casaco, mais de cinquenta anos, o almoço ficara acertado para o Cantinho de S.Pedro, ocasião para conhecer Gregório Caravaca, alfarrabista e bibliófilo, com loja na Calçada do Combro e antiquário em S. Pedro. Pedro Carmona e António Ferragudo, jornalistas do “Privado” preparavam uma peça sobre os reis de Portugal, mão amiga dera-lhes a ler a história  fabulosa de Gregório. Pontual, ao meio dia e meia lá apareceu, um chapéu tirolês emprestava à figura um ar caricato, pose altiva mas um quanto desengonçada, vergada pelos cento e vinte quilos.

-Boa tarde, boa tarde, prazer em conhecê-los. Gregório Caravaca.- saudou, um cartão de visita com as armas dos Braganças explicitava “Gregório Caravaca, rei de Portugal e dos Algarves”, António sorriu para Pedro, piscando-lhe o olho de soslaio.

-Senhor Caravaca, muito prazer, nós…

-Majestade.

-Como?

-Pode tratar-me por Majestade, pessoalmente prefiro Alteza Sereníssima, como o meu tetravô mas eu sou constitucional, moderno, basta Majestade!- respondeu, ar sério, os dois não sabiam se rir ou entrar na onda.

-Majestade, seja, como sabe estamos a preparar um livro sobre histórias secretas dos reis de Portugal e o prof. Sottomayor falou-nos no seu caso, muito curioso, convenhamos- foi adiantando Pedro, ao lado umas páginas e cópias de documentos fornecidas por aquele professor da Clássica. -Segundo ele, o senhor será descendente de D.Maria I e como tal, reclama o título de rei para si…

-Efectivamente, e posso prová-lo!- afirmou peremptório, enquanto fazia o pedido, pernil com castanhas e um Pêra Manca de 2003, aquela barriga não enganava ninguém

-Segundo o professor, o senhor, digo, Vossa Majestade será descendente da rainha D.Maria I. Pode explicar-nos como foi isso e como descobriu?- Pedro antevia um almoço divertido, o queijo de Serpa estava bem seco como gostava, Gregório Caravaca  começou a desbobinar a sua história:

-Como sabem, a rainha D.Maria I casou com um tio, o irmão de D. José, D.Pedro, em 1760, muito mais velho que ela, o rei com medo que algum regente estrangeiro deitasse a mão a Portugal por ela ser mulher quis manter a dinastia em família e forçou-a a essa união. Quando ela tinha apenas 19 anos e ainda solteira, teve uma relação amorosa proibida  com um general de artilharia, Bernardo Atouguia e Melo, da qual nasceu o meu tetravô Diogo . Ora como o seu primeiro filho oficial, D. José apenas nasceu em 1761, sou eu, como primogénito e por via dessa descendência quem deve ser reconhecido como chefe da casa real, e não esse miguelista usurpador do Duarte Pio!- foi explicando, com o dedo apontando a casa solarenga não muito longe dali, hoje morada de D. Duarte e sua família, em S. Pedro.

-Mas se assim é, que provas tem o senhor….Vossa Majestade, perdão, daquilo que acaba de afirmar? - Pedro Carmona gravava a conversa, daria uma bela história para o suplemento de domingo.

-O diário do meu tetravô, o general, e a confissão da rainha à hora da morte, no Brasil, recolhida pelo seu confessor. Mas como diziam que estava louca ninguém levou a sério. Olhe, a história de Portugal talvez tivesse sido muito diferente! - ia perorando o putativo monarca, degustando uma garfada de pernil.

-Mas é difícil de provar, não acha? Como era possível a rainha estar grávida nove meses, ter tido a criança e ninguém dar por nada? - António a medo tentava não desiludir o convidado, apesar de tudo cordial e bom garfo. Caravaca tinha a explicação:

-Quando a ainda princesa apareceu de esperanças, o Sebastião José convenceu D. José a mandá-la uns meses para Vila Viçosa, longe dos compromissos e do escândalo, de modo que quando o rapaz nasceu, foi entregue a uma ama, a Anastácia, que a trouxe para Sintra, como seu filho, onde foi criado na casa do capitão-mor Máximo José dos Reis. Consta que durante uma visita da rainha à casa do marquês de Marialva terá mesmo mandado chamar a antiga aia para sem se dar a conhecer ver o seu primeiro filho! - Gregório Caravaca parecia agora rever a cena, dono do maior segredo da história nacional, para ele, até parecia uma história de Alexandre Dumas, mas real, esta. 

-Então e depois?- quis saber Pedro Carmona

-Depois, os descendentes foram vivendo aqui por Sintra, e pasme-se, o meu bisavô até ajudou a proclamar a República aqui, se ele soubesse…No meu negócio de alfarrabista deitei a mão ao diário do general Bernardo e assim pude reconstituir a história, os arquivos da Misericórdia permitem reconstituir a descendência a partir daí. E aqui estou eu, o vosso soberano e senhor!- rematou, o garfo no ar, qual espada em Aljubarrota.

-Quer dizer que então vai pagar a conta do almoço? -gracejou António, tirando umas fotos, o rei fazia pose de estado, a mão no casaco qual Napoleão.

-Bem, bem, já estivemos a falar melhor…- rematou, um almoço daqueles não era todos os dias, o negócio ia mal com a crise.

-Então e outro tipo de prova, mais científica…-voltou à carga Pedro Carmona.

-Já escrevi ao Sócrates para ele autorizar a recolha de ADN dos restos mortais de D. Maria para fazer uma comparação, o corpo está em S. Vicente de Fora, como sabem, mas não foi autorizado. Têm medo, sabem….

O telemóvel tocou e o pretendente ao trono pediu desculpa, tinha de se ausentar, aparecera um cliente para uma velha edição de Camilo e tinha de ir para Lisboa. Feitas as despedidas, Sua Majestade D. Gregório I, sem pagar a conta saiu apressado e de táxi correu para Lisboa, quando fosse restaurado no trono haveria de os fazer condes, prometia.


publicado por Fernando Morais Gomes às 09:13

08
Mar 11

A chuva açoitava copiosamente Lisboa, no Alto de S. João, anódinos e apressados coveiros rematavam com pazadas de terra a vala onde acabavam de sepultar Maria Severa Onofriana, vitimada pela tuberculose aos vinte seis anos. Silenciosos, Severo e Ana Gertrudes, choravam a perda precoce da filha,filha da Mouraria abandonada pela sorte, cativa de ébrios e boçais, voz triste e alma conformada com a sua existência. Atrás, quebrado, Francisco assistia de longe, a sua presença no funeral da mulher de quem fora amante nunca seria bem vista. A voz triste da Mouraria calara-se ,precoce,  não mais as noites seriam iguais em Lisboa.

