por F. Morais Gomes

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Mai 11

Detective privado, fazia alguns dias que Fernando vigiava a casa de Sílvia no Linhó, dia e noite. Apesar de cansado, passaria essa tarde no Diogo a tomar uns copos e relaxar. O Salla abria às cinco e fechava à meia-noite, espaço acolhedor, ambiente familiar, os frequentadores quase todos habituais. Fernando vigiava Sílvia por conta do marido, o dr. Ramos, que suspeitava que ela o enganava, tencionava usar o adultério como motivo para o divórcio sem que ela lhe ficasse com os bens, por sinal vultuosos.

Sílvia efectivamente andava com Artur, um funcionário da Câmara, Fernando  já os fotografara a entrar para o Requinte. Pelo Diogo do Salla ficou sabendo que a Sara era amiga comum. Com facilidade, Fernando induziria Sara a marcar um encontro, para saber mais sobre Sílvia, o suficiente para chegar até ela. Marcaram um jantar os três, Sara apresentá-lo-ia como amigo de infância. No dia acordado, no Tulhas, Fernando ao ser apresentado, fingiu um acesso de memória, dizendo ter a impressão de já a ter visto antes com um seu amigo. E descreveu Artur, lançando a cilada. Discreta, Sílvia rodeou o assunto, identificando o amante como seu irmão, sem abrir o jogo.

Fernando lá foi dizendo que o seu maior prazer era fazer amigos e no fim do jantar propôs novo encontro, na Mourisca. Nessa noite, ficou claro que ela estava tensa, bebendo em ritmo mais rápido que ele. Isso não surpreendeu Fernando. Se ela tinha a noção do adultério e frequente discutia com o marido, o seu cliente, era natural que estivesse sob grande tensão. A coisa pareceu descomprimir quando Sílvia começou a questionar Fernando, o que fazia, se era casado, como conhecera Sara, se era frequentador habitual do Salla de Estar. Fernando, sem abrir o jogo, disse que era distribuidor de bebidas, embora o negócio estivesse entregue a um sócio. E arrematou dizendo que continuava nesse trabalho porque até aquela altura não  descobrira  nenhum que o atraísse. O que gostaria mesmo era de viajar e fazer amigos. Casamento, nem pensar, ironizava.

Ela precisava de um amigo, alguém com quem pudesse falar, a ponto de esquecer o conflito interior em que estava metida. Começou a olhar Fernando visivelmente interessada, que nesse momento experimentou o desagradável sentimento de estar a ser traiçoeiro. Sentia-se envolvido por Sílvia, agora, pela sua aparência e inteligência, o que tornava palpitante o seu coração solitário, esquecendo os motivos que o levavam até ela. O interesse agora não era já só profissional.

Álvaro Ramos contratara Fernando por indicação sigilosa de um amigo advogado, para quem ocasionalmente trabalhara. Não há como quem trabalhe sozinho, e com discrição, salientara. O seu suposto trabalho de distribuidor era um bom álibi, pois não podia circular com à vontade se o seu trabalho fosse percebido pelos seus alvos.

Sílvia também começou a demonstrar interesse por Fernando. Ela mesma tomou a iniciativa de lhe telefonar. Estava só e queria falar. Ele perguntou por que não se encontravam pessoalmente, ela concordou, mas pediu que fossem para lugar discreto, Fernando concordou, sem pedir explicação. Sorriu intimamente quando ela mencionou o Salla, mas ali era o seu poiso habitual, conhecia opções mais afastadas. Encontraram-se na praia, e o clima de romance logo se estabeleceu, ao início fisicamente contido e titubeante, sem perguntas, como se cada um soubesse os passos a dar. Amaram-se enfim no Hotel Miramonte, revelando o que lhes ia nos corações. Quando se despediram, Sílvia finalmente se abriu e contou que tinha um amante, um homem de personalidade forte, um homem que sempre fazia o que queria, e que era casada. Mas não revelou nomes, nem Fernando perguntou, disfarçando saber tratar-se de Artur e de Álvaro. Precisava manter a relação com Sílvia, quanto mais não fosse, por motivos profissionais. Aceitou a pretensa novidade, enquanto ela se mostrava carinhosa e amiga. Movido por um ímpeto, ganhou coragem e dias mais tarde, durante novo encontro no hotel, perguntou-lhe pelo relacionamento com o marido e o amante. Ela sorriu levemente, inicialmente não respondeu, ele não insistiu. A pergunta fora feita, era esperar que encontrasse o momento para responder.

