Eden Hotel, Colares
Manuel Iglésias caprichava, o Eden Hotel ombrearia com o Nunes e o Vitor, como o melhor hotel de Sintra para os lados das praias, a moda dos banhos marítimos trouxera famílias inteiras, longe de Pedrouços e Algés, saturadas. Mandado fazer pelo Inácio Costa, Iglésias assumia a direcção do hotel, terminada a guerra, eram os anos vinte e o tempo dos jantares dançantes ao som do charleston.Lá haviam veraneado já Alfredo Keil, o Conde de Sabugosa, Fidelino Figueiredo, os saraus de piano de Viana da Mota, morador em Colares, ficaram famosos. Na praia abrira o Royal, mas ardera em 1918, as sombras amenas da Estrada Nova da Rainha e as comodidades de Colares eram para muitos, atractivas, mais que a praia, por vezes ventosa. Junho estava à porta, o Verão de 1925 seria de calor. A Sintra-Atlântico anunciara a criação de eléctricos que levariam crianças pobres à Praia das Maçãs, onde depois de vistas pelo dr. Brandão de Vasconcelos fariam tratamentos marítimos. De Colares iriam dez, os dois cachopos da Miquelina, a cozinheira do Eden, estavam inscritos, a mãe receava, mar só para pesca, para banhos já tinham o rio, mas a D. Maria do Carmo insistira que fossem, ia fazer bem.
A Câmara disponibilizara à Associação de Caridade de Sintra três toldos, os banhos seriam um remédio, ministrado aos mais raquíticos, mar, sol, e uma merenda reforçada e ficariam fortes e sãos, dizia.
Efectivamente, pela manhã chegou Maria do Carmo, atarefada, aquele seria o primeiro dia de praia, iriam de eléctrico à Praia das Maçãs, um total de trinta e seis crianças, ela e as senhoras guardariam. Maria do Carmo Mazziotti, esposa do Dr. Carlos França, juntara bolos, agasalhos e medicamentos, a condessa de Mangualde, não demoraria a chegar, vinda do Vinagre. Entusiasta, Manuel Iglésias ofereceu fruta e pães, na dispensa do Éden havia fartura:
-Com que então vai com os pirralhos à praia, D. Maria do Carmo? Veja lá, que ainda os habitua mal, deviam era ajudar os pais na vacaria ou na apanha do morango. Isto são coisas para gente rica…- irónico, Iglésias troçava da excursão, apoiava contudo, lera algures que os banhos de mar apuravam a raça, noutros países também se espalhara a moda.
Maria do Carmo sorriu, lá na Quinta também a Josefa zombara, eram mordomias a mais para pobre de Cristo, antes lhes dessem umas botas e malgas de vinho para enrijar, que Inverno em Sintra é mau para as cruzes e o mato para cortar muito.
Chegados os gaiatos, com as mães e os farnéis, juntaram-se em S. Sebastião, o eléctrico viria em dez minutos, aos mais corrécios, só habituados a pancada, alertaram para não roubar nêsperas das árvores, nem gritar ou bater nos outros, nas barracas trocariam de roupa, e quando ela dissesse iriam ao banho, todos de mão dada e sem se afastar dela. Maria do Carmo era a chefe, com um apito chamaria ao mínimo pisar de risco, na água só com bandeira verde, e sempre à vista dela e da condessa. Os miúdos, envergonhados, nada diziam, o filho da Miquelina temia despir-se em frente da patroa da mãe, Jacinto, já galarote, zombava, com dez anos não tinha nada que ver…
Cantando e aos pares entraram no eléctrico, o Serafim, filho do Bataza Madeireiro, queria ir no estribo, a um olhar de Maria do Carmo sentou-se, na praia se pudesse fugiria com o Valentim da Azóia iriam aos pássaros e armar ao visco.
A praia convidava, o iodo atlântico abria a fome, os da Ulgueira corriam atirando areia, o Zé Cocho que ficara órfão e estava na Casa Pia também já fora à praia, as ondas agrestes rebentando no areal eram pretexto para mal os pés molhados fugiram da água fria, de novo afrontando a seguinte, a ver quem ficava encharcado.
Maria do Carmo exultava. O riso das crianças, quem sabe um dia lenhadores ou à jorna, tudo valia, talvez algum tirasse as primeiras letras, coisa rara, o destino seriam as quintas da serra ou a faina da vinha, em Gouveia ou Fontanelas. Agora porém era aquele o momento, príncipes da areia, navegadores de naus catrinetas que poucos meses depois atracariam nalguma quinta, caseiros de algum doutor, donos de sonhos que pouco durariam. Agora era a vez deles, a um reparou numa unha maior que um gavião, chamando-o, corou como um borracho, só com a vergonha de lhe cortarem a unha, Maria do Carmo sorria, em breve nada disso interessaria.
Todos os anos enquanto pôde, mesmo depois de enviuvar precocemente no ano seguinte, Maria do Carmo Mazziotti e as senhoras de Colares, em torno da obra criada e também do preventório, ritualmente levaram os acanhados rapazes a banhos de mar, anualmente se repetia o desfile do pequeno e ruidoso exército de traquinas criados na horta experimentando pequenas mordomias. O mar queimava a tez, as feições pobres por momentos se rasgavam sorrindo, bondosas senhoras moldavam a índole dos novos descobridores, num país de marinheiros onde poucos sabiam nadar. Ao longe, na tasca do Prego ou na Adega Oceano, pais e avós orgulhavam-se dos seus, haviam ganho o direito de ir com as senhoras à praia, não que lhes mudasse o destino, mas por certo entre os toldos listados e banquinhos de madeira um dia recordassem que haviam tido a parca chance de como os ricos serem felizes.