Perturbado, a chuva fustigando o rosto, Francisco Portugal e Castro, conde de Vimioso, recordava a noite anos antes em que conhecera a filha da Barbuda na taberna esconsa da Rua do Capelão. Peito hirto, vontade indómita, não tivera forças para resistir àquele apelo dos sentidos, rameira com alma, voz de mando, sofredora, só Lisboa pedante e hipócrita o impedira de a receber nos seus braços, relegada para um soturno fado em vielas sórdidas, enteada da vida.

Na taberna da Rosário dos óculos muito nova começara a cantar,sobrevivente e para sobreviver, não tinha poiso certo. Umas vezes no botequim do Cegueta, outras no Café da Bola, favorita era a tasca do Joaquim Silva, moço de forcados,junto à praça de touros do Campo de Santana, aí se juntavam toureiros e amantes da tourada e Maria cantava chorando para homens viris assolapados de paixão, triunfadores de cernelhas e pegas.

Francisco aparecera uma noite no Capelão, já depostas as armas por El-Rei D. Miguel que uma canalha jacobina expulsara do país. Uma saída com amigos conduzira-o àquele botequim, a voz uivante que vinha do peito daquela mulher perdida que surgira duma porta estreita marcara-o profundamente. Maria Severa, castigadora, acabou por se envolver com aquele fidalgo elegante e de cabelo encaracolado, sentou-se-lhe à mesa a um sinal do pai, e nunca mais ele deixou de frequentar a tasca, primeiro com amigos boémios, depois privativo aficionado. A Giraldinha, capciosa, tentou furtar-lhe a carteira uma vez mas a Severa deitou-lhe um olhar fulminante, a ele não, e lá teve de se entreter com outros incautos à luz da vela, vidas da Mouraria expropriadas da sorte. À noite, marinheiros  ébrios cantavam nas ruelas escuras e mal frequentadas, exibindo  bonés de oleado e jaquetas de ganga, melena sobre a testa, chorando amor, ciúme, traição, as misérias da vida. Era Lisboa mourisca e triste, onde à noite nos bordéis fidalgos e vadios cantavam, e de dia desafiadoras varinas rodopiavam com canastras de peixe gritando pregões, deixando os homens na estiva e  galegos aguadeiros matando a sede a cansados forasteiros.

Maria Severa conformava-se, nunca seria condessa de Vimioso, para sempre e para o povo apenas rainha da viela. Marujos, estivadores, ardinas, pelo esconso da R. do Capelão muitos haveriam de passar, a mãe orientava com a Giraldinha, ladra e alcoviteira, engendrando contos do vigário a nobres de farta fazenda que depois de canadas de vinho e de sentidos fados ali largavam uns bem vindos réis.

Três anos passaram neste jogo de sombras. Um dia, Vimioso, em caleche, aventurou-se a levá-la a Sintra, a filha do beco triste, abismada, por momentos descobriu aqueles bosques amplos, frescos e límpidos, lavar de vista para quem só o Tejo tinha por horizonte. Uma alegre burricada ao convento jerónimo, queijadas de leite em Ranholas, na tenda que fora da Maria Sapa, por uma vez desfrutava a luz do dia com o seu conde proibido. Na noite em que  regressaram de Sintra, deitou-se suspirando, já a mãe chamava para um caldo de carne  e novo fado no esconso. A doença dava já sinais, o cheiro podre da saliva sobre o carvão quente deixara um bacharel de medicina cliente do Severo apreensivo,recomendara alho marmelo e repolho, e à falta de dinheiro para o sanatório, que dormisse sobre folhas de pinheiro, mas o destino, irmão do fado, estava escrito, nos fins de Novembro já a tosse purulenta e contínua a prostrava na enxerga, moribunda e derrotada.

Os coveiros terminavam, largado na vala o corpo da Severa enrolado em pano crú, o caixão municipal seguia lento e inexorável para novo enterro. Francisco enfiou a cartola e fugiu do cemitério, deambulando pela cidade, a voz  da viela não tornaria a soar, ia chuvoso e triste o Dezembro de 1846.


publicado por Fernando Morais Gomes às 02:28

06
Mar 11

Diogo e Filomena passavam revista à quinta, vetusta, cheia de musgos mas frondosa nas faldas da serra, eterna primavera de verde e azul.Fora um achado, a velhota precisava do dinheiro, de repente o sonho da casa em Sintra tornado realidade.Uma velha cabana onde andorinhas faziam ninho no beiral no  anual retorno da grande viagem ao Sul ficava ao fundo,não longe, Monserrate, altivo e mourisco, e um lago de águas cristalinas, onde graciosos patos agitavam as águas espelhadas. O Florindo, de Gigarós, jardineiro que já trabalhara para os antigos donos, mostrava a zona, junto ao lago ficou um quanto melancólico,Diogo percebeu-lhe  um acabrunhamento e tentou averiguar o porquê:

-Algum problema, senhor Florindo?

-Coisa antiga, senhor engenheiro, de mais de quarenta anos, era eu rapaz pequeno ainda.

-E pode-se saber a história?

Florindo hesitou, mas lá abriu o livro de memórias;

-Aquela casa que comprou lá em cima guarda uma história muito triste, sabe. Durante anos foi propriedade do senhor Agnelo Bombarda, um comerciante de Lisboa, os meus pais até chegaram a ser caseiros lá. O senhor Agnelo tinha uma filha, a menina Maria do Carmo, sempre bem disposta e meiga. Enviuvou cedo, a D. Joana morreu num acidente de avião nos anos setenta, e ficou a viver só com a filha, de sete anos,mas nunca mais foi o mesmo, sempre triste e calado.

-Deve ter sido muito triste, calculo…-desabafou enternecida Filomena.

-A menina Maria do Carmo guardava uma lembrança da mãe, uma pequena caixinha de música, com uma bailarina articulada  lá dentro,a acompanhar a melodia. A minha mãe dizia que ela costumava ter sonhos em que a mãe, na forma de um anjo lhe aparecia sorria e acariciava o rosto. E a pequena suspirava ao pensar na falta do carinho materno, suspirando por ver o pai sorrir ao menos uma vez. Chegou a dizer à minha mãe que no sonho a mãe lhe dizia que quando estivesse triste, abrisse a caixa de música, que ela viria a correr para o lado dela. E na verdade, sempre que a garota se sentia perdida, abria a caixa e ficava parada, vendo a bailarina a dançar.Depois da morte da mulher, o senhor Agnelo nunca mais foi o mesmo, mas gostava muito da filha, várias  vezes os vi ali no lago olhando os patos a nadar, ela até os queria levar para casa… - Florindo gesticulava, como se tivesse sido ontem, descrevendo pai e filha com precisão. Diogo emocionou-se com a história e abraçou Filomena, a sua Susana também ia nos nove anos, mas a mãe estava viva e de saúde, felizmente. Florindo continuou;

