Finais de 1307, um barco proveniente de Calais chegava ao porto de Lisboa. Entre os passageiros, um cavaleiro templário, envelhecido e com ar sorumbático, barba ruça esbranquiçada, Bertrand de Clairvaux, era seu nome. Na bagagem, um baú de carvalho de que nunca se afastava. Lopo Guterres e Ramiro de Menezes, irmãos templários de Sintra, aguardavam-no, avisados por um viajante da chegada de um enviado do provincial da Normandia com uma missão do maior melindre.
-Bem vindo Bertrand de Clairvaux- saudaram, ambos na casa dos quarenta, alguns anos em Gaza, na Cruzada. Um cavalo estava aparelhado para o levar até Sintra, uma mula levaria o baú, ficaria alojado junto ao Chão de Oliva em frente ao antigo paço árabe, em propriedade que El-Rei Afonso aforara a Gualdim Pais.
-Obrigado, irmãos. Já escutaram por certo o que sucedeu a nosso mestre Jacques de Molay? Os tempos estão agitados, o rei de França está rodeado dos nossos inimigos, conjuram para nos perder...
-Sim, nobre Bertrand, romeiros de França trouxeram-nos as más novas. O Papa Clemente não pode concordar com essa prisão infame!-respondeu Ramiro, as novas da prisão do Grão Mestre eram difusas, haviam-se inventado até adorações satânicas, naquela sexta feira treze de Outubro Lúcifer abatera-se sobre os Cavaleiros do Templo, todas as calunias serviam, confissões haviam sido forjadas O rei de França, Filipe ajudado por Esquieu de Floyran, mandara prender sem motivo todos os templários de França e o seu Grão-Mestre, Jacques De Molay. Godofredo de Chorney, provincial da Normandia, avisado previamente da sua eminente prisão, chamara Bertrand, cavaleiro da sua confiança, e encarregara-o de uma missão em Portugal.
Algumas horas depois, chegaram ao bailio de Sintra. Bertrand chegou em silêncio, sempre atento à mula que transportava o pequeno baú. Frugais, não tinham grandes luxos, pelo que o alojaram numa cela simples com uma pequena janela esconsa virada para o castelo mouro.
Na tarde do dia seguinte, depois da missa, reuniu-se com os doze cavaleiros da vila, o silêncio e o ar solene do forasteiro despertara curiosidade nos templários:
-Amados irmãos do reino de Portugal, venho até vós encarregue duma missão difícil e sigilosa, pelo que tudo o que virem nesta sala ou ouvirem da minha boca não pode jamais transpor estas portadas!
Os cavaleiros, intrigados, juntaram-se em torno de Bertrand, anoitecia no burgo, as tochas alumiavam uma cripta escura e secreta vários metros abaixo do solo. Intrigante, o francês continuou:
O nosso provincial da Normandia, Godofredo de Chorney interpretou a profecia da cátara Esclarimunda como sendo este o local onde deve ser guardado o conteúdo do baú que trouxe comigo.
-Dizei tudo que precisares, nobre Bertrand e nosso sangue se necessário for será derramado! -afirmou Lopo Guterres, bravo de Antioquia, o mais ancião daquele grupo.
-Foi precisamente o sangue derramado que me trouxe até vós- adiantou, intrigante. Dirigindo-se ao baú, de lá retirou um volume envolto em burel que religiosamente colocou na mesa. Abrindo-o, de lá saiu um cálice, enferrujado pelos anos, que Bertrand exibiu na direcção dos demais:
-Eis o motivo da minha presença em terras portucalenses!
Os cavaleiros ficaram admirados, que importância poderia ter um cálice escurecido para tanto mistério e aquela viagem de França até Sintra. Bertrand fez uma pausa, olhou-os um a um, e elevou o cálice ao nível dos olhos:
-Cavaleiros do Templo, perante vós está o sagrado cálice onde José de Arimateia recolheu o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo na hora em que este partiu ao encontro do Pai!
Os cavaleiros sentiram um calafrio, misto de espanto e surpresa, e logo ajoelharam impelidos por um instinto irracional, fazendo o sinal da cruz.Perante eles, ali estava o Santo Graal. Não era lenda de bardos provençais ou alquimistas, a iníqua perseguição que o rei francês promovia à Ordem obrigava a colocar a salvo de mãos heréticas a relíquia há séculos escondida.
-O santo cálice repousava há doze centúrias em Montsegur, onde Esclarimunda, a cátara, o guardou quando José de Arimateia lho entregou, antes de seguir para a Bretanha. -continuou. Só os grão-mestres sabem da sua existência, passando entre eles o segredo na hora da sucessão. Agora ficará em segurança nesta terra, dando cumprimento à profecia de Esclarimunda: “quando o sangue real for turbado, a força da vida repouse lá onde o Ocidente acaba e pinhos verdes invadem o azul”. Aqui, nesta terra de Sintra! -e bateu com a mão no peito, olhar perdido no infinito, a missão quase a a chegar ao termo.
Um a um os cavaleiros contemplaram a relíquia, como se Deus vivo descesse à cripta e ali estivesse com eles, benzeram-se e beijaram-no com particular emoção. Mais tarde jejuaram e toda a noite velaram na cripta, rezando e venerando o cálice.
No dia seguinte e antes do pôr do sol, em procissão desceram para uma galeria subterrânea na direcção do paço árabe transportando o cálice numa bandeja de prata. Entraram numa sala suportada por colunas delgadas, e debaixo duma laje oca aberta nesse dia no maior segredo, depositaram o cálice que recolhera o último sangue de Jesus .
Bertrand, segurando um archote, virou-se para os cavaleiros e enfatizou:
-Um Templário é um cavaleiro destemido e seguro de todos os lados, protegida a alma pela armadura da fé assim como o corpo pela armadura do aço. Non nobis Domine, non nobis, sed nomine Tuo ad gloriam!(#). Coberta a laje, saíram em procissão voltando à superfície, guardando o segredo sobre a sagrada relíquia.
Sete anos depois, Jacques de Molay foi supliciado depois de terríveis torturas e provações e Clemente V extinguiu a Ordem do Templo e expropriou-lhe os bens. Por cá, D. Diniz complacente, criou para eles a Ordem de Cristo e como tal continuaram, em Sintra e noutros lugares, com a sua cruz obnubilada se abriu o mundo em velas portuguesas mais de cem anos depois.
Na noite dos séculos, o Santo Graal continua a repousar naquele chão, uns metros abaixo do Café Paris….
(#)Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao Vosso nome dai a glória
SOBRE OS TEMPLÁRIOS EM SINTRA, MEU ARTIGO EM
http://www.alagamares.net/alagamares-informacao/artigos/noticias/474-vestigios-templarios-em-sintra