Esse momento não demorou. Terminara com o amante na véspera, não sentia mais atracção por Artur, tornara-se violento. Mas tinha medo de Álvaro, era  ciumento e vingativo. Fernando permaneceu em silêncio, ela tinha tocado na questão central, tinha medo, ao mencioná-lo evidenciava a necessidade de compartilhar uma terrível angústia. No fundo, só queria ser amada, duas vezes falhara já, com os homens errados. De repente, ainda na cama do quarto, Fernando confessou-lhe que era um detective particular, sem mencionar o caso em que estava a trabalhar. Sílvia arregalou os olhos. Fernando, num assomo de franqueza, confessou que a investigava por conta do marido.

-Então isto é uma cilada! -reagiu ela, saltando da cama, ainda nua.

-Foi, no início, agora não é mais- atalhou ele, segurando-a por um braço- Deixou de ser na noite em que nos conhecemos. É claro que eu continuo comprometido com o caso, um compromisso que quero resolver, mas não quero perder-te. E hoje, o que mais quero é tirar-te desta enrascada e do teu marido.

Instintivamente, Sílvia decidiu confiar em Fernando, não suportava mais a angústia solitária, afeiçoara-se-lhe, o cheiro do seu corpo despertava-lhe as feromonas. Fernando continuou:

-Escuta, vou contar ao teu marido que não há amante nenhum, tu alegas que ele, desconfiando de ti, destruiu o vosso casamento. E assim pedes tu o divórcio com partilha dos bens em partes iguais! Ele não tem nenhumas provas, eu não lhas darei, confia em mim!

Fernando arranjaria as coisas, ela ficaria de fora. Como Álvaro era odiado por muitos, nenhuma suspeita cairia sobre ela, Artur sumira e ele era o amante mais improvável possível. Informado o cliente, que ficou furioso, referiu esperar que o compromisso contratual fosse cumprido, e deu o caso por encerrado, absolvendo a amante de ser amante de outros, ironia do destino...

Três meses depois, o divórcio, amigável mas contrariado, lá saiu, sem culpas  de parte e financeiramente generoso para com Sílvia. Mantendo a rotina, Fernando voltou ao Salla de Estar para as habituais imperiais de fim de tarde, novos casos apareceram, investigava agora a mulher dum construtor que se dizia enganado. Sílvia, recente esposa e zelosa colaboradora nas investigações chegaria pelas sete para um jantar à luz de velas em S. Pedro. Top Secret.

publicado por Fernando Morais Gomes às 13:27

Repetia-se diariamente, dois sacos de milho, outro de pão humedecido, os pombos da Correnteza, aéreo exército de Sintra chegavam dos beirados e janelas, dos plátanos e das antenas, para o matinal bodo que o velho Ezequiel para eles preparava, seus alados amigos, rasgando os céus do Rio do Porto e deixando no horizonte o azul libertador do oceano e a fértil várzea.

Serpenteantes patrulhas dos ares do burgo, arrulhando ora exprimiam contentamento pelo sol e pela cor que lentamente a Primavera devolvia, como silenciosos calavam a visão de mais uma injustiça, mais um pedaço da Vila dos Pombos fenecendo, por incúria dos homens, a quem faltaria visão e milho para tais pombais.

Ezequiel conhecia os seus meninos, para cima de cem, à sua aproximação vindo das Murtas de todos os lados acorriam a saudá-lo, do telhado da Câmara e dos plátanos renascendo, após os sanguinários cortes do Inverno, o empedrado do jardim de repente repleto de bicos e asas, columbinas companhias vindas dos céus da pachorrenta urbe, onde alheios, acelerados carros e mais acelerados humanos corriam desencontrados para rotineiros empregos e escolas, hospitais e pastelarias. Ezequiel, viúvo e solitário passava alheado, o seu mundo eram os seus pequenos companheiros, ora arrulhando contentes, ora rasando rasteiros sobre os telhados vermelhos.