-A certa altura, o senhor Agnelo começou a meter-se na bebida, não queria saber de nada. A menina, coitada, chamava-o para irem ver os patos, ele dizia que iriam depois. Um dia ela disse-lhe que a mãe lhe prometera que nunca a abandonaria e  que cumpria, mas ele não. Aí, ele ficou transtornado, já estava atravessado e deu uma sova na filha e que nunca mais pronunciasse o nome da mãe perto dele .A coitada ficou em estado de choque, fugiu a chorar e ele, vendo o que tinha feito, meteu-se no quarto um dia inteiro. Nessa noite ela pegou na caixa de música e veio até ao lago, abriu a caixinha e chamou pela mãe.  Na manhã seguinte, o senhor Agnelo arrependido quis redimir-se e foi fazer-lhe o pequeno almoço para lho levar ao quarto , mas ela não estava na cama. Correu a casa,o jardim, veio para a estrada, e no meio do lago encontrou-a a boiar, morta, a caixa da música a tocar em cima de uma pedra. Foi uma tragédia!- Aí, Florindo, parou,taciturno,lembrava-se como na escola, em Colares, na altura,  a história impressionara professores e alunos.

-Foi o descair completo do senhor Agnelo, sempre sentado naquela pedra  a olhar para o lago, uma vez até o porteiro de Monserrate lhe disse para ir para casa, já era  noite e não se mexia, hipnotizado. Uns dias depois  foi encontrado a boiar no lago, com a caixa de música outra vez naquela pedra.

Filomena, impressionada, fixava os olhos no lago e parecia ver os dois vultos guardados pela floresta,sua trágica sepultura. Anoitecia e voltaram à casa, Susana aguardava junto ao carro brincando com um gato, instintivamente o pai abraçou-a,beijando-lhe a testa, a mudança seria duas semanas depois. Arrancando para Sintra, o som duma caixa de música com uma bailarina dançando parecia vir do lago de Monserrate, triste e crepuscular.

publicado por Fernando Morais Gomes às 23:01

Pelas cinco da manhã já a aurora rosada e quente recortava o Pão de Açúcar, o posto seis de Copacabana enchia-se de vendedores de água de coco e sorvete,as quengas que toda a noite  tinham aviado ocasionais turistas sumiam agora à vista do dia como vampiros tornando ao caixão, para na noite seguinte retomar o batente. Mês de Carnaval, samba nos genes, o Rio vivia a semana maior do ano, Gustavo e Jorge, que  não iam à cama desde a chegada ao Galeão haviam garantido  bilhete para o sambódromo, paraíso de mulheres. Sete para cada homem, dizia o porteiro do hotel, já habituado à anual orgia dos sentidos. Enrolado em transpiração e cor, desaguando esfuziante na Marquês de Sapucaí aí estava o ansiado mundo de baianas e passantes, os deserdados filhos do morro reluzentes  e coroados príncipes por três dias. Para tudo se acabar na quarta-feira.

Enquanto o grande dia não chegava, Jorge aproveitava para um pouco de praia, Ipanema sempre, apesar dos trombadinhas e dos arrastões,Gustavo,menos dado a praia,preferira o jogging matinal no calçadão,dois  cariocas que conhecera no posto sete sabendo-o português ofereceram-lhe mesmo “bolinhos de bacalhau”,ficando logo diários companheiros de corrida.

Na noite de sábado,finalmente,a festa na Grande Arena.Autocarros pejados levavam os foliões ao desfile, um kit de sobrevivência com sandes, cerveja e “camisinhas” a abrir as hostilidades. Antes do cortejo, picanha no Terreirão do Samba, gigantesco arraial no exterior do sambódromo.Caipirinha com limão, corpos soltos e à solta, coutada fértil  para uma noite de caça. Daniela, morena  gazela,aproximou-se da mesa, a oferecer companhia, mais tarde desfilaria com os Unidos da Tijuca, esse ano o tema era Santos Dumond, o pioneiro da aviação.Vaporosa, parecia levantar voo,  os dois amigos,  já em piloto automático, exultavam:

-Oi caras, me pagam um chope?- desafiou, dengosa e endiabrada, Deus fez o mundo mas o português fez a mulata, pensou Gustavo para consigo. Era jackpot, atrás trazia amigas, súbito harém na noite de quarenta graus.No palco, a música contagiava, já as primeiras escolas sambavam lá dentro, na noite quente do Rio.

Passados ao sambódromo, o álcool e o calor faziam já das suas, camisas fora, corpos dentro, ritmo endiabrado comandando a noite de todos os perigos, os apelos quentes das patrícias clamando pela amizade luso-brasileira, aquilo sim, verdadeira lusofonia a sul do Equador. Em Sintra , Inverno, os amigos por certo a beber um copo na Vila, quando muito uma saltada a Torres, eles na twilight zone aprofundando relações diplomáticas.

Jorge torcia pela Mangueira, durante o favela tour estivera no ensaio geral, no morro, Jurema, felina passante, prometera-lhe um encontro depois do desfile. Gustavo, enquanto Daniela não desfilava estava mais atento a um zepelim que sobrevoava o recinto, o Corcovado ao fundo guardava iluminado. Nessa noite, nove escolas, uma hora para cada exibição, é dose, dizia o Gustavo, a fazer a conversão média em “chopinhos”, o transfer do hotel ficara para as seis da manhã.

Aí pela sétima escola e vinte cervejas depois,após a Mangueira desfilar,  Jurema  chegou, radiante e emplumada, e logo sumiu com Jorge para o lado dos lavabos. Gustavo, depois de esperar que Daniela  deslumbrasse- não se calara chamando por ela, apetitosa no fio dental com que excessivamente se cobria - mandou um SMS ao amigo, que por certo já não  iria ler nessa noite, e rompendo aquela Sodoma electrizada partiu com ela num táxi,  o transfer que se tramasse. No banco de trás, finalmente a explosão dos sentidos e dos corpos, alheios ao silencioso taxista que pelo retrovisor observava cúmplice os irrequietos e fogosos clientes. Gustavo mandou-o deambular pela cidade, sem destino, até que mandasse parar, no final as areias de Ipanema albergariam um fim de noite fulgurante, o Jorge no sambódromo por certo estaria já no zénite com a Jurema. Quase manhã, ainda hordas de  foliões fantasiados queimavam um ultimo  samba no calçadão, Gustavo, extenuado e ainda descalço, depois de meter Daniela num táxi para o morro, finalmente voltava para o hotel. Uns metros à frente, a música envolvente vinda do interior do Scala convidava a uma última bebida. Que se danasse, festa è festa, entrou,uma fauna de carnavaleiros aos pulos  e com ar lascivo rodeava o bar:

-Precisa companhia, gostosão?- meteu-se um tipo magro e louro a quem um disfarce de Arlequim emprestava um ar perturbador. O cheiro de Daniela ainda impregnado no corpo não o  cativou para aquele papo de fim de  noite, sem grande alarde descartou-se, o outro, que lambia os lábios na sua direcção, sumiu amuado para junto dum grupo de excêntricos amigos, todos fantasiados de marinheiros. Este não bebe mais nada, pensou Gustavo, despachando uma vodka preta abaladiça.

