Eram os trinta anos da greve académica, mais gordos e burgueses, o grupo de amigos encontrou-se na Trindade para um mítico bife, a recordar aqueles dias frenéticos de emoções à flor da pele, com perigosos fascistas conspirando nos corredores da Aula Magna. O tempo separara-os, advogados de sucesso, políticos do centrão, um, cantor romântico até, deitara as leis às malvas enfrentando outros júris.
Nos fins de setenta, Direito era território MRPP, iconográficos, os retratos de Ribeiro Santos e Maximino de Sousa pontificavam no átrio, chorados heróis de escaramuças mal sucedidas, a maioria era fauna conservadora, liberal q.b., como após Abril era correcto ser, durante a greve académica os convivas do jantar haviam assegurado a mobilização através da secção sonora e de um zeloso piquete. Alexandre, o da voz mais cromática, entre jingles anunciava pelas colunas a gloriosa luta dos estudantes e à moda do Pão com Manteiga, em voga na época, lançava setas aos instalados professores, achincalhando a obesidade da Magalhães Colaço ou as épicas tiradas de Soares Martinez, sem graça se metera uma vez com Sousa Franco crismando-o de professor mais inteligente, por tudo lhe entrar por um ouvido mas jamais sair pelo outro, cruel gozando com a deficiência na orelha do catedrático de Finanças. Glorinha, agora procuradora em Aveiro era a mais acirrada, armada de pé de cabra e quebrando a vitrina das pautas, duas vezes fora detida por vandalismo, imediatos comunicados desmascaravam a discricionariedade, estudantes unidos jamais seriam vencidos. Pedro Heitor era agora deputado, depois da passagem por uma Câmara, primeiro como assessor e depois vereador, via o jantar como a oportunidade de mostrar que até fora em tempos irreverente, romântico aos vinte, calculista aos quarenta. Do grupo, só Rafael enveredara pelos jornais, investigava uma fuga ao fisco dum político, por sinal do partido de Heitor.
Haviam sido tempos gloriosos. Comunicados policopiados, pichagem de paredes, oportunos e revolucionários “copos” no Bolero ou no Jamaica, para tudo acabar no Cacau da Ribeira, após a tomada do Palácio de Inverno da Aula Magna. Portugal mudara, até há pouco só o Charneca, o eterno contínuo, ainda vendia testes dos exames no átrio da Faculdade, única prova viva de que tudo aquilo existira, afinal. Glorinha mantinha a beleza de outrora, todo o 5º ano a disputava nessa altura, qual musa e troféu, Passionária do Campo Grande, voz de arrepio, muitas noites no Caleidoscópio se reuniram cantando os hits do momento, sonhando amanhãs e congeminando protestos. Em 1979 o socialismo caminhava já para a gaveta, inexorável, os avós da troika já cá estavam, mas era quente a luta e com muita alegria. A utópica alegria de rasgar caminhos os unira, hoje apesar de ténue essa recordação sobrevivia ainda, genética, para sempre.
Por esses dias, no velho Audi em segunda mão do pai de Heitor correram Lisboa a rebate, reuniões no Técnico, em Económicas, em Letras, os rapazes ofereciam-se todos para Letras, sempre bem servido de moças com bom aspecto, o plenário na Aula Magna apesar de alguns provocadores, correra bem. Durante dias, fumos negros nos braços e tiras nas paredes decretavam luto pelo ensino, depois de experiências fracassadas e da revisão curricular. Ao lembrar a cena, Rafael comentava como irónico parecia ser o então “exorbitante” preço das propinas, um seco inutilizar de selos no valor duns míseros seiscentos escudos comparado com os tempos de hoje, mais elitistas e excluidores, apesar do ruído com a defesa da escola pública.
Nesse jantar no Trindade, abatidas varias canecas, revisitaram-se mergulhados num passado privativo e fraterno, onde coexistiam Zeca, Letria, Pablo Neruda ou os Fisher-Z, perdidos nos esconsos das garagens onde após lânguidos slows se haviam prometido amores eternos e o nirvana do Shangri-La socialista. Após o jantar,como nos velhos tempos, voltaram ao Jamaica. Antes, um copo no Hot Club, ali Rafael apanhara a primeira cardina, chamando princesa a uma improvável deusa da noite à porta do Fontória. Podiam recordar o passado consoante a fase dos bares: numa primeira fase, o Archote, o Whispers, o Bolero, depois o Jamaica, o Bora-Bora, o Charlie Brown, mais burguês o Ad Lib ou os mais selectos Stones, mais atrevidos a Cova da Onça e o Pipodrom junto ao Coliseu, onde introduzindo uma moeda de vinte cinco escudos, por um óculo se via a Olga de Jurídicas fazendo streap-tease para ajudar a pagar os estudos. Todos os rapazes da turma lá foram uma noite, à vez esbugalhando os olhos gulosos ante a visão celeste do corpo da hoje ilustre advogada no Algarve.
No final da noite, à porta do Jamaica e abraçados, uniram os passados, já de si unidos num filme de vida muitas vezes rebobinado. Os anos passaram, a seu modo haviam respondido à chamada do seu tempo, puro sangue na guelra para as causas generosas, razoavelmente exigindo os impossíveis pois só salvando o mundo se poderiam salvar. Salvou-se a memória, a felicidade e o orgulho de ter tentado, a certeza de nunca ter desistido. Deambulando a pé até à Baixa, junto à estátua um grupo de jovens montava tendas, outros dormiam já, passadas que as duas da manhã. Junto ao Nicola, os insubmissos de outrora, em silêncio miravam os ingénuos actores das novas utopias. Atrás de tempo, tempo vem, haviam passado trinta anos, valera a pena. Hoje como ontem, o tempo ainda é feito de mudança.