Dois gigantes se contrapunham, Mediterrâneo e Atlântico, por fronteira as Colunas de Hércules, rochosa ponte entre mundos. Passado o sereno mar entre montanhas cavado, aí estava o Atlântico a perder de vista, maior que o mediterrânico lago onde como rãs homens viviam em volta dum calmo charco. Do lado de lá as afortunadas ilhas, e o Mare Nostrum, na fronteira de Finisterra, entre o Promontório Sacro e o Mare Gallicum.
Destruída Tróia e sua acrópole, Ulisses errante viu cidades novas, costumes de mil homens, no mar padeceu tormentos, no interminável regresso a Ítaca, cativa de cruéis Mnesteres ciosos dos favores da leal Penélope. Sete anos cativo de Calypso, libertado por Hermes e Atena, após partir para Esquéria, lar dos faécios, aí permaneceu, hábil em jogos, atento ouvinte de Demódoco e seus poemas.
Uma vez mais sulcando o mar, após incursão em terras dos cicones, desviado por tempestades e capturado pelo ciclope, de Polifemo só escapou após cegá-lo com o favor dos deuses. Éolo, senhor dos ares, protector lhe deu então um saco de ventos que bonançosos o levariam de regresso à Pátria. Mas a ganância de seus homens, abrindo de modo incauto o saco em busca de ouro os ventos deixou escapar, deixando-os perdidos à deriva. De novo bafejado por Éolo, Ulisses entrou no desconhecido Tejo, a conselho de Atena aí construindo muralha e a ela erguendo templo. Postos os trabalhos de Tróia, atraído para as escarpas da Roca-Mãe, onde Prometeu vigiava, ei-lo chegado à terra que Proteu a Menelau descrevera como Elýsion, nos confins da Terra, onde o ruivo Radamante reinaria e os humanos viviam felizes, livres do frio e da chuva, e Éolo soprava a brisa do Zéfiro.
Desembarcando no Tejo, enfrentou surpreso o desconfiado rei Górgoris, criador de abelhas, senhor de férteis pomares. Logo apaixonado por Calíope, sua filha, de furtivos amores lhes nasceu um filho que, enfurecido, o despeitado e manco avô mandou jogar ao rio para que o oceano o levasse. Desolado, em vão Ulisses o buscou, varrendo charnecas e campos, tágides prestimosas auxiliando na busca. Zeus, no Monte da Lua, cozinhava o destino dos frágeis humanos.
Sem voltar a ver o filho, Ulisses partiu, amargurado, reentrando as Colunas de Hércules, de novo sulcando o Egeu. Como distante ia o dia em que liberta Tróia infindável odisseia encetara em atribulado regresso a casa.A saudade corroía-o já, assaltado pelos mortos em sonhos à noite. Agaménon, Ajax, Aquiles, como longe estavam ainda Penélope e Telémaco, suplício era seu fado, como o de Tântalo sedento.
Passada a terra das Sereias, afrontou o monstruoso Cila, o redemoinho Caribde, e acostou em Trinácia, onde ignorando avisos de Circe os seus homens abateram o gado de Hélio, deus-sol. Por tal afronta, morreram afogados, excepto Ulisses, que exausto de novo reencontrou Calypso. Só então chega a Ítaca, e enfim se reúne a Penélope e Laertes, velho pai, pródigo marido e filho, em muitas provações testado.
Aplacados os deuses, derrotados os demónios, Ulisses de novo reinou entre os seus. À noite, contudo, a imagem do filho perdido no Tejo assaltava-o, lembrando a terra do manco Górgoris bafejada pela Serra Lunar. Talvez Polifemo o mandasse matar, ou Circe o houvesse transformado em porco, cruel vingança de quem nada pudera contra o favorito de Atena.
Lá longe, na terra atlântica, protectores deuses haviam contudo feito o seu trabalho. Partido Ulisses de coração dilacerado, a cesta com o corpo desse rejeitado filho três dias flutuou, arrastada pela corrente e levado para junto da Roca. Perigando no ululante Alvidar, pela graça de Éolos a cesta de vida acabou arrastada para um arborizado local, onde brotavam maçãs de quatro palmos e frutos suculentos, povoado por ninfas e nereidas, dríades e sátiros que livres viviam nas florestas, nos bosques e nos mares. Também fúrias habitavam o submundo, nas grutas da Roca e nos rios onde as maçãs boiavam. Hades bem rondara a cesta com a semente de Ulisses, mas atentos, Atena e Dionísio manobravam com invisível mão.
Naqueles começos do Mundo, em que Prometeu roubou o fogo e Tântalo a Zeus tirou o néctar e ambrósia, o trágico corifeu carpia dramático fim ao atlante filho de Ulisses. Mas à ordem de Zeus, a corrente arrastou a cesta para local seguro onde uma elegante corça a recolheu.
Entre faunos e ninfas, vinte anos aí viveu, na protecção da Serra Lunar. Passado esse tempo, tornara-se pujante guardião do rio, das milagrosas maçãs recebendo o segredo do Conhecimento e a graça de falar com os deuses, atentos no Olimpo. Levado à presença de Górgoris, já velho e moribundo rei do Tejo, uma chorosa Calíope identificou o filho por um sinal de nascença. Arrependido, Górgoris acolheu o neto e o fez herdeiro do reino, o maior a sul de Finisterra, farol das ilhas atlantes. Sem nome, ao filho de Ulisses de vez descansando em Ítaca, um lhe foi dado por Atena, deusa da sabedoria: Portugal.