À saída, já novo e quente dia raiava na baía de Guanabara, satisfeito pela  vertiginosa noite, reparou no cartaz do Scala, anunciando a festa que ainda resistia lá dentro: “Galera, hoje, Noite Gay e Lésbica. Caia no pedaço”. Sorriu e seguiu para o Othon, já caíra  o suficiente,essa noite, e em que pedaço…


publicado por Fernando Morais Gomes às 00:10

05
Mar 11

Holmes descansava debaixo da grande sequóia em Monserrate,na cozinha  Francis Cook providenciava o almoço, convidara o famoso detective para uns dias de  merecido descanso no seu  estival refúgio de Sintra. Watson viajara para Brighton, a banhos, Londres ficara deserta, uns tempos longe de Baker Street e Charing Cross vinham mesmo a calhar. Recarregado o cachimbo, aproveitava para exercitar o violino, absorvendo  a fragrância do verde inóspito domesticado por Cook em pujantes feteiras e  magníficos jardins adornados por túmulos etruscos. Cook,que conhecera em Doughty House, no Surrey,agora visconde de Monserrate, chegava entretanto com um visitante inesperado, um inspector da polícia portuguesa que lhe queria falar.

- Sherlock, aqui o inspector Carvalho da polícia local gostava de lhe dar uma palavra.

Holmes, sobranceiro, olhou–o e cumprimentou com o olhar, dando uma baforada no cachimbo, sem largar as mãos do violino.

-Sr. Sherlock Holmes? Sua Majestade, El-Rei D. Fernando gostaria de lhe falar. Poderia acompanhar-me ao Palácio?

Holmes anuiu, sempre quisera conhecer o rei-artista, o almoço ficaria para depois. D.Fernando estava no chalé da Pena, a condessa d’Edla fora a Lisboa nesse dia, recebeu-o na sala da música. Afável, mas preocupado, acompanhado pelo conde de Sucena e pelo marquês de Soveral, explicou os motivos por que o havia chamado:

-Bem vindo a Portugal, caro senhor Holmes. Desculpe interromper as suas férias, mas aconteceu uma terrível tragédia que creio só uma pessoa da sua craveira poderá esclarecer! – foi logo explicando, oferecendo um chá, que Holmes e os outros aceitaram -Um grande amigo meu, o marquês de Niza morreu na sua casa, aqui em Sintra, suicídio, diz a polícia, mas acho muito estranho,nada fazia prever uma situação destas, estranhei quando ontem faltou ao baile aqui na Pena. O seu contributo pode ser importante para deslindar o caso, aqui o inspector Carvalho estará à sua disposição para os procedimentos que ache necessários.

Magro e aquilino, de olhos penetrantes, Holmes era além de mestre da dedução, cirurgião de caracteres, a grande razão do seu sucesso a deslindar casos intrincados. Anuiu, fleumático, e de imediato pediu para visitar o local onde ocorrera o suicídio, saindo para lá sem delongas, antes que  pistas  importantes  fossem apagadas:

-Será uma honra, Majestade. A maioria das pessoas vêem, mas eu faço diferente, observo, aí reside o mérito da  investigação!

A casa do marquês não ficava muito longe, um chalé na rampa de acesso à Pena, a viúva, transtornada, recebeu o detective a pedido do rei. Holmes examinou a casa, ricamente decorada, dois criados silenciosos, a marquesa, aspecto de trinta anos, era mais nova uns anos que o finado marido, segundo lhe foi adiantando o inspector Carvalho.

-Senhora marquesa, que motivos teria o seu marido para pôr termo à vida? - foi perguntando, recusada que fora uma chávena de chá.

-Ignoro, senhor Holmes, mas sei que alguém o terá procurado esta semana a intrigar sobre mim e sobre a minha lealdade como esposa para com ele, andava um pouco estranho há dois dias.

-Importa-se que visite o local onde o senhor marquês pôs termo à vida?

 -Claro, o inspector Carvalho já lá esteve, acompanhe-me, por favor!

Na biblioteca, com vista para a Vila Velha, uma mancha de sangue no tapete denunciava o local onde caíra, um tiro na nuca, o corpo já retirado e preparado para o funeral, num quarto superior. Holmes pediu para ver o corpo, a cabeça estava desfigurada e enrolada num pano branco, o tiro fora na testa, central, o ângulo da arma deixou Holmes desconfiado, examinando com uma lupa. Pediu para falar com a pessoa que tinha limpo a biblioteca depois do incidente, a velha Gracinda foi então chamada a explicar:

-Minha senhora, o que lhe vou perguntar é muito importante. Viu na sala alguma coisa anormal, um móvel fora do sítio ou uma mancha….

-Ainda não estou em mim, caro senhor, que tragédia! - a velha empregada que descobrira o corpo ainda estava em choque - Não, estava tudo como de costume, o senhor marquês estava em casa sozinho, ontem de manhã, a escrever na secretária, quando vim da Vila vim ver se precisava de alguma coisa e ali estava ele, morto, no chão, com a pistola ao lado. Reparei contudo que na mão direita tinha um botão vermelho.

-Um botão? E pertencia a alguma roupa do marquês?

-Não, que eu saiba, e não sei a quem pertence.

Holmes, raciocinando, perguntou onde poderia encontrar um alfaiate, havia um na R. da Pendoa, na Vila, o velho Queiroga, El-Rei também a ele recorria quando estava em Sintra. Holmes e o inspector foram ao seu encontro:

-Sr .Queiroga, aqui este senhor inglês precisa de saber que tipo de botão é este- esclareceu o inspector, mostrando o botão, vermelho e debruado com cetim dourado.

-É um belo botão, sim senhor, ainda há uma semana fiz uma casaca com botões desses, vermelha , foi uma encomenda do sr. Conde de Sucena  para um baile na Pena que teve lugar ontem à noite!

Holmes taciturno pediu para ficar a sós, tinha voltas a dar, e no dia seguinte fez-se apresentar na casa do Conde de Sucena, em Seteais. O conde, ainda em roupão, estranhou a visita do inglês, mas mandou entrar.