De plumagem cinzenta, mais clara nas asas que no peito e cabeça, cauda riscada de negro e pescoço esverdeado, Óscar era um pombo diferente, a Primavera trazia-o atrás duma fêmea assídua do telhado do Hotel Central. Macho orgulhoso, fazia-lhe reverência e ambos se acariciavam na cabeça com frequentes arrulhos, alimentando-se mutuamente. O ninho estava já feito numa plataforma de ramos, antes que Junho chegasse novos filhotes piariam contentes e promissores. Perigosos funcionários da Câmara procuravam dar-lhes cobro, como se de ratos com asas se tratassem, mas ainda assim resistiam, unidos.

Naquela manhã, Óscar, sempre o primeiro a comer da mão de Ezequiel, vinha estranho, o velho que o vira nascer e ao pai, e ao pai do pai, ficou curioso, o amigo de penas acabrunhado desabafou, denunciando falta de apetite:

-Que se passa, velho amigo? Onde está essa pujança, aquele rei de Sintra conduzindo o mais belo bailado que estas serras já viram?- indagou o velho Ezequiel.

Óscar trazia um olhar perdido, mortiço, conhecia aquelas cúpulas e troncos, todas as estátuas e pelourinhos, mas sentia-se angustiado:

-Ezequiel, há quantos lustros renovamos este  encontro diário nas sombras da Correnteza?- perguntou, abúlico.

-Muitos, companheiro, muitos. Do tempo em que o Zé Alfredo ali sentado na estátua fazia aguarelas da Vila e a velha Rita com a cesta à cabeça vendia queijadas na Volta do Duche. Já lá estão, todos!- o velho recordava velhas figuras, cúmplices de passeios e charlas, só os pombos lhe restavam, os outros por certo  voando noutros céus mais etéreos.

-A Vila está a morrer, Ezequiel, todos os dias o sinto. Levaram a cúpula do Paris, o Netto foi ocupado por ratos. Até cães vadios tomaram a Casa da Avó. Está tudo entregue aos bichos!...- o pombo, vigilante de outras Sintras estava melancólico, em silêncio olhava o palácio, majestoso mas deixando transparecer mazelas e  alguma incúria.

-A Vila mudou, Óscar, já lá não nascem humanos e os que restam partem, rendidos aos mercadores de queijadas e aos automóveis invasores. A Vila dos Pombos corre perigo, meu amigo!

Qual velha senhora que com pó de arroz disfarça a crueldade das rugas e a fragilidade da carne, a Vila envelhecia iludindo as visitas com obras de fachada e supostas renovações para que as hordas de calção e óculos escuros se contentassem durante as poucas horas que a invasão durava. O pombo, agora no ombro de Ezequiel, como que revelando um segredo que só eles partilhavam, continuou:

-A Estefânea morreu, Ezequiel. Dá dó o ginásio do Sintrense, os grafittis dos vândalos, os prédios em mau estado. Um destes dias pousei na estátua do Cambournac, e o velho médico chorava, coitado, antes sereno no meio das árvores, agora inerte polícia de um infernal trânsito!

Uma fêmea arrulhando chegou entretanto ao braço de Ezequiel, era a companheira de Óscar, no telhado do Hotel Central dois cúmplices ovos brancos renovavam promessas de primaveras no mundo dos pombos. Óscar, revigorado, acariciou-a com o bico, Ezequiel, pau de cabeleira sorria, a sua pomba partira à muito. Esvoaçando os dois, logo seguidos do fiel bando que ao passar escurecia os céus de Sintra, partiram a patrulhar Seteais e a beber da Fonte da Pipa, no dia seguinte regressariam, como muitos antes deles, no eterno renovar da partilha de pão e milho que só na Correnteza existia. Ezequiel, deixando-se ficar, sentou-se num banco mirando a serra, qual pombo velho partiria também ele um dia, os dias eram cinzentos mas uma réstia de azul invadia-lhe a alma, outros Óscares e outros Ezequiéis renovariam o voo de liberdade na Velha Senhora.

publicado por Fernando Morais Gomes às 04:40

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