Possidónio da Silva era demasiado formal, queria algo diferente, Von Eschwege percebera já o que o rei pretendia. Arquitecto amador e mineralogista, Eschwege, que nascera em Hessen, deveria conhecer, pelo menos em projecto, as obras que Frederico da Prússia empreendera com o traço de Schinkel nos castelos do Reno. Era isso que Fernando, agora rei de Portugal, procurava reconstruir no convento da Pena, algo diferente, uma miscelânea romântica e exótica.
Os trabalhos decorriam a bom ritmo, segundo o projecto do alemão. A par de arcos ogivais, torres medievais e elementos de inspiração árabe, o rei, entusiasta, mandou reproduzir na fachada norte uma imitação do Capítulo do Convento de Cristo, em Tomar.
Naquele dia, porém,o rei e Eschwege chegavam apressados à Pena, os encarregados reportaram um acidente grave, um dos estucadores caíra dum andaime e morrera. D. Fernando, consternado, acorria a inteirar-se, pagando do seu bolso o funeral.
Inconsolável a viúva e dois filhos, aguardavam chorosos, e agora desamparados. A diária viagem de burro de Gigarós para as obras já era penosa para o malogrado Serafim, deixava agora órfãos dois filhos de tenra idade. D. Fernando, emocionado, beijou as crianças, dois rapazes de nove e cinco anos, e ordenou que o seu secretário providenciasse apoio. Eschwege representá-lo-ia no enterro, em vala comum.
Passada a couraça e a ponte levadiça, o mestre de obras, aproveitando a presença, acercou-se deles, o Pátio dos Arcos, com a parede de arcos mouriscos, estava quase pronto, bem como a zona apalaçada com o baluarte cilíndrico. Eschwege caprichara, pensou, Schinkel não faria melhor. Marcante, contudo, era o tritão, meio peixe, meio homem, saindo de uma concha com a cabeça coberta por cabelos que se transformavam num tronco de videira, lembrando o barbudo da sala do coro do Convento de Cristo, transformado aqui num ser monstruoso. Era aquela era a imagem pretendida:
-Eis o Pórtico da criação do mundo, Eschwege!- místico, o rei conseguira condensar em termos simbólicos a teoria dos quatro elementos, fiel aos ritos da sua convicção. Reforçando a relação com Tomar, a janela no lado oposto deste corpo copiava com alguma liberdade o vão manuelino de Diogo de Arruda. Nicolau Pires fora a Tomar desenhá-la, com o prussiano reformulara o conjunto.
Carros de bois iam chegando com materiais e mais homens, recrutados em Sintra e nas várzeas próximas. D. Fernando era generoso com os homens, que inicialmente cépticos com a obra faraónica no alto da fraga, se rendiam agora, à medida que as formas finais ganhavam cor,divinais no topo da serra. Em torno faria um jardim, luxuriante e denso, outros planos tinha ainda para obras na propriedade. Maria, de novo grávida, apoiava, no futuro seria um esplêndido retiro de Verão, a família estava a crescer.
Passadas três semanas, voltou às obras. Em Évora nesse intervalo descobrira um açougue com vestígios dum templo romano, entusiasmado ordenara que se pusesse o mesmo à luz do dia. Pasmava como este país tão rico em legados artísticos os tinha em total ruína. Na Batalha, roubavam-se lajes dos túmulos para cantarias das casas, os Jerónimos ameaçavam ruir, a custódia de Gil Vicente jazia abandonada num esconso da Casa da Moeda. Nesse intervalo, os tectos da Pena avançaram, três meses mais e estariam prontos, garantiam os estucadores.
Num barraco junto à ponte levadiça, pela hora do almoço, os homens faziam um intervalo, tempo para um caldo de carne e uma malga de vinho. D. Fernando, visitando-os, a todos cumprimentou, elogiando o trabalho. Falava mal português, mas o povo já o conhecia como justo e simples, preferia a música às armas e tal como o povo, detestava os políticos, com Saldanha à cabeça. Em Sintra estava entre os seus. A um canto, uma mulher de negro, junto a um caldeirão, enchia pratos com sopa, que duas crianças serviam aos homens. Eram a viúva e filhos do defunto Serafim. Aproximando-se, o rei perguntou por eles, poucas semanas haviam passado desde a morte do estucador, com apenas vinte e sete anos.
-Espero que esteja a ter a força suficiente para criar as crianças, fraulein- condoído, D. Fernando pediu da sopa, comeria com Eschwege junto aos homens, meio acanhados com a presença do rei- Andam na escola?
A jovem viúva fez que não com a cabeça. Pobres nasceram e pobres morreriam, era a lei de Deus e a vontade dos homens.
-Terão de trabalhar, senhor. Um dia talvez possam ter sapatos, e tendo uma vaca ou um palmo de terra se criarão tementes a Deus.
D. Fernando calou-se. Em terra profundamente católica, aprendera a entender o conformismo dum povo convicto que tinha o que Deus destinava, tudo o que viesse a mais a Deus misericordioso deveriam agradecer.
-Claro, claro…-pegando em algumas moedas, deu-as à mulher, afastando-se com Eschwege, tinha de ir. À noite, ao jantar nas Necessidades, contemplando a rainha e os príncipes, da idade dos filhos do estucador, não deixou de reflectir sobre o jogo de sombras que Deus fazia com os humanos, distribuindo-os à nascença em bafejados e desprotegidos.
Uma semana depois, o mestre de obras da Pena chamava a viúva, agora cozinheira dos operários, precisava de falar com ela. Assustada, Elvira, de seu nome, compareceu, com os filhos pela mão. Depois de um breve silêncio que lhes pareceu eterno, o mestre comunicava que o rei a contratava para o serviço no novo palácio, com cómodo e serventia de águas. As crianças aprenderiam as letras com uma mestra, em Sintra, e depois um ofício, a Pena precisaria de gente mais tarde.
Do cume onde um deles encontrara a morte vinha agora uma réstia de esperança na vida.