-Senhor conde, creio ter descoberto o que sucedeu com o marquês de Niza. Parece que alguém o andou a intrigar contra a marquesa, para o perder junto do rei, ameaçando mesmo com escândalo nos jornais. Ora essa pessoa devia ser uma pessoa conhecida, pois só assim teria tido a possibilidade de estar a sós em casa do marquês. Creio que essa pessoa terá entrado em confronto físico com ele, acabando por o matar, numa altura em que não estava ninguém em casa. Só que na luta corpo a corpo, o marquês de Niza terá arrancado um botão da casaca do agressor, que depois de disparar deixou a arma junto a ele, para simular suicídio.

-Muito interessante sr. Holmes, vejo que são verdadeiros os créditos que lhe dão como grande investigador, Sua Majestade há-de ficar satisfeito.

-Reconhece este botão sr. Conde?- ripostou o detective, exibindo o botão dourado.

-Não, porquê, deveria?

-É que este botão é do seu casaco e estava na mão do marquês na altura em que encontraram o corpo.

-Ridículo, tenho de retirar o elogio que acabei de lhe fazer, isso é um ultraje! Os botões são todos iguais!

Holmes pegou numa foto que trazia na casaca e mostrou-a ao incomodado conde:

-Esta fotografia foi tirada ao grupo de S. Majestade durante o baile na Pena ontem à noite. Repare na sua casaca. Falta um botão, não falta? Igual a este!- Depois de deixar o alfaiate, Holmes fora procurar por registos do baile, o Granja, fotógrafo da Corte tinha feito uns daguerreótipos para o Correio de Cintra.

O conde ia reagir, alterado, quando da sala contígua surgiu D. Fernando II, em pessoa, acompanhado do inspector Carvalho. Sucena empalideceu, vendo-se denunciado:

-Porquê Sucena? –desabafou, desiludido, ouvira tudo, a corte portuguesa estava cheia de bajuladores e intriguistas, mas a ponto de matar…

O inspector deu voz de prisão ao conde e mandou chamar um corpo de polícia, que levou o conde para o presídio. O Rei ficou ainda a falar com Sherlock Holmes:

-Obrigado pelo seu contributo, senhor Holmes, espero que agora continue as suas férias em Monserrate, o Francis é um esplêndido anfitrião. E venha jantar comigo e com Elise na próxima semana, será um prazer.

Tocando o violino e retomando as baforadas no cachimbo, Holmes retornou ao sossego de Monserrate, onde o visconde organizaria entretanto um jantar de amigos para o conhecerem, um diplomata e escritor, o Eça de Queirós, estaria presente, perito em palhetos e bem disposto, Holmes iria gostar dele, já uma vez desvendara um mistério na estrada de Sintra.

-Diga-me Sherlock, como é que descobriu tudo tão rápido? Você é um génio, homem!

Sem se perturbar, o inglês continuou no seu exercício musical, com a Pena ao fundo:

-Elementar, meu caro Cook!

 


publicado por Fernando Morais Gomes às 02:20

04
Mar 11

De acordo com telegramas secretos trocados entre a embaixada dos Estados Unidos em Lisboa e o Departamento de Estado em Washington  e a que o Café com Adoçante teve acesso, depois de os ter negociado com Julien Assange da Wikileaks num jantar na “Toca do Júlio”, algumas indiscrições diplomáticas agora reveladas podem fazer perigar não só as relações internacionais como o difícil equilíbrio da nossa política doméstica. Passamos a revelar, já devidamente traduzidos:

Lisbon Embassy, 2010.11.07 to State Department ,Washington DC, SECRET.” Depois de averiguações dos agentes da CIA colocados nesta capital, apuramos que o presidente do país, Cavaco Silva, é um fervoroso adepto do regresso à monarquia, atestado pelo facto de frequentemente ser visto em público a comer um doce chamado bolo-rei. Além do mais sofre de paranóia e mania da perseguição, tendo recentemente obrigado os serviços secretos a despistar a Playstation de um funcionário do palácio por, segundo ele, esta conter um dispositivo de escuta ligado à sede dos socialistas, no Largo do Rato. Silva é um conservador, e está totalmente dependente da mulher, que lhe dita os discursos enquanto cozinha pataniscas, uma comida étnica que se consome muito neste país. Temos um agente no palácio presidencial disfarçado de cozinheiro, outro como alfaiate do primeiro-ministro e introduzimos uma toupeira no seu inner-circle, a interceptar comunicações. Vários advogados locais e um conhecido economista, Medina Carreira, também trabalham para nós na contra-informação.”

State Department to Lisbon Embassy, Washington D.C.2010.11.16. SECRET “A secretária Clinton solicita informações sobre a situação económica, a Reserva Federal equaciona comprar dívida portuguesa, será bom negócio pois em Abril de 2011 poder-se-á revender com juros de 9% a 10 anos. Em complemento, estamos a ponderar ficar com os novos submarinos para um espectáculo de luz e som no Sea World em San Diego. Urgente.”

Lisbon, 2010.11.25 to State Department, SECRET. “Apesar de o governo publicitar que resolverá o problema da dívida até 2013, sabemos pelos nossos homens em Pequim que os chineses já compraram a maioria das empresas e até vários ministérios, e que a principal praça de Lisboa vai ser transformada na maior loja de trezentos ao ar livre do mundo. Vários monumentos vão ser transformados em restaurantes e o Mosteiro dos Jerónimos acolherá um casino. A situação da moeda é confusa, pois apesar de o euro ser ainda a moeda oficial, alguns empresários desportivos do norte fazem transacções em “fruta”, enquanto outros usam como padrão de referência o “robalo”. Cada  “robalo” conversível equivale a 100.000 dólares cada, câmbio de Novembro. Marcar uma reunião para fazer lobby chega a custar a módica quantia de quatro “robalos”.

State Department to Lisbon Embassy, 2010.12.04, SECRET- “Solicita-se informação urgente sobre colaboração do Governo Português na luta contra o terrorismo”

Lisbon Embassy 2010.12.06 to State Department, SECRET.-“A posição do governo em Lisboa é equívoca, consta que um barco nos estaleiros de Viana do Castelo comprado pelos venezuelanos contém encapotado um bunker onde se guardam armas de destruição massiva, transportadas do Iraque depois da Tempestade no Deserto. Seria de impor uma zona de exclusão aérea entre Porto e Caminha e enviar um porta -aviões para um desembarque de marines na costa e aprisionar o dito navio antes que ele viaje para a Venezuela. No entanto, como combinado os portugueses continuam a manter o nosso acordo para negar a existência de voos da CIA, são muito profissionais a dissimular, temos de reconhecer. Possuímos igualmente informações que há um Garganta Funda no governo, pois todas as conversas privadas saem diariamente num tablóide matutino de Lisboa, poupando-nos muito trabalho no terreno. Há igualmente sintomas de insurreição em Lisboa, para os lados dum bairro chamado Alvalade, onde snipers vizinhos equipados de vermelho têm feito várias baixas entre os locais, sendo muitos os danos colaterais, os mais religiosos acreditam ser castigo de Jesus, que aqui é representado como louro e com uma farta cabeleira.”

