por F. Morais Gomes

08
Abr 11

O novo hóspede olhou pela janela do salão e terminou o cherry, na cozinha Jane Lawrence ultimava o pato assado que Hobhouse encomendara. Este, saboreando um Porto com Turner, achando o forasteiro abúlico   abordou o taciturno inglês:

-Algum problema, cavalheiro? Parece preocupado…permita que me apresente: John Cam Hobhouse, de Durham. Este é o meu amigo, o reverendo Turner. Está em Sintra a negócios?

O recém-chegado virou a cara, rugosa e envelhecida, coberta por longos cabelos ruços e suspirou.

-Sou William Galagher, de Bristol, prazer.

 Bebendo mais um cherry, sentou-se, disposto a desabafar, parecia cansado, desejando falar, como se um peso o sufocasse:

-Senhores, vou contar-vos uma história muito triste, preciso de a contar. Há seis meses, em Portsmouth, morreu tísico meu único filho. Desesperado e já viúvo há dois anos, uma noite, vai para dois meses, saltei de uma falésia para o mar, cansado desta vida. Pensava descansar já entre os mortos quando recobrados os sentidos me vi num escaler de marinheiros que remavam em direcção a um barco. Abeirando-se de mim, a boiar e sem sentidos, levaram-me para bordo e trouxeram-me para Portugal, o navio vinha para este reino em socorro do general Wellesley, o comandante, apiedado do meu caso, recebeu-me como amigo.

Detendo-se um pouco, William olhou o mar ao fundo e continuou:

-Agora, enchei os copos, senhores: o que vos vou contar é negro como negras são as trevas do Inferno - o ar grave deixou Turner e Hobhouse intrigados, até Miss Jane assomava ao corredor interessada na narração.

 Lord Byron, que com Hobhouse e Turner estava alojado no Lawrence, chegou dum passeio entretanto, o conterrâneopareceu-lhe perturbado. Juntando-se-lhes no salão pediu chá e scones que Jane diligentemente providenciou. Continuando, William adensava o mistério:

-Uma madrugada, já perto das costas portuguesas, avistámos um navio de Bonaparte. O barco que seguia em rumo oposto ao nosso virou o flanco e uma nuvem de balas veio cair junto a nós. Os navios ficaram lado a lado, os franceses estremeceram mas demos-lhe caça. Atracaram-se os dois navios para a luta e o combate foi sangrento, o chão do navio escorregava de tanto sangue. Alguns minutos depois o barco deles voou pelos ares. Foi uma cena pavorosa ver as chamas, o estrondo da pólvora, o reverberar do fogo nas águas, homens arrojados ao ar caindo no oceano. Uns meio queimados atiravam-se à água, outros, esfolados, nadavam com dores horríveis e morriam gritando maldições. Enquanto o comandante e os homens se batiam como bravos, fiquei na minha camarata. Porém, e apesar do sucesso com as armas, horas depois o navio encalhou num banco de areia e afundou-se sem apelo, metendo água por todos os flancos.

Byron interrompeu o relato, lembrava agora o naufrágio semanas antes do HMS Victória. Não houvera sobreviventes, dele falara emocionada a imprensa inglesa, antes da sua partida para Lisboa.

-Homem, você deve ser o único que sobrou vivo desse desastre. Segundo sei, terão morrido todos!

A dona do Lawrence e os outros dois pasmavam, William mostrou surpresa pela notícia na imprensa mas não deu sinais de alterar a postura, antes bebeu um pouco mais de cherry:

-Que horror, milord! Jesus, Mary, how did you save yourself?- replicou Jane, levando as mãos à cara, a irlandesa, há dez anos em Sintra, nunca tivera um hóspede tão castigado pelo destino.

-Creio que devemos deixar este cavalheiro explicar melhor a sua história. Go on, mr. Galagher! -Byron colocava um ar irónico, o colorido folhetim barato tão ao gosto de poetas do Lake District ajudaria a dar emoção à visita a Sintra. O inglês continuou:

-Depois foi horrível. Naufragado o barco, sobrámos cinco numa jangada no meio do mar. Cada vaga que varria as tábuas descosidas arrastava um homem. Quando a aurora veio, restávamos só três: eu, o comandante e um grumete. Durante alguns dias comemos bolachas com sabor a mar. Depois tudo o que há de mais horrível se passou: não havia que comer, as entranhas tinham fome. Isso tudo, senhores, para falar-vos de algo muito simples, da lei do naufrágio: a sobrevivência…

O grupo estava boquiaberto, Byron mal esperava para ouvir o desenlace, entretendo-se com os scones de Miss Jane.

-Uma semana depois de acabados os alimentos, restava eu e o comandante, macilentos e enjoados do balançar das ondas. Mandam as leis do mar que a morte de um seja a vida de todos. Tirámos á sorte a ver quem ficaria, coube ao comandante morrer.

-Que horror, é completamente perturbador! - John Hobhouse nem uma raposa conseguira matar na batida de Lord Grasmere, a ideia de  churrasco humano, ainda para mais compatriota, apavorava-o.

-O comandante ajoelhou-se, chorou, gemeu a meus pés. Mas eu tinha as entranhas em fogo. Morrer naquele dia ou depois... tudo me era indiferente, tinha fome. O velho lembrou-me que me acolhera a bordo por piedade, mas era eu ou ele. Transtornados, lutámos corpo a corpo por um mísero dia de vida!

A face de William estava agora transfigurada, recordando a cena, lobo esfaimado em alcateia flutuante.

-Caiu, pus-lhe o pé na garganta, sufoquei-o e de imediato morreu ...-aqui fez-se um silêncio na sala, só quebrado lá fora pela algazarra dos burros levando visitantes à Pena.

-Não cubrais o rosto com as mãos, faríeis o mesmo... O cadáver foi o meu alimento dois dias. As aves baixaram para reclamar a sua parte, os meus lábios secos e estalados apenas expeliam sangue, como fera ao abocanhar a presa. O mar rodava em torno de mim, como um sorvedouro pronto para me engolir. Nessa noite, uma sorrateira onda arrebatou-me o cadáver seminu, sumindo e boiando a distanciar-se, depois não o distingui mais, a minha sobrevivência perdia-se ali também. Entrei em delírio, quando acordei estava a bordo de um navio português.

Terminado o relato, o grupo hesitava entre o horror e o espanto, impressionados, já sem fome e em silêncio recolheram aos quartos. O suculento assado de Jane Lawrence parecia de repente herético e escandaloso, apesar do apetitoso cheiro vindo do forno da cozinha.

No dia seguinte William Galagher não apareceu no almoço da manhã. Miss Jane tocou à porta, como não respondesse, chamou Silvério, o cocheiro, que forçando a porta com um pé de cabra constatou ter o hóspede sumido, os poucos pertences em desalinho.

Na estrada da Pena, um alarido de mulheres após gritos estridentes denunciava um alvoroço inusitado perto dos Pisões. Byron e Turner, já à  mesa largaram a compota de laranja e acorreram curiosos a ver que banzé perturbava o harmonioso silêncio de Sintra.

Pendurado numa corda, na Sobreira dos Fetos, o corpo de William ondulava ao vento, atormentado predador do seu benfeitor. Duas vezes resgatado da morte, era tempo agora do encontro com ela e enfim descansar em paz.


publicado por Fernando Morais Gomes às 17:58

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