State Department to Lisbon Embassy, 2010.12.09, TOP SECRET-“ A secretária Clinton e o conselheiro de segurança nacional ficaram muito preocupados com os últimos telegramas enviados do posto de Lisboa, pois contrariam tudo o que tem sido afirmado pelo Governo local ao presidente Obama. Informe urgente.”

Lisbon, 2010.12.11 to State Department, Washington DC, TOP SECRET-“O embaixador reuniu com o primeiro-ministro e com os líderes da oposição que transmitiram as seguintes informações: Portugal manter-se-á fiel parceiro na NATO desde que o Presidente diga que o primeiro-ministro é o campeão das energias renováveis e da banda larga, o líder do PSD desde que os seus fatos Armani sejam considerados os mais elegantes e o do CDS se o deixarem visitar os subterrâneos do Pentágono com um chapéu de almirante como nos filmes. Na rua o clima é calmo, desde que o Benfica ganhe o campeonato de futebol, o   apresentador Mendes entregue o prémio em electrodomésticos de um concurso e a astróloga Maya desista de uma operação para aumentar as nádegas. Querem também os direitos de difusão em primeira mão para a Europa toda a nova série da Anatomia de Grey e bilhetes grátis para o Disney World para todos os deputados e famílias.”

Washington DC to Lisbon Embassy, 2010.12.13, TOP SECRET- “O Departamento de Estado depois dos perturbantes relatos anteriormente enviados, vai propor ao Conselho de Segurança das Nações Unidas que seja decretada uma zona de exclusão aérea em todo o país e enviar brigadas psiquiátricas, segundo analistas do nosso Departamento de Saúde estará em curso uma pandemia de insanidade, a Organização Mundial de Saúde foi já avisada para fazer controlo sanitário a todos os viajantes provenientes de e para Portugal. Um antídoto contra os efeitos de alucinogéneos vai ser enviado com urgência para o terreno. Os casos mais graves, a impor quarentena sanitária estão localizados na ilha da Madeira, dali terá partido o vírus que contaminou o presidente Chavez, da Venezuela e a cantora Amy Winehouse, parece que se propaga através de uma bebida chamada poncha.”

Café com Adoçante conferiu a veracidade dos telegramas, verdadeiramente bombásticos. Refira-se que antes de partir para a Suécia, onde vai fazer um retiro sexual, digo, espiritual, o senhor Assange quis visitar a redacção do jornal Correio da Manhã, considerado uma referência mundial de excelência em fugas de informação, tendo ficado surpreso pelo êxito que a modesta fuga de alguns telegramas da Wikileaks aqui teve, num país onde a violação sistemática de segredos é algo perturbadoramente normal, basta pedir para guardar segredo para ele ser logo revelado.


publicado por Fernando Morais Gomes às 00:03

03
Mar 11

Manhã cedo, o sol brilhava forte e tudo fazia crer que seria um dia quente. João abriu os olhos, assustado, o polícia mandava atravessar, o semáforo estava verde.

- Vamos a circular! - já os condutores atrás levantavam os braços, sem paciência, ao volante sempre justiceiros implacáveis. A noite nas Docas fora em cheio, oito da manhã e ainda não fora à cama, a correr as capelas e coleccionar shots de bar em bar, a manhã parecia estranha,com  a boca a saber a papéis de música. O carro ficara junto ao BBC e depois de várias incursões com os amigos noite fora, voltava a buscá-lo para logo de seguida cair numa providencial  cama até lá para as cinco da tarde. Sexta-feira seguinte, outras histórias, mais uma volta, mais um tirinho, pensava.

Caminhava lentamente pelo passeio onde ainda horas antes tropeçara bêbado, mal se lembrava já do que fizera essa noite,quando os pés tocaram num objecto meio disfarçado na relva. Abaixou-se e pegou. Era uma carteira de mulher, dentro alguns cartões de crédito e um maço de notas de cinquenta euros. A primeira tentação foi ficar com a carteira, deveriam estar ali mais de trezentos euros, alguma “tia”que saíra a divertir-se, tinha cartões de centros de massagem e fitness, um convite para a Moda Lisboa ainda dobrado.

Desempregado, quatrocentos euros do Centro de Emprego, os dias entre o café ou em casa,as sextas-feiras eram o  dia da evasão, uns copos em bares onde porteiros amigos facilitavam o ingresso, o resto da semana a contar os cêntimos, tardes no café com uma bica na mesa para que não se dissesse que não consumia, aqueles trezentos euros quase duplicariam o mês. Porém, um rebate de consciência fê-lo mudar de ideias. Havia um endereço na carteira, e até não era muito longe a pé, subindo a Infante Santo ainda antes de voltar para casa entregaria a carteira à dona.

O local era um prédio de oito andares, já a caminho da Calçada da Estrela, muito classe média, dois elevadores, tocando à porta uma mulher magra para aí de quarenta anos e com um avental um quanto sujo veio atender, ainda não eram nove da manhã, a barba por fazer de João aconselhava prudência.

_ O que é que deseja?- perguntou a mulher, uma empregada, presumiu .

-Chamo-me João Subtil, a D. Liliana Candeias está?- esse era o nome que depreendera dos cartões de crédito, um Gold dum banco inglês sugeria conforto financeiro.

-A D.Lili está ocupada, o senhor engenheiro acabou de chegar do estrangeiro, qual é o assunto?

-É que tenho uma coisa para lhe entregar que deve estar a fazer-lhe muita falta - e dizendo isso, sacou da carteira do bolso de trás das calças.

_ Está bem, dê cá que eu entrego.

- Desculpe, mas só entrego em mão própria.

A mulher olhou-o com ar indignado, e refilou com ele:

-Está com medo que eu não entregue à senhora? Quem julga que eu sou?

-Desculpe, mas tenho de me certificar se a pessoa confere com os dados da carteira, é o mínimo não acha?

A empregada meteu um ar empertigado e fechou a porta. Passados minutos, uma mulher, para cima de trinta e cinco anos, roupão de cetim e toalha enrolada na cabeça atendia o voluntarioso rapaz. Era uma mulher produzida, perfume de marca,morena, coxas bem esculpidas, por certo acabara de se levantar, directa para ele e ainda ali, armado em bom samaritano.Ao vê-la,pareceu-lhe detectar no rosto algum desconforto:

-Bom dia, a minha empregada disse-me que o senhor queria falar comigo, eu perdi a minha carteira ontem, não sei onde, espero que me traga boas notícias!- o ar felino deixou-o interessado, ricaça por certo, mas com tudo no sítio, apetitosa. Retirou a carteira de novo e explicou-se:

-Sabe, encontrei esta carteira perto do meu carro, na zona das Docas, e pelos dados que aí vi suponho que seja sua, é a D. Liliana Candeias, certo?

-É minha sim, já tinha dado por falta dela. Nem imagino como foi parar às Docas! -respondeu, ar subitamente preocupado, mas sem desarmar, olhar evasivo.

Aquela cara pareceu familiar a João, não lembrava de onde, o perfume intenso  evocava-lhe algum local onde estivera recentemente, enfim, ainda era manhã e por certo os cheiros dos bares da madrugada ainda lhe estavam impregnados na roupa, deveria ser isso.

-Não a conheço de algum lado? - João sentia-se intrigado, mas podia ser engano, conhece-se tanta gente parecida.

 Uma voz de homem, lá de dentro, chamava por ela:

-Quem está aí, Lili?

- Ninguém querido, já vou! E dirigindo-se novamente a João rematou:

 - Olhe, como pode ver, estou com pressa. Certamente foi só impressão sua, nunca o vi mais gordo.

- Mas eu quase tenho certeza que….

Saia daqui, pelo amor de Deus! -e já com a carteira na mão, retirou o maço de notas da carteira e deu-lhos, nervosa:

- Tome, o dinheiro é seu, adeus!- e num ápice fechou a porta,  levando consigo o cheiro a perfume, forte e sensual. Apesar de tudo valera a pena, trezentos euros bem valeram subir a Infante Santo. Já perto do carro, e a ressaca a passar, um clique de memória e logo recordou a estranha morena que engatara num bar nas Docas e com quem se divertira dentro do carro, no breu daquele estacionamento, nem lhe perguntara o nome, aventura da noite, entorpecida pelos shots ,mais uma, o perfume sensual era identidade suficiente.


publicado por Fernando Morais Gomes às 03:31

02
Mar 11

Novembro de 1924.O Presidente da República, Manuel Teixeira Gomes, chegava solenemente a Sintra para o lançamento da primeira pedra do novo hospital, atrás da cadeia comarcã e da R. das Murtas, junto à estação ferroviária. Projecto de Pardal Monteiro, vistosa se preparara a cerimónia, com ministros, edis, fardas coloridas com dragonas, filantrópicas e enchapeladas damas, o acompanhamento musical das Bandas do 1º de Dezembro e dos Bombeiros da Vila e S. Pedro. Alfredo Pinto cobria o evento para a Semana de Sintra, enquanto O Despertar, órgão do Centro Republicano de Sintra se fazia representar pelo seu director, António Duarte da Silva Sousa, industrial de mármores das Lameiras. A vila rejubilava com o acertado passo no sentido dos melhoramentos, a saúde finalmente no mapa dos direitos que uma sociedade civilizada não podia dispensar.

Presentes Gregório Casimiro Ribeiro e Amílcar Barros Queiroz, do Partido Regional, José Antunes dos Santos, conhecido capitalista, o dono da Piriquita, Júlio Amaro dos Santos e outros. Depois de tocada “A Portuguesa” pelas duas bandas presentes, o Presidente usou da palavra para enaltecer o progresso e aquela realidade que depois de muito aguardada finalmente avançava, antes do fim da década de vinte Sintra emparceiraria com Lisboa e outras cidades civilizadas, os doentes teriam tratamento, as mães assistência no parto, os feridos cuidados atempados, Sintra poderia crescer com confiança no futuro, que o Estado e a República zelariam. Muito aplaudido, perorou de seguida o presidente da Câmara, para gáudio dos caciques locais, depois dos novos paços do concelho e da cadeia comarcã, um moderno hospital nasceria em zona central. Depois dos discursos e do lançamento da primeira pedra, solenemente se lavrou um auto do acontecimento e dele se extraiu cópia que o presidente Teixeira Gomes depositou debaixo da pedra num recipiente de vidro, enterrada testemunha para a eternidade do momento solene em que Sintra ia passar a ter o "seu" hospital.

Amaro dos Santos, o dono da Piriquita, aplaudia, enquanto comentava com José Antunes dos Santos:

-Sim senhor, assim sim, já não vai ser preciso ir para S. José ou para o Desterro. Já cá fazia falta há muito tempo! Olhe, se já tivesse sido feito no tempo da gripe espanhola se calhar muito boa gente tinha escapado!

-Esperemos que sim, caro Júlio, ainda se morre muito, daqui a Lisboa são quatro horas, e Sintra não pode curar os seus doentes só a caldos de carneiro e pachos de água quente. Esperemos que sim!- ainda pouco convencido, o cacique aplaudia, para ele seria também bom para os negócios.

As obras estavam já apalavradas, o Governo cativara verbas, no Verão se faria um cortejo de oferendas na Vila para ajudar a equipar, tudo do mais moderno, internato, maternidade, dispensário e cirurgia, não tivessem medo de estar doentes que estariam todos preparados.

 Como muitas coisas em Portugal, a República soçobrou, e o hospital foi abandonado, nem um tijolo foi erguido, miragem absorvida pela avidez da verba, como o salvador teleférico que levaria turistas à Pena, tudo miragens desfeitas num qualquer avaro orçamento de Estado.

Em finais de 2010, um piquete dos SMAS procedia à reparação de uma conduta junto ao estacionamento fronteiro à estação, entre o entulho e a terra húmida quando um recipiente de vidro ainda intacto foi enrolado na escavadora, detritos acumulados, pensou o engenheiro da obra. A um olhar mais atento, verificou-se que continha um documento dentro, com lacre e fita vermelha. Surpreendentemente ali se atestava às gerações vindouras o dia em que Sintra, pela mão do mais alto magistrado da nação lançava pontes para o futuro das suas gentes, só uma nação sã pode ser uma nação progressiva, escrevia-se, prometendo um rápido regresso para a inauguração.

O engenheiro levou aquilo ao director, que encaminhou para o Arquivo Histórico, o doutor Montoito surpreso examinava o valioso e singelo manuscrito, havia que lhe dar o tratamento que a importância justificava.

Os anos passaram, os regimes também, do novo hospital nem um tijolo, nem um só bebé nasce hoje em Sintra, as poucas  cegonhas  vindas de Paris sobrevoam a Pena, mas com destino a Cascais ou a Lisboa, aquela pedra e aquele recipiente de vidro solenemente enterrados em 1924 deixaram de ser uma prioridade para os vivos, o recipiente, esse sim, por certo um atractivo para os arqueólogos que qual Graal redentor, talvez  pensem que tenha havido um holográfico hospital em Sintra, na velhinha Rua das Murtas e que como muito outro património já desaparecido tenha sido engolido na voragem urbanizadora.


 

publicado por Fernando Morais Gomes às 06:42

01
Mar 11

O segurança fechou as luzes, apenas ficando as de presença, sexta-feira, quase todos já tinham saído da Faculdade de Medicina, em Lisboa. O doutor Pignatelli, do gabinete de frenologia acabada a dissertação que faria sobre o cérebro e o crime na semana seguinte saía também, o dia fora cansativo.

Pouco passava da meia-noite, o segurança dormitava já, e uma lanterna mortiça e silenciosa focava as prateleiras do velho teatro anatómico. Crânios, pés, corações, fetos de gémeos em frascos de vidro, o vulto procurava algo específico, que finalmente encontrou: o tal frasco, o valioso frasco contendo a cabeça decepada do criminoso Diogo Alves, conservada em formol, um médico que quisera ficar no anonimato pagara ao Quim dez mil euros para que roubassem e lhe levassem o frasco com a cabeça a uma casa perto de Sintra. Artur não via que interesse poderia ter objecto mais macabro mas era uma boa grana, os acessos à faculdade não foram difíceis, entrara com o pessoal da limpeza, discretamente. Agarrada o frasco, meteu-o no balde da esfregona e com pezinhos de lã escapuliu-se para Sintra, ao encontro do Quim.

Diogo Alves fora um conhecido criminoso do século dezanove. De origem espanhola, nos anos trinta desse século, com a ajuda da sua companheira, a Parreirinha, cometera inúmeros crimes, os mais conhecidos dos quais os homicídios e lançamento das vítimas do alto do Aqueduto das Águas Livres, depois de as roubar. Apanhado depois de assassinar a  família de um médico, foi enforcado em 1841, tendo na altura cientistas da Escola Médica decepado a cabeça e ficado com ela para estudo, até ao presente. Apesar do aspecto tranquilo, uma mente perversa estaria por trás daquela personalidade.

Sampaio de Moura, 67 anos, médico já uma vez admoestado pela Ordem por experiências deontologicamente reprováveis, fora o mandante do roubo, e contra a entrega do dinheiro, em notas, com regozijo recebeu o perturbante frasco na sua casa em Chão de Meninos, anoitecia já, a Natália em frente recolhia a esplanada depois de mais uma tarde primaveril.

Moura acreditava que o ncérebro de Diogo Alves  encontraria explicação para os comportamentos criminogéneos , a protuberância física como determinante, e propusera-se secretamente fazer uma experiência: aproveitar a operação  a um paciente traumatizado, para discretamente lhe fazer um implante, operação arriscada, a Helga, dedicada enfermeira colaboraria com discrição, e com isso monitorizaria a experiência que há muito vinha matutando. Ao invés de colegas seus, adeptos da craniometria, que associava o tamanho peso e forma do crânio a comportamentos desviantes, ele ,frenólogo militante ,sempre achara fundamento científco nas ideias de Franz Gall, o cérebro como lar de toda a actividade mental, o nível de organização do mesmo a determinar a personalidade, independente da moral ou da razão, a experiência mostraria se tinha razão ou não.

Duas semanas depois, na cirurgia do Amadora-Sintra, Alberto Santiago avançava já anestesiado para a sala de operações, a queda de uma grua deixara-o com lesões cerebrais, só uma operação poderia resolver. Sampaio de Moura, já com tecidos da cabeça de Diogo Alves preparados, raspou-lhe o couro  cabeludo ,fez uma incisão e, em seguida, uma perfuração no crânio do sinistro para a parte com problema ser exposta,usando lentes de aumentação por forma a  não causar danos no tecido encefálico. Depois de retirar um coágulo de um vaso sanguíneo  implantou tecidos extraídos da cabeça de Diogo Alves e voltou a colocar o osso craniano. A experiência estava em curso, pensava sorrindo para si mesmo, outro Alberto seguiria agora para a enfermaria, entorpecido.

Só na tarde seguinte o paciente despertou, com sede, pedia água, sentia a cabeça a andar à roda, normal, dizia a Helga.  Sampaio, atento, tirava notas, os dias seguintes seriam determinantes.

Uma semana depois teve alta, iria convalescer em casa, na Tapada das Mercês, um sétimo andar perto da estação. Sampaio recomendara que viesse à consulta todas as tardes, para acompanhar a recuperação, comportamentos anormais seriam para ele relevantes, a enriquecer as suas ideias que recolocariam as teses de Gall no centro da neurologia moderna. Egas Moniz e suas bárbaras lobotomias depressa estariam no caixote da Ciência, quiçá um dia  para ele o Nobel  a premiar as teses de Sampaio, sonhava já em voz alta.

Na Tapada das Mercês, entretanto, Alberto passava os dias a ver televisão, frequentemente atacado por  encefalias, sequelas ainda o acidente, pensava. Uma tarde, antes de sair a encontrar-se com o médico duas testemunhas de Jeová  bateram à porta a doutrinar, missionárias. A dor de cabeça e a hora eram inoportunas, arengou, tinha de sair para ir ao médico. As senhoras, livro na mão, eram insistentes, e continuavam a falar da salvação. Alberto, ouvia-as com um eco a zurzir na sua cabeça, ficou alienado e sem noção do que fazia agarrou uma delas e lançou-a do sétimo andar pela varanda aberta do corredor, logo em baixo se juntando uma multidão perto do Floresta Center, enquanto a outra fugia, o Deus que salva talvez não a salvasse naquela situação. Alberto ficou em pânico, quando se apercebeu do que fizera,e correu a fechar-se em casa, já a sirene da polícia vinha a caminho, a cabeça a latejar. Em desespero, telefonou ao doutor Sampaio, precisava vê-lo urgente,um polícia arrombava a porta a pontapé. Escondendo-se na parte de fora da varanda, mal o incauto agente  ali foi à sua procura, um empurrão com um só safanão e  o polícia jazia também lá em baixo,no passeio do prédio, choviam pessoas daquele prédio, pensou um bêbedo observando a cena do quiosque da estação.

Sampaio chegou acelerado, o burburinho à porta do prédio em torno dos corpos antecipou-lhe que o pior tinha acontecido, trepou os sete andares a pé e deu com Alberto prostrado no chão da sala e agarrado à cabeça, os olhos fora das órbitas. Da varanda aberta vinha agora um vento desagradável, correu a fechá-la. Ainda mal tocava uma das portas quando por trás sentiu um empurrão seco e desamparado e se viu janela fora, rumo à eternidade,  não exactamente aquela com que sonhara.

Para Alberto Santiago, como para Diogo Alves cento e setenta anos antes, os problemas eram todos com as alturas...


publicado por Fernando Morais Gomes às 05:41

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